25 novembro 2015

Protocolos

O protocolo pode ser definido como “o conjunto de formalidades e preceitos que se devem observar em cerimónias oficiais ou actos solenes”. O protocolo pressupõe maçada. Quando imaginamos mentalmente a imagem dum protocolo, o que nos vem à mente não é um grupo de louras mamalhudas em biquíni, champanhe ou música trance; é sim um grupo de homens grisalhos ou carecas muito sisudos e em trajes muito engomados, palavras tão grandiosas quanto de circunstância, discursadas num ambiente tão pomposo quanto frio – e geralmente com más condições de som e de acústica em geral, o que dificulta ainda mais a compreensão –, bem como uma completa submissão a regras de etiqueta tão rígidas quanto tacitamente aceites pelos intervenientes. O grande frisson advém das costumeiras fugas ao protocolo, o gozo supremo dos jornalistas, cometidas por elementos cuja distracção momentânea lhes custará severos olhares de reprovação, tão acutilantes quanto embaraçados, pelos restantes membros protocolares. Sim, o protocolo é tão entediante que a fuga ao próprio é tida como natural, mas nem por isso perdoada. Um pouco ao contrário dum Estado qualquer deste mundo no qual o prisioneiro que se evade da prisão e é recapturado não receberá nenhuma pena adicional, porque esse Estado reconhece que fugir das grandes chatices é simplesmente humano e racional (é verdade e penso que seja o México, mas googlem para terem certezas); não, o desrespeito ao protocolo, especialmente aquele que é cabalmente perceptível até para a mais ingénua dona-de-casa, será glosado e exposto vezes sem conta, partilhado até à exaustão, como uma piada fácil ao som da marcha do Benny Hill, que todos gostamos de figuras parvas cometidas pelos outros.

Mesmo na minha terra e enquanto miúdo, havia protocolos muito concretos que devíamos respeitar. Todavia, não eram assim tão aborrecidos - pelo menos, para alguns. Com toda a conotação de algazarra que lhes estava associada, estes actos assemelhavam-se mais a “praxes” do que a “protocolos”. Assim de cabeça, quando alguém se apresentava de ténis novos, havia que “estreá-los” condignamente: a tradução prática deste protocolo consistia no pisar dos ténis em causa ou em sujá-los com um pouco de terra. Se houvesse cinco indivíduos que notassem no novel calçado, cinco indivíduos deveriam molestar inequivocamente esse calçado e o portador do mesmo só tinha mais que comer e calar, aguardando pacientemente pela sua oportunidade de retribuição. Também houve uma fase em que qualquer ida ao barbeiro significava uma protocolar reacção de “cabelinho à foda-se…”, dirigida com sentido desprezo a quem se apresentava com um novo penteado. Conta-se que a expressão nasceu por quem, em tempos imemoriais, só conseguiu exprimir “fooooooooda-se…” (assim mesmo, demorando no “o” para conferir mais despeito) perante um corte de cabelo que se lhe afigurou como anormal ou mesmo ultrajante. O certo é que a tradição pegou e assim desabrochou um protocolo. Também entre os rapazes se constituiu o duro protocolo de fazer “amostras” aos outros rapazes acabados de chegar ou a outros sacos de pancada, que consistia em revelar de forma bruta e discutivelmente humilhante as partes baixas desse rapaz em público, ou até a contundir-lhe os testículos com o recurso a objectos pesados ou aos próprios punhos cerrados. Há quem se refira a isto como “bullying”, mas isso é um conceito muito urbano deste século; antigamente, estávamos perfeitamente concentrados no protocolo e era a ele que nos entregávamos, sem nos alhearmos com mariquices sociológicas. E quando se começava a fumar, havia o estranho hábito de virar um dos cigarros ao contrário quando se abria o maço. Havia quem se agastasse caso o ritual não fosse cumprido. Era um protocolo inexplicável, quiçá com raízes supersticiosas. Ou então era simplesmente estúpido.

