10 março 2024

Em Branco

 

Até queria ter a vontade de meter a cruz nestes. Mas não consigo. Mesmo que os outros possuam o odor persistente a compadrio, debaixo dos holofotes e da conversa redonda, que me enfastia de sobremaneira. O tom e timbre do discurso carrega inflexões e cadências delicodoces, o nós tão bom e o eles tão mau, aquele paternalismo meloso da incumbência, com os olhos a acompanharem cada recanto da sala, percorrendo-a num ritmo de encantador de serpentes que me deixa mais que indiferente, deixa-me a quilómetros de distância. Eu não quero ser visto por esses olhos falsos. Afasto-me. Eles não podem ser o menos mau e não podemos ir apenas pela contenção de perdas. Ainda assim, nestes não consigo. Talvez se incluísse outra gente, esta não. Esta gente traz a memória de tempos sombrios, que só não tomaram proporções maiores e mais graves porque ainda estamos todos meio anestesiados de anos de complacência. Noutro século, as coisas teriam descambado para eventos mais tumultuosos. É percorrer a história para perceber que nem sempre fomos tão aparentemente brandos. E para além desta incapacidade em revoltar-se, que se tenta explicar pelo passado, neste século de vigilância social toda a gente tem medo de dar um passo mais brusco que a comprometa. Esta gente tem um cunho sinistro que impede qualquer sustento de empatia. Ficou associada indelevelmente a momentos de instabilidade. Há ali individualidades que assustam com o seu sorriso e fazem tremer com a sua simples presença, não propriamente pelos melhores motivos. Não foi boa ideia recuperá-los, não foram bons tempos. Os anteriores já não tinham sido e, muito provavelmente, é aqui que se encontra a raiz deste desgosto. Também aqui houve culpados, como antes e outrora a aqueloutros, se formos mesmo até ao fim somos capazes de desembocar no Afonso Henriques. Enfim, se formos minimamente justos, haverá um limite para o qual a desculpa já não é admissível. Portanto, aqueles que começaram de forma mais evidente este caminho de desleixo institucional generalizado e estes que supostamente vieram corrigir com a destreza dum elefante num nenúfar são ambos co-responsáveis por uma página amarela numa história com algumas nódoas. Foi uma década inteira jogada ao lixo. Fomos depauperados nos bolsos e na alma. Acordei muitas vezes durante a noite com o teu sorriso falso cravado na minha cabeça. Demasiadas vezes numa inquietude que não resolvo. E eles estavam lá nesse tempo em que a distância cresceu e os ventos tornaram-se hostis. Estiveram mal na pior altura. Eles são aquelas fotografias que nos deixam um gosto acre na boca, uma fina azia no estômago, uma bofetada na nossa boa-disposição quando visitamos o álbum no baú e que nos relembram de quão cruel e trágica pode ser a nostalgia. A nostalgia nem sempre é assim tão doce como propagandeiam. É mais uma sereia que nos abocanha à laia duma fêmea louva-a-deus, aliás. O pó da nostalgia é viciante como o pó da cocaína e fere-nos o âmago como o pó dos asbestos. Distorce-nos completamente as percepções da realidade, faz-nos viver num sonho irreal, de desejar o irrepetível, de nos deter em contemplações espúrias. Entretanto o presente esfuma-se e o futuro, essa abstracção que é o sorvedouro das nossas esperanças, desfaz-se pela torrente natural do tempo. O que já foi não volta a ser, nunca da mesma forma. O que vale para o país vale para o indivíduo. Que se lixe o fado. Que porcaria de som, sempre a finalizar no mesmo acorde, sempre a bosta da saudade, a patetice de glorificar a perda, a resignação como uma virtude. Não vamos a lado nenhum. Venha quem vier. O que se quer é mais uma justificação para a nossa incompetência, incapacidade e infelicidade. É sempre tão mais fácil varrer os nossos verdadeiros problemas respondendo a perguntas com mais perguntas, fingindo um espírito crítico que nunca se aplica quando e onde se deve, ou seguir a manada sem referências que se uniformiza numa cultura mcdonaldizada. Não sei quem se seguirá. Parece tudo plausível. Até pode ser alguém gerado por inteligência artificial. É candidata à palavra do ano, artificial. Dou por mim a pensar que isto pode ser um filme e posso ter tomado a cápsula errada. Dobro o papel tal e qual ele me foi entregue e dissolvo a minha voz numa caixa escura que não me ouve. Estendo as metáforas no sentido de conferir alguma razão ao meu sentir. Sinto-me civicamente completo, mas individualmente incompleto como no dia anterior.  É uma pequeníssima vitória moral.

25 fevereiro 2023

Kelly

 

