25 novembro 2015

Protocolos

O protocolo pode ser definido como “o conjunto de formalidades e preceitos que se devem observar em cerimónias oficiais ou actos solenes”. O protocolo pressupõe maçada. Quando imaginamos mentalmente a imagem dum protocolo, o que nos vem à mente não é um grupo de louras mamalhudas em biquíni, champanhe ou música trance; é sim um grupo de homens grisalhos ou carecas muito sisudos e em trajes muito engomados, palavras tão grandiosas quanto de circunstância, discursadas num ambiente tão pomposo quanto frio – e geralmente com más condições de som e de acústica em geral, o que dificulta ainda mais a compreensão –, bem como uma completa submissão a regras de etiqueta tão rígidas quanto tacitamente aceites pelos intervenientes. O grande frisson advém das costumeiras fugas ao protocolo, o gozo supremo dos jornalistas, cometidas por elementos cuja distracção momentânea lhes custará severos olhares de reprovação, tão acutilantes quanto embaraçados, pelos restantes membros protocolares. Sim, o protocolo é tão entediante que a fuga ao próprio é tida como natural, mas nem por isso perdoada. Um pouco ao contrário dum Estado qualquer deste mundo no qual o prisioneiro que se evade da prisão e é recapturado não receberá nenhuma pena adicional, porque esse Estado reconhece que fugir das grandes chatices é simplesmente humano e racional (é verdade e penso que seja o México, mas googlem para terem certezas); não, o desrespeito ao protocolo, especialmente aquele que é cabalmente perceptível até para a mais ingénua dona-de-casa, será glosado e exposto vezes sem conta, partilhado até à exaustão, como uma piada fácil ao som da marcha do Benny Hill, que todos gostamos de figuras parvas cometidas pelos outros.

Mesmo na minha terra e enquanto miúdo, havia protocolos muito concretos que devíamos respeitar. Todavia, não eram assim tão aborrecidos - pelo menos, para alguns. Com toda a conotação de algazarra que lhes estava associada, estes actos assemelhavam-se mais a “praxes” do que a “protocolos”. Assim de cabeça, quando alguém se apresentava de ténis novos, havia que “estreá-los” condignamente: a tradução prática deste protocolo consistia no pisar dos ténis em causa ou em sujá-los com um pouco de terra. Se houvesse cinco indivíduos que notassem no novel calçado, cinco indivíduos deveriam molestar inequivocamente esse calçado e o portador do mesmo só tinha mais que comer e calar, aguardando pacientemente pela sua oportunidade de retribuição. Também houve uma fase em que qualquer ida ao barbeiro significava uma protocolar reacção de “cabelinho à foda-se…”, dirigida com sentido desprezo a quem se apresentava com um novo penteado. Conta-se que a expressão nasceu por quem, em tempos imemoriais, só conseguiu exprimir “fooooooooda-se…” (assim mesmo, demorando no “o” para conferir mais despeito) perante um corte de cabelo que se lhe afigurou como anormal ou mesmo ultrajante. O certo é que a tradição pegou e assim desabrochou um protocolo. Também entre os rapazes se constituiu o duro protocolo de fazer “amostras” aos outros rapazes acabados de chegar ou a outros sacos de pancada, que consistia em revelar de forma bruta e discutivelmente humilhante as partes baixas desse rapaz em público, ou até a contundir-lhe os testículos com o recurso a objectos pesados ou aos próprios punhos cerrados. Há quem se refira a isto como “bullying”, mas isso é um conceito muito urbano deste século; antigamente, estávamos perfeitamente concentrados no protocolo e era a ele que nos entregávamos, sem nos alhearmos com mariquices sociológicas. E quando se começava a fumar, havia o estranho hábito de virar um dos cigarros ao contrário quando se abria o maço. Havia quem se agastasse caso o ritual não fosse cumprido. Era um protocolo inexplicável, quiçá com raízes supersticiosas. Ou então era simplesmente estúpido.

De qualquer forma, estes exemplos reflectem uma face menos aborrecida do protocolo. Isto é, o protocolo não tem de ser um fastio, em ocasiões concretas até pode ser um salutar reforço de um determinado espírito de comunidade, de consolidação de uma tradição genericamente aceite. Mas a maior parte das vezes é mesmo uma chatice pegada. E em determinadas circunstâncias ultrapassa a fronteira do inofensivo bocejo para entrar nos territórios da dor. Uma dor pungente e depreciativa, como se uma crise dum pequeno nervo dentário se alastrasse e se magnificasse no sistema nervoso central. Ele há protocolos plenamente insuportáveis para certos intervenientes.