De qualquer forma, estes exemplos reflectem uma face menos aborrecida do protocolo. Isto é, o protocolo não tem de ser um fastio, em ocasiões concretas até pode ser um salutar reforço de um determinado espírito de comunidade, de consolidação de uma tradição genericamente aceite. Mas a maior parte das vezes é mesmo uma chatice pegada. E em determinadas circunstâncias ultrapassa a fronteira do inofensivo bocejo para entrar nos territórios da dor. Uma dor pungente e depreciativa, como se uma crise dum pequeno nervo dentário se alastrasse e se magnificasse no sistema nervoso central. Ele há protocolos plenamente insuportáveis para certos intervenientes.

Por exemplo, e correndo o risco de datar este texto, o empossamento de António Costa como Primeiro-Ministro por Cavaco Silva será seguramente um protocolo muito difícil de suportar pelo último. Que lhe dessem todos os sapos, dragões, elefantes deste mundo para engolir; que lhe enchessem o sistema digestivo dos mais aguçados espinhos, cardos, rosas e prosas que pudessem arranjar; que lhe arrepanhassem a pele a sangue frio com um bisturi e o deixassem em carne viva num tanque de álcool etílico puro e depois jogassem com azeite a ferver naquilo que sobrasse; que lhe rebentassem o esfíncter com um pau de um furioso cavalo negro africano durante horas ininterruptas, depois de uma sobredose do mostrengo em Pau de Cabinda e de Libidium Fast, e com o Futre a falar-lhe parvoíces ao ouvido enquanto durasse esse martírio; que lhe hackeassem a página no Facebook e que revelassem fotografias da sua juventude, onde aparecesse mascarado com um tule cor-de-rosa cheio de folhinhos e com a inscrição “pões-me louco, Dias Loureiro”; que lhe cometessem as atrocidades que os árabes não têm coragem de pensar em fazer aos judeus, mas que lhe dispensassem desse tormento que é ter de indigitar formalmente o Costa.