Ela vem para Albufeira em Agosto. Mergulhar naquele oceano de bifes que transpiram álcool pelos poros e cuja pele grita por “cancro!” em cada esquina onde contêm o vómito. Ela vai a esses sítios onde os bifes se congregam num êxtase pós-colonialista banhado a sol e bebida, esbanjando os euros adquiridos com a sua vetusta libra, estrelina como as unhas dela, decoradas, trabalhadas, pontiagudas, um abuso de queratina artificial e de verniz chinês barato, um azeite rançoso que emana um aroma acre e que certamente infectará a carne onde ela as cravar. E que loura que ela é, sardenta, rechonchuda, deslavada, contém os genes da Baby Spice Girl e poderia figurar num clip dos Blur. Como uma figurante de tranças a chupar um lollipop gigante ao lado do sisudo Graham sobre um tapete que as bandas usam nos seus ensaios e num exíguo quarto perto de St. Pancras. Não é pâncreas, como eu supunha, mas seria muito mais inusitado. Os quartos dos bifes são todos forrados com papel de parede escuro que combina muito bem com a melancolia da sua gastronomia, toda virada para as doenças do foro gástrico. Há quem aposte na variedade, eles mantêm a fórmula dos fritos. Fazem disso tradição. Em equipa que ganha não se mexe. Já quanto a destinos de férias, existem pequenas mudanças. O que ela quer é sair do melting pot de culturas que é Londres para um sumidouro de almas sem reservas morais e com quartos à beira-mar plantados. Pode ser Grécia ou Espanha também. Mas Albufeira é mesmo aquele “what the fuck”, o delírio de se poder atrever a tudo que tudo será permitido neste pedaço perdido de terra tão inapelavelmente submisso. E ainda por cima com sol do bom. Dar umas voltas de burro lá para os lados de Paderne e depois acabar a foder sob uma alfarrobeira ou a rebentar um bar na Oura, perante a resignação geral da população. É à escolha. Depende da vontade do grupo, onde há sempre alguém que perde um tamanco na calçada ou que parte a cabeça num lancil com a bebedeira. Tem aquele sotaque de gaja que ouve punk. Aquele britânico mais irritante, qual Morrissey se tivesse crescido no seio da claque do Newcastle. Ela não diz “well”, resmunga um “uéu”; não se consegue perceber muito bem a disposição dela quando atira um “au á iue?” para começar a conversa. Ela está de copo na mão, ela adormece de copo na mão. Parece que tem sempre qualquer coisa na bochecha mas nunca arrota. É um feito de que se deve orgulhar. Mais do que despachar três putos de Aveiro que estavam a passar férias em Montechoro. Ela não se orgulha, mas conta casualmente estes episódios da sua colorida vida entre muitas outras coisas que não se percebe. O álcool causa os seus efeitos, por muito disfarçados que sejam, acho que ela começa a andar à roda no discurso. E depois anda à roda na rua com cânticos hooligans e acaba a vomitar-se no Uber que ela e as amigas chamaram. Já iam na Via do Infante a caminho de Tavira. Porque havia um gajo chamado Jarred que estava lá, era de Liverpool e conheceram-se num pub perto de Kings Cross, às 17:15 em ponto depois de saírem dos escritórios. Reencontraram-se numa sardinhada que fizeram na praia, era um tipo giro, não tinha os dentes assim tão tortos e falava muito bem sobre o tempo. E agora estavam na berma da 125 junto ao cadáver dum gato trucidado e não sabem como. Já foi pior. Uma vez perdeu as cuecas numa falésia e teve de andar por hortas e veredas até ao resort às tantas da manhã com as pernocas todas ao léu. Não se recorda ao certo de ter sido molestada, mas acordou toda dorida nas costas e com uma pastilha colada nos seus lábios inferiores. Uma pastilha gorda, devia ser tipo Super Gorila ou várias Tridents juntas. Meteu-lhe muito nojo. Mas nem por isso deixa de regressar a Albufeira, onde as pessoas parecem todas mais parvas do que ela é. Ela é daquelas que utiliza o umbigo como “O” numa palavra a tatuar na barriga e mesmo assim sente-se inteligente. É reconfortante saber que existe um sítio assim, onde espairecer depois duma vida encafuada num metro a cinco quilómetros de profundidade e a trabalhar num escritório onde toda a gente passa o tempo a reunir e a afiar as unhas. Como ela conseguiu o trabalho, não sei, ela nem parece saber fazer um secure printing, mas ali há trabalho para todos. Se és branco, vais sentar o rabo num escritório. Se fores paquistanês, tens um táxi ou um kebab à tua espera. Land of opportunities, land of the free. Isso até é mais a América. Mas a génese está aqui, o espírito é o mesmo. Quando é para a desbunda, é para a desbunda. Sair daqueles bairros de casas alinhadinhas e escuras de tijolo para os holofotes tépidos do Instagram, com a selfie ao pôr-do-sol, uma caipirinha e escaldões nas costas. A cabeça toda grelhada e a pele escamada como um peixe. Depois um pub com música ao vivo, onde passam jogos de rugby, as mesas têm bases para copos com perguntas para jogar Trivial e ainda estão afixados posters da Maddie. Um dia virá passar a reforma nas Canárias e cumprir o sonho de viver num Verão eterno. Por questões fiscais, claro. Albufeira ficará para sempre no seu coração.

04 julho 2022

Bryan Adams



Se quisermos simplificar, o Bryan Adams tem duas fases distintas de carreira: quando ainda só era levemente bexigoso e quando a sua cara se tornou numa espécie de campo lunar. Não sei se é dos genes do Canadá, da sua costumeira falta de sol, mas aquela pele mete dó. Não é um Balsemão, não dá para a escamagem, mas com o tempo o Bryan ainda se torna a nova mascote da 5-a-Sec. Pode ter sido da vida do rock n’ roll, mas francamente, depois do Robin Hood o Bryan afundou-se na mediocridade das baladonas, dos convidados e dos unpluggeds que, enfim, garantem uma boa reforma, devemos reconhecer, mas dificilmente representaram perigo à sua integridade física.

O Bryan ainda teria algum rasgo de criatividade até meados dos anos 80, mas depois os rasgos ficaram-lhe todos na cara e foram literais. Uma guitarrada orelhuda aqui e acolá numa época de optimismo e de pouca exigência asseguraram-lhe um lugar permanente das playlists das discotecas em modo revivalista. O próprio Nuno Markl, perito destas coisas, não dispensa uma malha ou outra do Bryan e prega a sua palavra aos seus acólitos, mantendo o espírito do Bryan, do bom velho Bryan que parecia ser o nosso primo mais velho e que usava ténis fixes por altura do “Reckless”, vivo com a saúde possível.

O Bryan, imaginado como um primo dos anos 80, pode ser um conceito que envelhece mal, como a pele do próprio Bryan. Dantes julgávamos que seria um tipo fixe, até tinha passado parte da juventude em Portugal, tínhamos um elo de ligação, mas agora tenho para mim que o Bryan em pessoa não seria um gajo interessante. Não tem a ver apenas com a qualidade musical, mas também com uma certa atitude que por vezes não cai bem, que é envelhecer e perder o brilho. Com piadas otárias sobre o Ontário, conversas sobre hóquei no gelo, ainda usando blusões de ganga e transpirando muito. Mas com uma voz rouca que lhe dá credibilidade. As pessoas ainda só o aturam porque ele diz coisas parvas com muito estilo. E por isso ainda lhe editam best-ofs e marcam-lhe concertos em casinos só para baronesas enfastiadas assistirem.

Isto tudo porque me lembrei que tive uma colega minha que, para aí com 12 ou 13 anos, confidenciou, com total naturalidade, que foi convidada pelo Bryan Adams para o seu camarim e passaram uma tórrida noite de amor. Naquela altura admitia-se a pedofilia como uma daquelas coisas que podiam acontecer. Acho que isso fazia sentido na cabeça dela. Era a expressão dum sonho com algumas camadas de complexidade, em que ela pensou nos passeios idílicos que deram, nas bonecas que ele lhe presenteou, no algodão-doce que comeram e nos beijinhos que trocaram. Embora ela tenha dito que “fizeram tudo”. E tudo antes do concerto, que ele obviamente lhe dedicou quando subiu ao palco, apontando para ela num foco saído do palco, com tudo em histeria. Estávamos, portanto, na fase em que o Bryan ainda seria moderadamente bexigoso.

Naquela época era fofinho contar isto e hoje seria um escândalo. É essencialmente um pedaço de fantasia adolescente que soa embaraçoso agora, como outros da mesma igualha. O Bryan para mim não é pedófilo. É bexigoso, não faz nada de jeito há anos, mas não desposa criancinhas. Só faz mal aos ouvidos e bem a DJs preguiçosos. É aquele primo que já não é fixe, porque nós também já conseguimos ter coisas, mas também já não nos irrita assim tanto com baladas, porque já não há muito espaço para ele.  Já fez tanta coisa confrangedora que no saldo final da sua carreira não sabemos bem se devemos valorizar a sua energia inicial ou carregar no lado aborrecido que se seguiu. Enquanto ponderamos, o Bryan vai escavando mais uns sulcos na sua cara como só ele sabe.