Por exemplo, e correndo o risco de datar este texto, o empossamento de António Costa como Primeiro-Ministro por Cavaco Silva será seguramente um protocolo muito difícil de suportar pelo último. Que lhe dessem todos os sapos, dragões, elefantes deste mundo para engolir; que lhe enchessem o sistema digestivo dos mais aguçados espinhos, cardos, rosas e prosas que pudessem arranjar; que lhe arrepanhassem a pele a sangue frio com um bisturi e o deixassem em carne viva num tanque de álcool etílico puro e depois jogassem com azeite a ferver naquilo que sobrasse; que lhe rebentassem o esfíncter com um pau de um furioso cavalo negro africano durante horas ininterruptas, depois de uma sobredose do mostrengo em Pau de Cabinda e de Libidium Fast, e com o Futre a falar-lhe parvoíces ao ouvido enquanto durasse esse martírio; que lhe hackeassem a página no Facebook e que revelassem fotografias da sua juventude, onde aparecesse mascarado com um tule cor-de-rosa cheio de folhinhos e com a inscrição “pões-me louco, Dias Loureiro”; que lhe cometessem as atrocidades que os árabes não têm coragem de pensar em fazer aos judeus, mas que lhe dispensassem desse tormento que é ter de indigitar formalmente o Costa.