É que para Cavaco, esse acto solene é muitíssimo pesado, muito mais do que o ambiente já de si grave da Ajuda. There is much more than meets the eye. Cavaco tem pesadelos com esta tomada de posse, em pleno salão nobre do palácio. Neles Cavaco surge titubeante, como num 10 de Junho qualquer, pálido, suores frios, semi-frios e quentes a alagarem-lhe as roupas, que parecem estar mais apertadas que o habitual. Costa e todo o seu séquito de ministros e secretários de Estado estão ufanos, sorridentes, eufóricos até, contrastando com a inexpressão de uma série de sumidades indistinguíveis e o mau-estar mudo do governo cessante. Há flashes e barulho de fotografias a serem tiradas e este é todo o ruído que perpassa aquele salão cerimonial. Estão todos alinhados e aprumados. Depois, Cavaco, a custo, aproxima-se do microfone e profere, enfrentando o clarão dos potentes holofotes que o cegam, “na qualidade de Presidente da República Portuguesa (…), procederei então ao empossamento do Dr. António Costa como Primeiro-Ministro do XXI Governo Constitucional”. Costa dá uns passos em frente e aproxima-se da mesa, daquele imponente mesão no centro do salão que parece já ter sobrevivido séculos sem nunca nenhum caruncho lhe ter chegado. Sorridente, como sempre. Cavaco tremelica. Em cima da mesa está uma terrina de prata brilhante sobre uma bandeja igualmente prateada e um pequeno atoalhado branco, impecavelmente dobrado, à ilharga. Dentro da terrina, água. Morna. Cavaco detém-se por um momento frente-a-frente com Costa e faz-lhe um pequeno sinal com a cabeça. Costa percebe que é a sua vez de cumprir com o protocolo. E então revela finalmente aos presentes as suas calças compradas especialmente numa sex shop para esta ocasião, com um grande orifício na área genital donde brotam os seus testículos. Costa está vestido com um fato de corte italiano e gravata monocromática e calçou uns belos sapatos reluzentes, mas tem os tomates ao léu. Dois genuínos colhões de homem maduro, ligeiramente descaídos – se calhar, esteve a bater demasiadas punhetas recentemente. Olha de soslaio para as objectivas, como que a perguntar “estão a conseguir apanhar bem este par de colhões?”. Os flashes multiplicam-se, como que a responder “sim”. Cavaco olha sem paixão para os colhões retintos de Costa, que fez a depilação de propósito para a cerimónia, mas ainda deixou um ou outro pintelho espetado para não duvidarem da sua masculinidade. Cavaco, engolindo em seco, lábios todos torcidos para dentro, molha as mãos durante poucos segundos na terrina. As câmaras captam tudo. Depois, limpa o excesso de água no atoalhado, mas com tamanha deferência que nem sequer estraga as dobras. E então move vagarosamente as suas mãos no sentido dos túbaros de Costa, que nesta altura já assumiu uma pose de toureiro, mãos na cintura e flectindo a zona pélvica na direcção de Cavaco. Cavaco apalpa os colhões de Costa no meio da sala, junto à mesa, com todos os mais altos dignatários da nação presentes e todas as televisões a transmitirem em directo e a fazerem um zoom in nos tomates do Costa; há tweets sobre os dois pintelhos espetados do Costa, comentários sobre o volume das duas bolinhas do novo Primeiro-Ministro, mulheres que reparam nas unhas tratadas do Cavaco e da suavidade com que ele mexe nos colhões do Costa. Nota-se que Costa está a desenvolver uma ligeira erecção e há alguma agitação atrás dele, onde os vários ministros quase que se empurram para conseguirem ver o acto de empossamento mais de perto e há muito óculos a serem ajeitados, assim como algumas línguas mordiscadas e gente que sussurra “aperta-me esses colhões, porco!...” ou “foda-se, monhé nojento de merda!”, consoante as posições partidárias. Costa perde o sorriso; agora está concentrado na fruição do prazer, físico e mental, que lhe invade o corpo e o faz esticar os lábios escuros e carnudos para fora, com gotículas de suor a descerem-lhe da testa: está a ficar excitado. E Cavaco, sem olhar Costa nos olhos, vai revolvendo nos seus colhões, com os seus olhos mortiços e a saliva a empapar-lhe a boca. Cavaco pára por segundos para olhar para as objectivas e permitir aos fotojornalistas obter uma boa carteira de imagens em que Cavaco possa surgir fotogénico, na medida do possível. Há um frémito de flashes e fotografias. Costa solta, com o seu perfeito sotaque de filmes pornográficos espanhóis, enquanto balanceia suavemente o torso e deixa perder o controlo momentâneo dos sentidos, “Sí, señor Presidente… Sííííííí… Oh, sííííííii… Me pones loco… Oh sí… Sí… Síííííií… Uooooh… Empossa-mos, Cavaco!”. Cavaco cumprira assim o protocolo e Costa está formalmente empossado depois de finalizado este acto. O salão irrompe numa salva de palmas e os jornalistas andam doidos de um lado para o outro para conseguirem as melhores posições de reportagem. Costa está, decididamente, de pau feito, mas nem isso o demove de abraçar toda a sua equipa, um a um, verdadeiramente feliz. Um ou outro ministro olha de relance para os genitais do Costa e pensa em apalpá-los, mas inibe-se e acaba só por se roçar neles enquanto abraça Costa. Mas acaba por também ele ficar com pau feito e pensará em incluir este momento marcante no seu livro de memórias. No meio de tantas erecções e das atenções todas centradas nos testículos do indiano Costa, Cavaco retracta-se para as sombras. É um homem sozinho e vencido. Toda a sua expressão corporal exclama “derrota vergonhosa” em alto e bom som. Os seus seguidores não lhe dão sequer a veleidade dum simples aperto de mão. Não daquelas mãos que tocaram nos colhões do Costa. Nem pensar. E então Cavaco acorda, estremunhado. Anda com sonhos destes há semanas. A realidade, para ele, será quase igual à ficção que ele inconscientemente criou.