14 outubro 2021

Marquês de Sade


Sobre a personagem do título não me alongarei. Como marquês que era, devia usar daquelas perucas aos caracóis de que os juízes gostam muito, meias por cima de corsários e sapatos com fivelas, com muitos folhos dispersos pela indumentária. E certamente que era um tarado que se deleitava em serões de intensa e dolorosa carnalidade, ou não fosse essa a actividade que lhe granjeou a posteridade. Dada a sua inquestionável reputação, sobejamente debatida noutros fóruns, interessa-me apontar, sucintamente, as suas contrafacções.

Marquês da Sade. É um fidalgo que foi casado com a Sade Adu. Aquela que ia de costa a costa, de El Ei até Chicago, se bem que Chicago fique na costa dum lago. Foi um erro de simpatia por questões de métrica e de sonoridade. Valeu a pena, a canção foi um sucesso e a geografia ficou igual. Mas é ali, nas bordas de Chicago, que está o maior reservatório de água doce do mundo, na região dos Grandes Lagos. Nós temos o Alqueva, também o maior sob algum critério. O Alentejo renasce, polvilhado de oliveirazinhas que nunca crescem para além do estipulado. Todas alinhadas em formação a drenar o solo com uma voracidade militar. Alguma gente também nunca cresce, apenas envelhece. Duma forma oposta à do Vinho do Porto. Sacana do vinho, ficamos todos vinagre, até a aparentemente inexorável Sade, e só a raça do vinho fica melhor.

Marquês do Chade. É um nobre com pretensões ao trono do Chade, um país perdido ali por baixo da Líbia com fronteiras difusas na areia. É fodido estar por baixo da Líbia. Isto é das maiores humilhações geo-estratégicas que pode haver. O Nuno Rogeiro até fica com pele de galinha. E não é fácil o Nuno Rogeiro meter a sua pele de solário constante como a duma galinha. Não sei francamente se a Líbia ainda existe. A Síria, o Iraque, o Iémen, só mesmo o Nuno Rogeiro pode dizer. Então imaginem estar por baixo de alguma coisa que não existe e ser essa a principal referência. Ou estar ao lado do Sudão. Há dois Sudões e nenhum se aproveita. Não espanta que as pessoas fujam desse vácuo. A vida não está fácil para o Chade. Os anglo-saxónicos chamam-lhe Chad. Chad é nome de dropout de high-school. O primeiro baterista a sério dos Nirvana chamava-se Chad. Foi o máximo a que um Chad almejou.

Marquises de Sade. É um restaurante com uma vista panorâmica sobre o rio Sado. Foi um erro de tipografia ou apenas transcrição da fonética local. Há vários lugares assim, com nomes convidativos sobre uma paisagem qualquer: as Varandas do Ceira, os Miradouros do Gerês, os Passadiços do Paiva e também as Marquises de Sade. As marquises em si possuem um design à Ronaldo, arejadinhas. O restaurante enche aos Domingos e fecha 2ªs e 3ªs. É assim-assim. Tinha um arroz-doce muito bom, mas desde que a mulher do dono morreu que aquilo perdeu um bocado. Era o consenso dos clientes, eu cá nunca gostei de arroz-doce. Dava-me a volta à barriga, dizem que era por comer quando ainda estava quente, mas eu guardei um ressentimento para a vida. O restaurante não tem uma pontuação fantástica no Tripadvisor e tem poucos comentários no Google. O estacionamento é de terra batida e está lá sempre um Mercedes 180 branco com teias de aranha a ocupar dois lugares. Ainda assim, não lhe roubaram a estrela neste tempo todo. O atendimento é lento, mas isso até dizem que confere autenticidade à experiência. Só para quem entende. A sofisticação não está ao alcance de todos.

Prefiram sempre o produto original.

21 novembro 2020

BAAB

As pessoas não sabem como era o espírito na Escandinávia nos anos setenta. Em rigor, muitas não sabem, mas os especialistas em pornografia sabem. Eu sei que eles sabem. Foi nesse ambiente que Agnetha cresceu e se tornou mulher. Já não se fazem mulheres como a Agnetha, nem nas melhores maternidades de Jönköping. O umlaut é muito Spinal Tap e a Agnetha era muito o que a Ágata gostava de ter sido, antes de descambar numa adaptação da Bonnie Tyler. Toda ela um monumento à louridão nórdica, feminíssima, pele rosadinha, ingénua, gostava de romances e detinha um gosto duvidoso pela moda. E ela fodia. Oh, se fodia. Pois ela cresceu na libertina Suécia que teve o seu apogeu nos anos setenta, com patilhas, calças à boca de sino, roupa justinha, lapelas e colarinhos estapafurdiamente largos a acompanhar uma tendência muito vincada para o sexo. Famílias inteiras como a da Agnetha fodiam nos longos serões suecos junto à lareira, a neve cá fora, o alce de estimação, o imponente Fredrik, ruminando junto ao barracão de madeira onde se guardavam os esquis, o mobiliário do Ikea bem arrumadinho e restos de arenque fumado nos pratos. Começavam por jogar à sueca. Não o popular jogo de cartas, mas uma prima que vinha lá de Norrköping para andar de um lado para o outro a chupar o que lhe conviesse. Mamilos ou pénis, botões de rosa ou experimentação com almôndegas, tudo servia. A prima abria as hostilidades logo depois do brandy sueco que finalizava a refeição, uma zurrapa de bagas destiladas com sabor a carvão, apalpando os tomates do avô. Geralmente, os mais velhos tinham prioridade, que isto do respeito escandinavo é bonito. Mas depois a avó agarrava-se à tia, o pai exibia-se excitado perante a sobrinha acabada de fazer dezoito aninhos, a nora enfiava um rolo da massa por um orifício debruado a pêlos púbicos, os primos engalfinhavam-se numa orgia à parte e toda a gente se divertia, era só sorrisos e fluidos alegres excretando dos corpos. Naquela Suécia luterana, a sexualidade era incutida de forma precoce na educação das crianças. Tudo só com recurso a televisões Electrolux quadradas, pesadonas e a preto-e-branco, sem vídeos nem webcams que pudessem passar a palavra. Difícil de imaginar. Mas eles imaginavam muito e concretizavam a preceito. Era gente práfrentex. A Agnetha fez o seu primeiro broche aos doze aninhos. Mas foi ao carteiro, que não era da família. Porque Agnetha apanhou a mãe a chupá-lo atrás dum pinheiro e, abelhuda como era, foi perguntar o que era aquilo. O que se iria fazer à criança? Proibir e condenar nunca foi o apanágio dos suecos, era dar largas à criatividade e explicar-lhe que as coisas são como são. O pai ficou aborrecido com o sucedido e nem acabou de fornicar a vizinha que lhe veio bater à porta a pedir açúcar nesse dia, sem lingerie alguma. Queria ter sido ele a encertar a Agnetha. Mas pronto, no Natal meteu-lhe o dedo no pipi e não se falou mais disso, a partir daí já era uma mulher.