Há, portanto, diferentes categorias para os protocolos. Apesar de tudo, nem o mais efusivo dos protocolos abandona a ideia de parecer forçado e de constituir um evento nos antípodas de uma festa repleta de alegres convivas. Num óptimo de Pareto, as partes sentir-se-ão igualmente desmotivadas; quanto muito, haverá apenas uma parte mais agradada e outra que bem que preferiria estar noutro lado a fazer outra coisa. Mas a situação de desconforto protocolar perpetua-se, porque os protocolos raramente se discutem, por mais entediantes que possam ser. O protocolo é demasiado importante no seu simbolismo para ser discutido. É assim e assim deverá ser. O público geral até leva a mal não se cumprirem os mesmos preceitos de sempre. Por causa disto, Cavaco não será poupado à gigantesca humilhação pessoal naquele que será o seu último grande evento protocolar, o empossamento de Costa – admito que para ele este derradeiro protocolo estará algures entre o seu pesadelo e o murro no abono de família que antigamente sofriam os rookies da minha terra, pese embora toda a formalidade asséptica com que nos será apresentado. Senão algo ainda pior.

19 novembro 2015

Eddie Vedder

O Eddie Vedder enjoa. Já enjoa há algum tempo. Apanhei uma sobredose de politicamente correcto, deve ser esta a causa deste desgosto. Houve um tempo em que até achava piada aos cabelos compridos, camisas de flanela ou militaristas, calças gastas e botas ou outro calçado ratado. E também às exortações para a libertação do Tibete, às ondas do mar e praias prístinas, às crianças que nunca conheceram o seu pai, às referências a uma espécie de mescla entre Sérgio Godinho com José Afonso nascida no Canadá que era o Neil Young e aos gajos que andavam sempre com uma viola atrás, não fossem eles encontrar uma fogueira onde pudessem demonstrar toda a sua imperícia a tocar “Black” ou “Daughter”. Eu considerava que estas eram das melhores canções de sempre, mas naquele tempo ainda sabia menos da vida do que agora. Havia todo um conceito estético e espiritual associado ao Vedder, que granjeou grande sucesso na juventude chamada “fixe” nos anos 90 e cujos efeitos ainda se podem encontrar, com a natural adaptação aos tempos modernos. O Vedder era o super-fixe, o modelo a seguir, porque fazia música porreira e defendia causas ambientais e sociais de justiça inquestionável. Ele era o filho que qualquer hippie desejaria ter, a representação da rebeldia consciente, fundada e confinada. Não era um fogo contestatário niilista e vazio, de consequências imprevisíveis, como o que deflagra na juventude quotidiana; era uma fogueira que era olhada com certa parcimónia pelos poderes, que nessa altura estavam bem definidos e eram sobretudo pais e professores. A fogueira está sempre presente quando se fala de Vedder e das suas sósias, os pearljamistas, nem que como metáfora. Todos nós conhecemos algum pearljamista, algures na vida.

A fogueira consumava o apogeu do pearljamismo. Era aí que a malta fixe e preocupada com a sustentabilidade de recursos gostava de afirmar as suas vaidades, fomentando a queima da biomassa para calor e iluminação. A luz crepitante e as fagulhas inspiravam os pearljamistas a dedilhar a sua viola e a soltar um vozeirão artificial de quem está a engolir um microfone no fundo dum poço. Isso cativava as gajas, especialmente as adeptas de missangas, florzinhas no cabelo e malas volumosas a tiracolo, que respeitam muito os animais e fazem reciclagem. Se a gaja fosse vegetariana e dissesse que de religiões só o Budismo (“é mais uma forma de ser e de estar do que uma religião”), então era certinho que ficava caidinha. E todos sorriam muito e batiam palminhas no final de cada actuação esforçada. Era uma comunhão íntima entre os Homens e a Natureza, reforçada pelo costumeiro cigarrinho. De enrolar, claro, que o papel é mais natural e sempre baixa um pouco a receita das grandes corporações tabaqueiras internacionais, essas exploradoras sem pudor. Tenho para mim que grande parte dos pearljamistas se chamavam Nuno, eram baixinhos e magrinhos e estavam sempre a desviar o cabelo dos olhos enquanto diziam “iá, ‘tás a ver?”. Hoje em dia são programadores informáticos ou são comentadores televisivos e não revelam especial orgulho por poderem ter sido considerados sósias do Vedder. Porque isto do pearljamismo pressupõe que os indivíduos, seguindo todos a mesma cartilha, são muito seguros de si, avessos a rótulos e a outras caracterizações da “maldita sociedade capitalista”. Será o pearljamismo iconoclasta? Sim, para os casos que o profeta Vedder determinar.

Podemos dividir este tema de antipatia para com o Vedder em duas categorias. O primeiro tem a ver com o declínio evidente da banda dele. Duvido que eles tenham angariado muitos fãs nos últimos tempos com pecúlio tão desinteressante. As suas posições políticas e as suas letras fazem as delícias de toda uma turba moralmente inatacável, mas há uma sensação de que o disco – que não o suporte musical físico propriamente dito – está irremediavelmente riscado. Os primeiros cinco álbuns são bons, uns mais que outros, foram os que definiram o estatuto da banda e ainda se ouvem hoje em dia, nem que como colírio para a música ainda pior que se vai produzindo – alguma dela tenho mesmo dificuldade em categorizá-la como “música”; desde que veio o século XXI que os Pearl Jam são uma caricatura deles mesmos. Hoje, valem muito pouco e certamente valem muito menos do que a nossa nostalgia nos quer fazer crer. Já deviam ter parado de vez, assumido a sua desinspiração e continuavam a fazer umas digressões para os pearljamistas, sempre que se sentissem aborrecidos e/ou com falta de peso na carteira. Não os culparia por isso; afinal, é difícil estar sempre no top, ainda por mais na indústria deles. Modas vêm e vão, eles tiveram o seu tempo e agora é a vez de outros brilharem. Há apenas uns quantos fenómenos de sucesso que extravasam mais que uma década e os Pearl Jam não são decididamente um desses casos. O Kurt Cobain é que sabia das coisas e matou-se antes de decair. Resultado: não teve de andar a arrastar-se e a prolongar artificialmente a vida útil da banda, banalizando o que de bom foi feito. A banda envelheceu bastante, e mal, em termos musicais. Já está bem imiscuída no tal circuito dos “velhos”, das bandas que enchem estádios só pelo nome e mesmo que só esteja previsto soltar gases no cartaz, à laia duns U2. Os últimos álbuns dos Pearl Jam foram um ataque deliberado à memória deles, ainda que não tenham existido críticas assim tão contundentes a essas pobrezas musicais. O que se explicará pela simpatia socialmente aceite do Vedder.

O segundo aspecto vem desta sua imagem de afabilidade e da personagem em si. Se o Vedder fosse português, isto é, imaginem o Miguel Guedes por um momento, ele seria do Bloco de Esquerda. Tal como o Miguel Guedes. E isso é extremamente enjoativo. O Bloco de Esquerda exala todo um fedor de perfume chique misturado com fumo de cannabis que é francamente irritante. Eu só concebo gente normal do Bloco de Esquerda, vá lá, até aos 25 anos de idade, altura onde deverão, como sói dizer-se, “crescer e ganhar juízo”. A partir daí, se ainda continuam a apoiar o Bloco, é porque são manipulados ou são manipuladores (a ganza também ajudará a confundir as almas mais susceptíveis). O Vedder de hoje dia, como ele próprio confessou, é um gajo de bem com a vida e cujo eco das suas posições ganhou peso com o passar dos anos, ao contrário da sua música. Tem o seu pé-de-meia, gosta do seu vinho, faz o que quer. Isso de andar pendurado em tabelas de basquete e amuado com as revistas e as promotoras é coisa do passado. Mas, sentado no seu confortável cadeirão, ainda mantém a lengalenga de que os “capitalistas selvagens destruíram o nosso belo planeta”, “há fome por todo o lado”, “transgénicos nem pensar”, “devíamos ser todos iguais”, “segue os teus sonhos”, entre outras tiradas impregnadas de idealismo que seriam gozadas se proferidas por uma louríssima candidata a Miss Universo. A maior parte dos pearljamistas modernos também é assim, mas com uma diferença fundamental face ao Vedder: este pessoal não gosta de admitir que a vida lhe corre bem. É feitio e defeito. Então recrudescem a sua revolta “aos grandes interesses financeiros”, “aos machistas e sexistas”, “aos racistas e terroristas”, “ao Governo que não me disse que se eu estudasse psicologia não teria emprego”, entre outros alvos fáceis e genéricos. Mas até agora, a maior privação que esta gente teve foi quando ficou sem bateria no telemóvel durante meia-hora, que comida, roupa, viagens, hospitais e escolas privadas, gadgets e até idas os concertos dos Pearl Jam nunca lhes faltou.