Depois foi para a escola secundária; as mamas cresceram-lhe, mas não muito, e pensou que queria ser uma estrela. Que cantava bem e tinha presença e etc.. Coisas de menina. O professor de música incentivou-a enquanto avaliava as alunas da turma. Afinava o clarinete da Ingrid, esticava o trombone na Birgitta, dava uma gaitada de beiços à Freja, mas era à Agnetha que o professor solfejava com mais afinco. E Agnetha guinchava ali um si bemol sustenido, oitavas em série e um conjunto de movimentos pélvicos que sim senhor, auguravam-lhe um futuro promissor. Não exactamente como cantora, mas como artista de variedades no geral, assim dum modo muito abrangente.Agnetha vogou então pela Suécia, de Gotemburgo a Estocolmo, fornicando o seu caminho para o estrelato por bares, pequenos clubes e ocasionais festas populares. Num desses broches conheceu o Björn, que, como bom sueco com direito a umlaut no nome e tudo, fodia tudo o que viesse à rede. A Agnetha, porém, com a sua candura pueril e garganta funda, era diferente. Apaixonaram-se. Mesmo que Björn tivesse cara de parvo. Era um enfezadito com traços labregos. Mas tinha uma glande em forma de cogumelo que Agnetha apreciava porque coçava-lhe por dentro como ninguém. E também tocava uns intrumentos, tinha alguns conhecimentos no meio musical e possuía gosto por arte naïf, à imagem de Agnetha. Foram então em par cantando as suas pirosices por esses bares da Suécia, todos feitos em madeira, com lareira e várias cabeças de animais penduradas nas paredes. Aquilo foi giro, mas ao fim de algum tempo começou a tornar-se rotineiro: chega-se ao bar, fode-se junto à mesa de mistura, bebem-se uns copos, uns casais chegam e começam a foder, depois ligavam uma cassette e cantavam por cima enquanto o público se ia renovando entre copos e sexo oral, acabava a noite, sexo com o anfitrião e até um dia destes. “Precisamos de uma dinâmica nova, Agnetha”, desabafou Björn depois de limpar a pila na cara dela. O impressionante é que mesmo que estivesse a falar a sério, Björn mantinha sempre aquela expressão idiota e sorria com a franjinha a descair-lhe na testa. Agnetha chorou, agarrando-se a uma rosa para efeito dramático. Claro, picou-se e depois ficou a chorar com razão. Com ranho bem viscoso a descer-lhe do nariz e as sobrancelhas muito comprimidas. “Assim não dá. Eu não sou levado a sério e tu comportas-te como se fosses um pequeno pónei”. E disse isto quase a gargalhar. Mas estava desolado. “Precisamos de encontrar um equilíbrio. E um par fixo para o swing também, se calhar”.

Da misteriosa Anne-Frida não se conheciam registos significativos. Diz-se que veio da Noruega, era filha de um nazi e perdeu a virgindade para um urso num fiorde. Mas o nome dissipava dúvidas: era uma mulher Frida. No seu âmago, por nunca ter tido a oportunidade de conhecer o progenitor e por isso debater-se com dilemas paternais para toda a vida; e no seu sexo, assado de tanto foder. Anne-Frida era bruta que nem uma viking e não tinha pudor algum, conferindo uma vertente negra e niilista ao sexo como poucas. Volátil e mais morena do que se suporia, veio pedindo boleia e pagando com broches os salmões e bifes de rena que comeu no seu périplo pela fria Escandinávia, em busca de um sentido para a vida. Um dia estava Anne-Frida num desse bares de madeira com cabeças de animais penduradas na parede em plena orgia com uns convivas quando Benny reparou nela. Anne-Frida despachou quatro rapazes robustos que levantavam camiões Scania com a pila enquanto fazia fisting em duas amigas que jorravam uma substância translúcida das suas vulvas. Era invulgar até para os padrões suecos. Benny não se fez rogado; limpou a baba que pendia da sua boca e aproximou-se da mesa. “Olá. Sou o sr. Anderson. Muito prazer.”. Anne-Frida olhou para Benny e preparava-se para desabatoar-lhe as calças mas Benny travou-a. “Por favor, vamos para um lugar mais recatado conversar... Deseja acompanhar-me ao meu Volvo?”. Anne-Frida não pensou duas vezes, ela estava numa de apanhar boleia outra vez. E uma vez chegados ao Volvo, Benny deu ordem ao motorista “Johansson, arranque”. “Para onde, sr. Anderson?”. “Arranque e deixe-se ir”. Anne-Frida sorriu “És um gajo com nota!... Mamma mia!”. Benny olhou para Anne-Frida, notou a felicidade rebelde do seu sorriso e sentiu uma lâmpadazinha a cintilar na sua mente. Daqueles bolbos incandescentes com fraca eficiência energética, naquele tempo era o que havia. “Um dia”, confessou Benny enquanto afagava a cara dela dentro do carro a vaguear pelas ruas húmidas de Estocolmo, “vamos fazer coisas grandes com essa frase”. “Que coisas, pá?”. “Depois conto-lhe. Importa-se que lhe apresente o meu pénis, senhora...” “Anne-Frida! Sim pá, mete lá o coiso de fora!”. Foi uma noite longa dentro das noites longas da Suécia. Deambulando a média rotação com correntes nos pneus sobre a camada de gelo na estrada, rasgando a fria noite em direcção a lado algum. Pararam apenas para reabastecer e para o Johansson também ter algum prazer oral. No raiar do dia, aconchegadinhos com um cobertor junto a uma fogueira numa planície coberta de musgo a ver o nascer do sol, sabiam que iriam ficar juntos por muito tempo, percebendo a química inexplicável que os unira. Menos o Johansson, que ficou a vazar da vista num acidente macabro durante um jogo de hóquei no gelo e deixou de conduzir pouco tempo depois.