O Vedder pode não perceber, ou estar-se a borrifar, que a sua ética aparentemente incontestável, aliada à música tão irrelevante conquanto pretensiosa, o poderá guindar ao patamar de ridículo onde o Bono está hoje em dia. Será uma heresia dizer isto aos pearljamistas. “Não, ora essa, o Vedder é sempre uma referência, um símbolo cultural, o Lennon da nossa geração”. Para mim, o Vedder está tão gasto como a roupa da moda dele. Tão gasto, tão insignificante e tão irrepreensível que nem sequer tem um fanático que lhe dê um tiro como ao Lennon. 

O Nuno está melhor. Já não está tão escanzelado, embora também já não tenha tanto cabelo. Arranja-me uns filmes fixes e tem um bom gosto musical, em termos gerais. Instalou um sistema de som no escritório do seu T3 em Odivelas que é um mimo e que assusta o gato da vizinha do lado, o que já motivou queixas na reunião de condomínio. Mas o Nuno é “aquela base”, ri-se e continua a testar as capacidades das colunas. E as vidas do gato. Possui contactos porreiros para questões informáticas e ainda fuma umas ganzas de vez em quando, se a mulher não o chatear muito. Diz-se afastado do pearljamismo, já não é sequer praticante assíduo, o trabalho e o filho ocupam-lhe o tempo. “Iá, mas continuo a curtir a cena, ‘tás a ver?”. Sim, claro. Apenas era muito melhor quando dizias isso e desviavas o cabelo, lá junto à fogueira com a Catarina Martins embevecida a olhar para ti.

01 novembro 2015

Comic Book Guy




Já chove. Chover é bom. Medra as coisas verdes. No plano material, as coisas verdes fazem o mundo avançar. Sabe isso desde os livros de ciências da preparatória. Existem incontáveis documentários sobre o tema. Há todo um ciclo engendrado pela Natureza que nunca falha. A Natureza é a maior e melhor argumentista de sempre. Um blockbuster que não pára de surpreender. São temporadas e temporadas de êxito permanente. Vê lá tu que toda a gente morre, todos os bichos que alegremente saltavam ao nosso lado se fenecem em pó e no entanto o vento continua a soprar, o sol a nascer, as estações a suceder-se com maior ou menor variação, as coisas verdes a criar raízes que rebentam o betuminoso e ocupam as casas devolutas, duma forma que deixaria os militantes do Bloco de Esquerda corados de vergonha. A Natureza não tem complacências. É muito mais assentimental do que julgamos. É assim desde que há registos, nem se sabe bem como começou. Dizem que foi uma grande explosão. À falta de melhor explicação, aceita esta. Uma grande explosão a qual podemos imaginar com os nóveis efeitos 3D, manipulados através de programas informáticos bastante evoluídos. Que irão evoluir ainda mais. Qualquer dia há-de conseguir-se chegar perto. Há tentativas a ser levadas a cabo num laboratório lá para França. Havemos de conseguir. Talvez não no nosso tempo.