Benny tinha queda para o negócio. Era de boas famílias, nacionalista, achava que os dinamarqueses eram quase africanos e abominava a social-democracia de Olof Palme; matá-lo-ia se pudesse. Foi skinhead mas ficava sempre por casa a masturbar-se para cima das revistas pornográficas que a professora mandava para tpc, na parte dos alemães com bigode e pindurezas à mostra, quando queriam ir mandar pedras à joalharia do judeu. Era um betinho na terra dos betinhos, uma espécie de sumidade beta, um obcecado pelo formalismo. Pedia licença à empregada antes de a sodomizar e tratava-a sempre pelo apelido. Mesmo na fase hippie, era um betinho de pullover e possuía um modo irritante de pronunciar “skårg jöp!”, uma espécie de “como é que é malta, tudo em cima?”, que secava as mulheres. Mas, enfim, tinha dinheiro, podia diletar-se por aí à vontade. Comprar uns instrumentos, gravadores, mesas de mistura e coisas assim. Produzia uns jingles por diversão. Conseguiu entrar no top-40 sueco com uma melodia para um laxante à base de ervas do ártico. O efeito foi tal que a Suécia se mobilizou para comprar esse miraculoso laxante, persuadida pela melodia infecciosa daquele jingle. E toda a Suécia fez muito mais merda nesse ano do que nos anos anteriores ou subsequentes, segundo um estudo da Universidade de Lund. Benny leu os sinais e mentalizou-se que poderia ser um flautista de Hamelin, manipulando as massas através da música para a adesão à sua concepção de Estado: um sistema baseado numa economia fechada ao exterior, na repressão de valores igualitários e na supremacia do homem branco escandinavo. Até tinha a letra para o primeiro hino, “Framåt svenska bröder”, mas, beto como era, não queria ter o trabalho de cantar e que fossem outros a dar o corpo ao manifesto. “Podia ser a minha porta-voz, senhorita Anne-Frida.Você possui a desenvoltura adequada para passar a minha mensagem duma nova ordem social”. “Achas? Eu é mais tricot e cenas, tenho lá cabeça para isso”. “Mas, Anne-Frida, repare...” “Mas repara o quê, pá? Queres ter sucesso ou não? Se queres é dar o que o povo quer e não essas merdas políticas, pá”. Benny deixou-se levar, que se lixe; no fundo dava menos trabalho. Mudar a sociedade era capaz de ser demasiado ambicioso para quem dispunha de uma frota de Volvos e Saabs com motorista incluído, criadagem para lhe tratar das chatices e acções da Ericsson. “De acordo, senhorita. Posso então proceder à degustação do seu clitóris para selarmos o início deste projecto?” “Anda lá lamber-me a carpete, pá, fui meter umas extensões na pintelheira para quê, afinal?”

Foi numa feliz coincidência do destino que estes dois pares se cruzaram e mudaram o futuro da música pimba, e do mau gosto no geral, a uma escala internacional. Tudo ocorreu quando Fredrik, o fiel alce de Agnetha, faleceu num bizarro acidente de jardinagem e ganhou, por mérito próprio, direito a ficar com a cabeça pendurada na parede dum daqueles bares de madeira que pululam pela Suécia. Agnetha foi convidada para a cerimónia de descerramento das hastes de Fredrik. Ela poderia cantar as suas chachadas melodramáticas com o Björn, haveria happy hour e aquilo que era costume dar-se aos clientes nesses bares suecos, os salgadinhos e o sexo em grupo sem qualquer espécie de protecção. Benny e Anne-Frida estavam particularmente enfadados nesse dia. Benny tinha passado o dia a espalhar Halibut nas bordas feridas da Anne e esta ainda não havia sequer esfregado o pito. Saíram até ao bar para emborcar uns copos, fumar umas cigarradas e ver se pelo menos presenciavam sexo porreiro entre estranhos. Sempre distraía. As coisas principiaram mornas, quase ninguém presente para momento tão solene, só uma gorda de cu para o ar numa mesa ao canto com uma cerveja a morrer diante dela, numa espera algo impaciente para que alguém tomasse alguma iniciativa. Tinha um rabo demasiado flácido e com covas e Benny, depois dum dia daqueles, suspeitava de hemorróidas e não mostrava interesse. Porém, assim que a voz maviosa de Agnetha soltou um gentil “sova, sova bra min söta älg...”, Benny despertou da sua modorra. “Mas... mas que voz... que presença... Anne-Frida, escuta?” “Ja, det är okej... É fixe, a chavala”. Björn acompanhava e sorria, parvo, com a sua guitarra acústica sobre o joelho e pé sobre um banquinho, destapando a meia branca, mesmo à totó. Pelo canto do olho, reparou no olhar compenetrado de Benny e no desdém petulante de Anne-Frida ao fundo. Agnetha vivia com intensidade o seu momento de homenagem a Fredrik, “varför, åh varför, min gud...”, agarrada em lágrimas à cabeça do seu adorado ex-animal, perante a complacência do dono do bar que polia um copo e a flatulência natural da gorda que passara muito tempo de cu para o ar. Quando finalizou a actuação, Benny irrompeu numa ovação desmedida, bradando “Bravo! Bravo! Uma maravilha! Bravo!”. Agnetha sorriu, envergonhada, fungando e esfregando os olhos. Björn obviamente que também sorriu, mas desta vez era mesmo para sorrir. “Obrigado. Muito obrigado”. “Querem proporcionar-nos o prazer da vossa companhia, por obséquio?”. Agnetha e Björn entreolharam-se. Ambos estavam mais que contentes pelo convite e aceitaram-no com um enfático “självklart!” em uníssono.

Uma forte empatia pairava sobre a mesa com os quatro reunidos. Todavia, incapazes de expressar os seus sentimentos como bons nórdicos, gerou-se um silêncio embaraçoso por uns instantes. Todos sorriram de forma constrangida, o que só era um trunfo para Björn, que estava habituado a passar por parvo. Björn interessava-se pelo desafio que Anne-Frida silenciosamente lhe colocava, ao mordiscar o copo e ao descrever curvas muito largas ao cruzar as pernas. Pela cabeça dele desfilavam mil fantasias. Aliás, pela cabeça dos outros também: Anne-Frida queria ver Agnetha nua e enfiar-lhe os dedos na rata, para ver se a teria tão lubrificada como a dela; Benny abanava a cabeça e esfregava nervosamente as mãos, também queria papar a Agnetha e deliciar-se com o gemer da sua gentil voz; e a própria Agnetha já esquecera o Fredrik e estava agradada com o interesse de Benny pelo seu talento, gostava de meter a pila dele dum lado e a de Björn do outro e chupá-los à vez de joelhos. Teve de ser a Anne-Frida a chegar-se à frente. “Ora bem, já que ninguém avança, avanço eu: ó Benny, mostra aí a tua sarda à gente”. Todos riram de excitação. Estavam em brasa. Benny imediatamente cumpriu e desfraldou o seu garboso mastro empinado. Agnetha esbugalhou-se e inclinou-se, boquiaberta. “Sim, o meu Benny é tudo isto, querida. And the winner takes it all”, ufanou-se Anne-Frida, abocanhando o falo de Benny todo até ao fundo. Björn, ainda mais parvo que o costume, aplaudiu. “Uau!”, e deu uma palmada no rabo de Agnetha, do género, “estás a ver aquilo?”. Agnetha virou-se e respondeu com um tabefe jovial em Björn dizendo “ai,  és tão parvo!”. E realmente parecia. “Vá, Agnetha, despe-te lá para os senhores”. Agnetha deixou cair o vestido e revelou a sua pungente forma física. Benny teve um estremecimento. “Perdoe-me, Anne-Frida... mas concede-me a liberdade de afagar aquele curvilíneo corpo feminino?” “Knowing me, knowing you... there is nothing I can do”.  E Benny foi agarrar-se a Agnetha, faminto. A Anne-Frida não lhe restava outra opção senão tentar a Agnetha depois ou entreter-se com o Björn, o que não lhe parecia propriamente fantástico. Porque o Björn parecia um parvinho de soquetes brancos. “Prontos, então saca aí o teu material para a gente ver como é que é isso...”. Björn sabia que iria surpreender e meio jocoso atirou: “well, take a chance on me...”. E assim que Björn soltou o seu cogumelo, Anne-Frida admirou-se. “Ena pá, parece o Napoleão... pequenino mas com uma grande cabeça! Vamos lá a isso!”. E Björn deu um toque a Benny, numa cena de camaradagem entre homens. “Pá, a tua gaja é de partir o côco... Chamou-me Napoleão!”, “Com efeito. Ela é muito prazenteira... Quando finalizarmos este acto e nos ejacularmos, podemos conversar sobre umas ideias que tenho em mente?” “Sim, sim, claro!”. Ainda demorou. Experimentaram várias posições, trocaram de parceiro algumas vezes, as ideias explodiram; foi um festival de sexo e criatividade. Apreciaram-se as qualidades dos quatro elementos: Benny, enquanto Agnetha se deleitava sobre ele, contorcendo-se que nem uma amazona com o cio, sussurando os seus orgasmos em tons delicodoces, exultava “you’re the real dancing queen... so young and sweet, maybe only seventeen...”; Anne-Frida, quando com o falo de Björn bem entalado dentro de si, vociferava “Gimme! Gimme! Gimme!” e Björn, suando pelos poros, aplicava-lhe a dose de carne solicitada com afinco. “Voulez-vous? Ah-ha... Ah-ha”. A gorda que estava de cu para o ar mudara de posição e ficara a assistir, tocando-se solitária e sentindo-se frustrada pelo abandono. Virou-se para o dono do bar que batia uma punheta junto aos quatro, ignorando-a olimpicamente desde o início, e, aproveitando um nano-segundo em que ele olhou para ela, revelou-lhe amargurada “one of us is crying...” com as mamas quase a roçar no chão de tão tristes. O dono do bar encolheu os ombros e pronto, foi comer a gorda. Também para fidelizar a clientela. Juntaram-se então todos numa orgia alargada e ficaram íntimos uns dos outros, excepto da gorda, que só levou do dono do bar e não se misturou com os outros. Há limites. Mas todos acabaram felizes e todos vieram-se mais que uma vez. E assim, de uma penada, foi gerada a inspiração para uma série de êxitos que viria a mudar o mundo. Especialmente, o mundo dos casais pouco sofisticados. Quando saíram do bar, a confiança que emanavam era tanta, a euforia tão desbragada, que sentiram que teriam o mundo a seus pés, seria somente uma questão de tempo. Até a gorda renovou as suas esperanças num futuro com menos gatos e mais pila, mas infelizmente seria atropelada por um eléctrico em circunstâncias nunca esclarecidas no solstício seguinte e passaria o resto dos seus dias a defecar por um catéter. Já o dono do bar quedou-se com sentimentos agridoces: é verdade que ainda se divertira com a Agnetha e a Anne-Frida, mas sentiu que poderia ter contraído uma doença venérea porque a gorda não parecia saudável e tinha comichão na zona genital. E só tinha vendido cinco bebidas a noite toda.

Abençoados pelas boas graças da fortuna, os quatro encontraram pouca resistência na ascensão ao firmamento  do sucesso. Foi uma época orfã de símbolos culturais. Eles souberam explorar esta conjuntura, aliando a visão pragmática de Björn e revolucionária de Benny à presença inocente de Agnetha e reguila de Anne-Frida. As coisas fluíam com uma naturalidade impressionante. Agnetha dizia numa entrevista “I have a dream” e o Björn era logo “Pronto, grande título, bastante original, já tenho aqui uma melodia em mente!”... e o Benny “eu sugiro uma base em piano, entra a Agnetha e depois a Anne-Frida...” “Eu posso mostrar as mamas!” “Não, Anne-Frida, você canta com a Agnetha, está bem?” “Okej...” “Pronto, vamos para os Estúdios Polares gravar enquanto isto está quente?” “Vamos lá!” “Amigos para sempre!” “Siiiiiim!” “Um brinde à nossa relação!” “Posso mostrar as mamas agora?” “Hip-hip-hooray!” E era sempre assim, a fórmula não falhava: ideia do nada, música a acompanhar, letras banais a rematar, maquilhagem para cima do palco e pronto, estava ali um hit para durar gerações. E fornicações bem-dispostas nos camarins. Mesmo no Festival da Eurovisão. Embora fosse numa época em que apenas 60% deveria ser gay e, claro, ninguém assumisse. Mas foi um forrobodó e o primeiro sinal claro de que o êxito chegara em apoteose. Anne-Frida celebrou o triunfo fazendo questão de mexer em todos os pénis da orquestra residente. Houve deboche por parte de Benny, que, impulsionado pelo consumo frenético de pó branco e álcool, despachou todas as fêmeas da equipa jugoslava. E Björn, pela primeira vez em anos, deambulava pelos bastidores sem o seu costumeiro sorriso pateta cravado na face, ensandecido, semi-robótico, os olhos muito rubros e as bochechas muito salientes, talvez por se ter alongado demais com o rabo de algumas checoslovacas na cara depois de ter tomado uns comprimidos. Agnetha foi a mais recatada naquela louca noite. Deixou-se impressionar pela quantidade de flores oferecidas no camarim e ficou a cheirá-las qual Bambi. Mas nua. De modo a ficar em contacto próximo com a Natureza. Ela era assim. Quando lhe bateram à porta, Agnetha acudiu e quem estava do outro lado era um jovem latino, bem apresentado com a sua cabeleira pelos ombros, franja aprumada, patilhas exemplarmente desenhadas, um bigode farfalhudo, os pêlos subindo pelo torso vigoroso, até saírem pela camisa púrpura bem justinha e aberta junto ao fio dourado com um crucifixo na extremidade, calças brancas terrivelmente justas com lantejoulas laranja laterais e sapatos com tacão de vários centímetros. “Posso ajudar?” “Oye, perdona, me he equivocado, este no es el vestidor de España...” A visão de Agnetha despida não deixara o despistado espanhol indiferente. Era difícil resistir. Mas Agnetha nunca pensara em resistir. Jamais. Depois as coisas podiam ser pior se ela contrariasse o destino. E o destino era o amor. O sexo. É tudo a mesma coisa, afinal. Só pode haver sexo com amor e o amor só acaba bem com sexo. Achava ela. Tinha lido esse comentário na “Astrid”, a “Maria” sueca, e subscrevia. Envolveram-se os dois numa noite a sós no meio do chão, rodeados de flores e velas, parecia que estavam num unplugged. Agnetha achou que foi “uma magnífica noite de amor”; o espanhol considerou que fora “un follazo, tío, te lo cuento...”. Demoraram-se tanto que Björn apanhou-os no regresso ao camarim e, ainda meio atarantado, questionou “Mas quem é este gajo?” “Este é... este é um tipo que ia a passar... é óptimo mas não sei como se chama...” “Hola, soy Fernando, qué tal?” “Fernando?”, rosnou Björn. “Então mas não vieste curtir connosco para ficares aqui sozinha com o chico?” “Ora, Björn, que é isso? Estás com ciúmes?”. Björn rodou lentamente a cabeça , como um autómato enguiçado, na direcção de Agnetha. E pôs-se a sorrir, restaurando o seu costumeiro aspecto de tolinho. “Eu? Não!... Um sueco não tem ciúmes”.