O tempo agora é de chuva. Não é nada mau. Dá uma bela desculpa para ficar em casa. Nunca quis mais do que ficar em casa. O mundo lá fora não é assim tão bonito. E não é pela Natureza, a Mãe, que essa sabemos ao que vem; é mesmo pelas pessoas. Que são imprevisíveis, cruéis e chatas. Aberrantemente imperfeitas. Muito aborrecidas. Limitadas, que nem um Pentium IV com memórias analógicas na segunda metade do século XXI. Como uma mulher no auge do seu ciclo menstrual, não vale a pena tentarmos descortinar o que as pode tornar mais agradáveis. As pessoas ausentam-se, adoecem, irritam-se, falham, enfim, não são de fiar. Não se pode programá-las a ligarem e desligarem como queremos. Não dão sinais evidentes de aviso que a sua bateria está fraca. Têm sentimentos, magoam e são magoadas por coisas imperceptíveis. Nunca surgem avisos de que há um malware que precisa de ser desinfectado. Os anti-vírus convencionais não costumam chegar. E é sempre assim. Por isso mais vale ficar no seu espaço do que ocupar o seu precioso espaço. Sem chatear e sem ser chateado. Há muito software giro para ser descarregado. Séries, jogos, aplicações diversas para tudo e mais e alguma coisa. Utilíssimas, giríssimas, com interfaces intuitivos em cada upgrade. Novos equipamentos gráficos e de som a instalar na máquina.

A máquina. Há que tratá-la com respeito. Actualizá-la frequentemente. Substituir peças obsoletas, protegê-la do frio e do calor. A máquina também tem sentimentos. Não gosta que lhe cortem a electricidade de forma repentina, também se atrasa e demora a responder se a atafulharmos de lixo evitável, reage se quisermos fazer batota com ela. Mas a máquina é muito mais leal. Quando falha, sabe subtilmente dizer que a culpa foi nossa. E nós reconhecêmo-la, com uma humildade intrinsecamente humana. A máquina não é humilde, mas também não nos enche com bazófias espúrias. A máquina é tão boa que, se a máquina tivesse orifícios envoltos de carne, fornicá-la-ia. É a sua única limitação visível. Mas, quem sabe?, um dia será possível. Como no filme “Demolition Man”, mas melhor. Das máquinas só podemos esperar o melhor. Isto se não houver ninguém estúpido por perto. O mal das máquinas é haver gente estúpida a mexer nelas.

É que, por vezes, também gostaria de sentir um abraço, um toque morno, uma palavra inesperadamente gentil, um gemer de prazer. Mas isso acaba por passar. É só procurar alguma coisa na máquina que debele essa fraqueza de espírito tão humana. E depois dar largas aos nossos recorrentes e fúteis anseios. A máquina nunca recrimina. Com ela o segredo está guardado, se assim o quisermos. Com ela vamos a qualquer lado. Espreitar qualquer perversão, inventar qualquer diálogo, estabelecer conexões ou aprender coisas sem o peso físico das velhas enciclopédias. Saibamos nós as suas linguagens. E ele sabe. Passou dias, meses, anos a treinar códigos e a perceber de cabos e de ligações sem fios. Outros gastaram esse tempo a brincar sem objectivo. Já percebe muitas manhas, truques e dicas que a maior parte das pessoas não domina e às quais demonstra uma certa relutância a educar. Porque as pessoas são estúpidas. Acho que já tinha escrito isto, ou pelo menos a ideia já deveria ter ficado clara – isto, obviamente, se as pessoas que lêem os outros não fossem assim tão medíocres. Estou a entrar num loop. A máquina também fica agastada com os loops, mas geralmente basta carregar no Esc ou estabelecer qualquer maningância com as teclas Ctrl+Alt. Nas pessoas, os loops costumam ser insolúveis e não é gerado um blue screen. Lamentavelmente. É um erro básico de codificação. Um defeito de origem que persiste para mal dos seus pecados.