Os discos de ouro começaram a acumular-se. Empilhavam-nos nos salões das suas mansões entretanto adquiridas e fodiam em cima deles. A Anne-Frida cortou os lábios vaginais quando pretendeu introduzir um disco de ouro austríaco dentro de si, reforçando a pertinência do seu nome. Benny ia para os pacatos parques de Estocolmo distribuir discos de ouro aos patos no lago. Agnetha espetava discos de ouro nos olhos como tratamento de beleza alternativo ao pepino. Björn praticava tiro aos discos de ouro aos fins-de-semana num bosque para os lados de Malmö. As coroas suecas enchiam-lhe os bolsos e enrolavam-nas para cheirar droga, como deve ser. “Money, money, money!” “Ena pá! Grande ideia! Tipo Pink Floyd mas sem ser Pink Floyd, estás a ver?” “Muito bem; e se eu começasse com o piano, entravam as duas ao mesmo tempo, a Agnetha e a Anne-Frida...” “Eu posso tirar as cuecas!” “Cante, Anne-Frida, cante como você sabe.” “Temos êxito?” “Temos êxito!” “Fodamos então sobre os discos de ouro!” “Sim, sim! Fodamos!” E era assim tão fácil, numa cadência avassaladora de sucessos e orgasmos em simultâneo. Ligava-se o rádio e lá estavam eles, da Rodésia à Birmânia, da República Democrática da Alemanha ao Zaire. Se houvesse rádio nesses lugares, bem entendido. Em todas as discotecas e em todas as revistas estavam presentes. Tornaram-se familiares, possuir um disco deles era quase tão obrigatório para a inserção social dum indivíduo como usar perfume patchouli. “We’re bigger than Jesus!” “Espera aí, alguém já disse isso... não podemos usar essa ideia...” “E se deixássemos isso para um lado B? Para um single de Natal? Tem Jesus no nome...” “Eu posso enfiar objectos pontiagudos no cu, sem problema!” “Hmm... Se calhar nesta situação ajudamos a Anne-Frida, não acham?” Estenderam a passadeira no Atlântico e foram conhecer o sonho americano a bordo dum avião da SAS. Com direito aos estupefacientes, álcool, charutos cubanos e os escravos sexuais que quisessem. Espalharam charme de costa-a-costa, os americanos consideravam-nos algo exóticos mas altamente credíveis como eventuais parceiros sexuais e não tinham problema em investir neles. Casais a cantar estavam na moda. “Há uns tipos que estão mesmo a vender por aqui agora que são os Fleetwood Mac”. “Fleetwood Mac? Que é isso?” “Aparentemente, há dois casais na banda que se estão a separar... e a cena é que isso ainda os torna mais famosos.” “Horrível!” “Como são capazes?” “Não são nórdicos...” Sim, eles chegaram ao topo do mundo. Os egos estavam nos píncaros. Dali de cima observavam tudo muito difuso e longínquo. No Evereste da ilusão, as nuvens são de algodão-doce, os dias são todos solarengos e os anjos têm sexo e são marotos. Pelo menos, foi o que Anne-Frida contou numa entrevista à Västmannagatan, a Rua Sésamo lá do sítio . O resto da gente apenas podia roer-se de inveja.

E um dia, ao chegar a um ensaio, Björn disse “eh pá, hoje não vamos tocar a “Fernando””. “Como assim? Um dos nossos maiores sucessos?” “Não sei, não gosto muito do tom dessa canção, não traz boas vibrações, já está muito batida... Vamos antes tocar a “Waterloo”, um clássico... que acham?”. Agnetha ficou tão escandalizada que terminou o que estava a fazer com umas bolas chinesas. “Como podes tratar tão mal a “Fernando”? Que mal ela te fez?” “Estou... estou farto de tocá-la todas as noites. O refrão já enjoa.” Benny parou de se masturbar e tentou a diplomacia “Bem, se calhar tocamos a “Chiquitita”, que é bem aceite por todos e logo se vê...” Agnetha não se ficou. “Porquê a “Chiquitita”? Eu nunca vi nada de especial nessa!” Benny explicou “Acho que é uma canção bem arranjada, excelente título, o público gosta.” “Tu gostas da canção porque ela te lembra a espanhola que andaste a comer lá na Eurovisão aqui há atrasado!”, disparou Agnetha, incapaz de controlar a verborreia devido aos opiáceos no corpo. E Björn “Tu comeste uma espanhola chamada Chiquitita na Eurovisão em segredo?” “Sim... não disse nada porque foi algo muito íntimo que não se voltará a repetir... e para não ferir mais a susceptibilidade da Anne... Chiquitita era uma jovem muito púdica e reservada, penso que se inscreveu num mosteiro...” Mas Anne-Frida avançou sem rodeios “Pfui... Quem andou a papar a Chiquitita depois fui eu e ainda tenho o contacto dela, ‘tás a compreender, Benny? Ela está em Ibiza, percebes? E tenho polaroids dela nua.” Benny ficou indignado com a surpresa “Você anda enrolada com a menina Chiquitita, Anne-Frida?” “Bem boa, a Chiquitita... you and I know.” Björn sorria, mesmo estando a agastar-se “Oh Anne-Frida, francamente... Achas bem andares por aí a tesourar às escondidas? Não somos suecos? Isto não era para ser tudo às claras?” “Ei, eu não sou a tua mulher, por isso poupa-me os sermões, pá!” “Mas foste tu que deste nome ao meu caralho!” E Agnetha desabou em lágrimas. “Parem! Parem! Deixem-me sofrer sozinha!” Benny não disfarçou o incómodo “Veja se controla as criancices da sua fêmea, sr. Ulvaeus. Torna-se insuportável!”. “Eu sei lá se ela é minha mulher ou não, caraças! Quem sabe? Ela já rodou por metade do mundo!” “Ahahahah, vocês são ridículos!”, glosou Anne-Frida enquanto acendia um cigarro na patareca. “Cale-se imediatamente, Anne-Frida!” “Não fales assim com ela! Bruto!”, reagiu Agnetha. “Só reages para estas coisas e para o Fernando não é? E eu? Que te tirei do buraco? Há quanto tempo não me engoles a esporra, Agnetha? É tudo por causa disto?” “Mas eu continuo a engolir a esporra, o que estás para aí a dizer?” “A minha eu sei que ainda engole...”, confessou Benny. Anne-Frida disponibilizou-se “Pá, não seja por isso, eu engulo-a na boa. Mas a do Fernando sabia melhor”. Agnetha não se controlou “O doce e terno Fernando? O que jurou que jamais olharia para outra mulher que não eu?! Oh, infâmia!” Björn enfureceu-se. À gargalhada, totalmente a despropósito. “Pois bem, que se lixe... eu vou sair daqui e partir uns discos de ouro enquanto os há e vocês podem ir foder o resto da Espanha!” Bateu com a porta e Anne-Frida esmagou um gira-discos no chão “Foda-se! Puta que pariu esta merda toda!” Benny escondeu as mãos na cabeça, derrotado sobre o piano. Agnetha chorava e cheirava cocaína em simultâneo até as lágrimas tornarem o pó numa espécie de papa. A ressaca chegara sem avisar, com um estrondo condizente com o estatuto e a pedrada deles todos. 