E os pecados da gente são muitos. Dantes, perdia a alegria quando lhe recriminavam por ser muito gordo, muito compenetrado em si mesmo, sem requisitos sociais apurados. Mas depois aceitou esses esgares dos outros como parte do pacote onde estava inserido. Ao contrário do serviço de internet, o desdém dos outros não é negociável. Assume-se. É uma variável exógena. Resta controlar a sua parte. Se é chato? É. Também já escrevi que não há nada tão chato como as pessoas. Então investiu no seu próprio prazer: a certeza de se sentir superior num capítulo muito exclusivo, a total consciência de que "isto não é para todos". Não é um prazer que decorra do deleite visual, nada disso. Não há cá partilhas de paisagens fantásticas no Instagram nem de poses sensualmente tratadas para a inveja do Facebook – e ele saberia exactamente como torná-las fantásticas se quisesse, e até em plataformas bem mais estimulantes que essas a que a maralha acede em massa. Parecem búfalos numa manada. “Búfalo” quiçá o chamem em surdina, mas ele não quer saber dos ditames físicos. Reconhecendo a desvantagem, e a pouca propensão para entrar nesses jogos frívolos, ele investiu no recolhimento e no saber. É, bem vistas as coisas, um monge da idade informática.

Ainda assim, tem amigos. A maior parte nunca os viu. Estão longe, numa máquina semelhante à sua, a trocar preciosas informações num ambiente selecto e protegido. Estão todos bem e confortáveis assim. São eles quem verdadeiramente sabem interpretar todos os seus tiques de expressão no teclado e valorizar o conhecimento que detém sobre matérias aparentemente inúteis para a gente. Essa gente banal, a atirar para o ridículo com as suas mundanas preocupações sobre o estilo e pose, vãs com os seus sentimentalismos incipientes. E depois tem conhecidos. Tipos geralmente de óculos, gajas vestidas de preto, gente de poucas palavras. Preferivelmente, de poucas palavras, anotou ele no anúncio mental sobre as pessoas que quer deixar aproximar do seu círculo. As palavras costumam ser demais, vezes demais. Geram erros. Causam trapalhadas. E depois há que percorrer todas as linhas de código assinaladas a amarelo e perceber como meter a coisa a funcionar – se as pessoas funcionassem como as máquinas; na realidade, na dura e triste realidade, ficamos muitas vezes sem perceber nada. É frustrante. Com a máquina sentimo-nos desafiados, motivados a percebê-la e recebemos gratificações quase instantâneas. Fugimos do choque. Geramos rotinas que impliquem a redução do risco. Há muito risco no contacto humano, e não apenas para a transmissão de doenças. Isso é o menos. O pior é mesmo a confrontação com a estupidez humana que espreita em cada esquina. Um horror. Sem perfil previamente verificado, há sempre que desconfiar do próximo.

Felizmente, hoje chove e ninguém, nem mesmo os mais distraidamente néscios, o irá importunar. Porque quem anda a chuva molha-se e isso geralmente retrai as pessoas. Foi um bom dia. A velocidade de download foi superior ao normal e conseguiu-se sacar mais uma série completa para ver ao jantar, composto por fritos e regado por bebidas carbonatadas. Dizem que morreu muita gente ultimamente. Atentado ou acidente, se for mesmo espectacular farão um grande filme disso e ele irá obtê-lo em primeira mão. Para então poder lançar a sua crítica especializada. “Worst. Movie. Ever”. Costuma ser assim. Intérpretes parvos só pode dar nisso, em fracassos previsíveis. Só a máquina salvará o negócio, com a sua técnica requintada por intermédio de uma vasta gama de tipos conscientes como ele. Não um, não dez, não cem; são milhares de tipos como ele, num silencioso trabalho organizado, é que dotam os servidores e recrudescem o poder da máquina, fazendo o mundo avançar a nível intelecto-espiritual. A nível físico, a Natureza dá cabo de nós todos. Nada a fazer.