Ninguém ficou para recolher os cacos daquelas relações. Afinal, são suecos. Eles ao fim de umas semanas já estavam emocionalmente recompostos, sem ressentimentos. Além do mais, a fama permanecera e o efeito-Fleetwood Mac provara-se verdadeiro. Já só era preciso dormir à sombra da bananeira, como o Benny tanto gostava. Os royalties eram tantos que podiam oferecer kits de ferramentas Husqvarna às aldeias de lenhadores do condado de Gävleborg todas as semanas por beneficiência e publicidade, até eles começarem a enlouquecer com tamanha acumulação de correntes, serras e machados e desatarem numa natural espiral de assassinatos sangrentos. O dinheiro ajudou a comprar drogas que por sua vez ajudaram a esquecer as turbulências do passado. E eram drogas das boas, mas o passado deixa sempre um resíduo indelével, como ficheiros fantasma perdidos num disco a ocupar memória. A Anne-Frida precaveu-se e passou só a frequentar galas da alta-sociedade e a relacionar-se com elementos da nobiliarquia europeia. Conseguia comprar os convites com moeda e também com recurso à sua abertura sexual. Ia para os palácios da Baixa Saxónia construir cenários semelhantes aos do “Eyes Wide Shut”, mas sem máscaras nem planos cobertos, era luxuoso e totalmente explícito. Tinha sempre o seu saquinho de pó consigo para mandar uma fungadela rápida e gostava que a tratassem por “Condessa”. Houve um ponto em que finalmente aderiu à depilação genital. Björn regressou ao circuito de bares de madeira com cabeças de animais penduradas nas paredes, fornicando aqui, bebendo acolá, viveu com algumas mulheres, aperaltou-se mais, viajou de mochila às costas pela Lapónia, adoptou uma ninhada de lemingues que não foram a correr para o penhasco, enfim, andou por aí como um gajo normal com milhões de coroas em bancos suíços. Agnetha foi em busca de Fernando, mas Fernando agora chamava-se Angelita e morava com um sujeito a quem chamavam Nacho em Benidorm. “Perdona”, foi tudo o que ele/a foi capaz de dizer, com as lágrimas a esborratarem toda a sua excessiva pintura facial. Agnetha recolheu-se então à sua Jönköping natal para tratar do jardim, animais de estimação e da sua estimulação sexual a um nível espiritual. Casou, descasou, teve filhos, netos, crias de cavalo e tornou-se numa senhora responsável que só entrava em festas de swing se todos usassem preservativo e mostrassem os seus exames médicos efectuados nos seis meses anteriores. Recusou muita gente só porque apresentavam exames com sete meses ou porque tinham o nível de triglicéridos demasiado elevado. Um dia Benny ligou e marcou um inesperado encontro a quatro. “Skårg jöp! Nem vão acreditar na proposta que tenho em mãos... Hollywood quer fazer um musical inspirado em nós!” “Um musicol? A sério? Adoro musicóis!” “Quais são os termos do music hall, Benny? Quem vai entrar? Quanto nos pagam?” “Okej, conta mais, deixa-me só mudar a pilha do vibrador”. Benny estava entusiasmadíssimo. “Portanto, para ser sucinto: sim; muitos milhões de dólares; o James Bond e a Meryl Streep. E depois Broadway. Sempre a facturar. Só temos de dizer sim. Como é que é?” Perplexos com o que ouviam, os restantes elementos sentiram o coração a mil. “Como é que é isso? É dizermos que sim e passamos de porcamente para estupidamente ricos?” “O James Bond? Vou papá-lo nos Óscares”. “Eh pá, ó Benny, a sério que não arranjaste nada melhor que a Meryl Streep? Quer dizer, dá prestígio... mas podia ser outra coisa, não sei se estás a ver...” Benny não queria entrar em delongas. “Preciso de uma resposta rápida. Nós nem precisamos de estar juntos muitas vezes... Só precisamos de aparecer ocasionalmente. E rir muito, para ajudar a vender junto do público-alvo.” Ao ouvir aquelas palavras, o reflexo de Björn foi sorrir outra vez, com uma renascida patetice que há anos se eclipsara do seu rosto entretanto actualizado. Agnetha parecia uma garota aos saltinhos com a Anne-Frida. “Estás a ouvir isto? Vamos ser imortais!” “E ricas! Ricas como tudo!” E com toda esta exaltação e proximidade física entre ambas, a velha química despertou do seu longo torpor e elas começaram a beijar-se loucamente na boca, com a língua, afagando os cabelos de forma desabrida, sentindo os glúteos, apertando os seios, numa torrente incontrolável de desejo súbito. Björn virou-se para Benny a dar uma de engraçado “Bem, penso que estamos todos de acordo, não é?” “Correcto. E se nos juntássemos às duas meninas que estão ali com o fogo no corpo? Que pensa disto, sr. Ulvaeus? Pelos bons velhos tempos... Sente-se em forma?” “Sim! Vamos a isso, Benny!” E Benny e Björn removeram calmamente as suas roupas, sempre olhando para Agnetha e Anne-Frida, que se rebolavam selvagens pela relva daquele parque público numa idílica tarde de Verão sueca, assustando os incautos esquilos.