É que para Cavaco, esse acto solene é muitíssimo pesado, muito mais do que o ambiente já de si grave da Ajuda. There is much more than meets the eye. Cavaco tem pesadelos com esta tomada de posse, em pleno salão nobre do palácio. Neles Cavaco surge titubeante, como num 10 de Junho qualquer, pálido, suores frios, semi-frios e quentes a alagarem-lhe as roupas, que parecem estar mais apertadas que o habitual. Costa e todo o seu séquito de ministros e secretários de Estado estão ufanos, sorridentes, eufóricos até, contrastando com a inexpressão de uma série de sumidades indistinguíveis e o mau-estar mudo do governo cessante. Há flashes e barulho de fotografias a serem tiradas e este é todo o ruído que perpassa aquele salão cerimonial. Estão todos alinhados e aprumados. Depois, Cavaco, a custo, aproxima-se do microfone e profere, enfrentando o clarão dos potentes holofotes que o cegam, “na qualidade de Presidente da República Portuguesa (…), procederei então ao empossamento do Dr. António Costa como Primeiro-Ministro do XXI Governo Constitucional”. Costa dá uns passos em frente e aproxima-se da mesa, daquele imponente mesão no centro do salão que parece já ter sobrevivido séculos sem nunca nenhum caruncho lhe ter chegado. Sorridente, como sempre. Cavaco tremelica. Em cima da mesa está uma terrina de prata brilhante sobre uma bandeja igualmente prateada e um pequeno atoalhado branco, impecavelmente dobrado, à ilharga. Dentro da terrina, água. Morna. Cavaco detém-se por um momento frente-a-frente com Costa e faz-lhe um pequeno sinal com a cabeça. Costa percebe que é a sua vez de cumprir com o protocolo. E então revela finalmente aos presentes as suas calças compradas especialmente numa sex shop para esta ocasião, com um grande orifício na área genital donde brotam os seus testículos. Costa está vestido com um fato de corte italiano e gravata monocromática e calçou uns belos sapatos reluzentes, mas tem os tomates ao léu. Dois genuínos colhões de homem maduro, ligeiramente descaídos – se calhar, esteve a bater demasiadas punhetas recentemente. Olha de soslaio para as objectivas, como que a perguntar “estão a conseguir apanhar bem este par de colhões?”. Os flashes multiplicam-se, como que a responder “sim”. Cavaco olha sem paixão para os colhões retintos de Costa, que fez a depilação de propósito para a cerimónia, mas ainda deixou um ou outro pintelho espetado para não duvidarem da sua masculinidade. Cavaco, engolindo em seco, lábios todos torcidos para dentro, molha as mãos durante poucos segundos na terrina. As câmaras captam tudo. Depois, limpa o excesso de água no atoalhado, mas com tamanha deferência que nem sequer estraga as dobras. E então move vagarosamente as suas mãos no sentido dos túbaros de Costa, que nesta altura já assumiu uma pose de toureiro, mãos na cintura e flectindo a zona pélvica na direcção de Cavaco. Cavaco apalpa os colhões de Costa no meio da sala, junto à mesa, com todos os mais altos dignatários da nação presentes e todas as televisões a transmitirem em directo e a fazerem um zoom in nos tomates do Costa; há tweets sobre os dois pintelhos espetados do Costa, comentários sobre o volume das duas bolinhas do novo Primeiro-Ministro, mulheres que reparam nas unhas tratadas do Cavaco e da suavidade com que ele mexe nos colhões do Costa. Nota-se que Costa está a desenvolver uma ligeira erecção e há alguma agitação atrás dele, onde os vários ministros quase que se empurram para conseguirem ver o acto de empossamento mais de perto e há muito óculos a serem ajeitados, assim como algumas línguas mordiscadas e gente que sussurra “aperta-me esses colhões, porco!...” ou “foda-se, monhé nojento de merda!”, consoante as posições partidárias. Costa perde o sorriso; agora está concentrado na fruição do prazer, físico e mental, que lhe invade o corpo e o faz esticar os lábios escuros e carnudos para fora, com gotículas de suor a descerem-lhe da testa: está a ficar excitado. E Cavaco, sem olhar Costa nos olhos, vai revolvendo nos seus colhões, com os seus olhos mortiços e a saliva a empapar-lhe a boca. Cavaco pára por segundos para olhar para as objectivas e permitir aos fotojornalistas obter uma boa carteira de imagens em que Cavaco possa surgir fotogénico, na medida do possível. Há um frémito de flashes e fotografias. Costa solta, com o seu perfeito sotaque de filmes pornográficos espanhóis, enquanto balanceia suavemente o torso e deixa perder o controlo momentâneo dos sentidos, “Sí, señor Presidente… Sííííííí… Oh, sííííííii… Me pones loco… Oh sí… Sí… Síííííií… Uooooh… Empossa-mos, Cavaco!”. Cavaco cumprira assim o protocolo e Costa está formalmente empossado depois de finalizado este acto. O salão irrompe numa salva de palmas e os jornalistas andam doidos de um lado para o outro para conseguirem as melhores posições de reportagem. Costa está, decididamente, de pau feito, mas nem isso o demove de abraçar toda a sua equipa, um a um, verdadeiramente feliz. Um ou outro ministro olha de relance para os genitais do Costa e pensa em apalpá-los, mas inibe-se e acaba só por se roçar neles enquanto abraça Costa. Mas acaba por também ele ficar com pau feito e pensará em incluir este momento marcante no seu livro de memórias. No meio de tantas erecções e das atenções todas centradas nos testículos do indiano Costa, Cavaco retracta-se para as sombras. É um homem sozinho e vencido. Toda a sua expressão corporal exclama “derrota vergonhosa” em alto e bom som. Os seus seguidores não lhe dão sequer a veleidade dum simples aperto de mão. Não daquelas mãos que tocaram nos colhões do Costa. Nem pensar. E então Cavaco acorda, estremunhado. Anda com sonhos destes há semanas. A realidade, para ele, será quase igual à ficção que ele inconscientemente criou.


Há, portanto, diferentes categorias para os protocolos. Apesar de tudo, nem o mais efusivo dos protocolos abandona a ideia de parecer forçado e de constituir um evento nos antípodas de uma festa repleta de alegres convivas. Num óptimo de Pareto, as partes sentir-se-ão igualmente desmotivadas; quanto muito, haverá apenas uma parte mais agradada e outra que bem que preferiria estar noutro lado a fazer outra coisa. Mas a situação de desconforto protocolar perpetua-se, porque os protocolos raramente se discutem, por mais entediantes que possam ser. O protocolo é demasiado importante no seu simbolismo para ser discutido. É assim e assim deverá ser. O público geral até leva a mal não se cumprirem os mesmos preceitos de sempre. Por causa disto, Cavaco não será poupado à gigantesca humilhação pessoal naquele que será o seu último grande evento protocolar, o empossamento de Costa – admito que para ele este derradeiro protocolo estará algures entre o seu pesadelo e o murro no abono de família que antigamente sofriam os rookies da minha terra, pese embora toda a formalidade asséptica com que nos será apresentado. Senão algo ainda pior.

19 novembro 2015

Eddie Vedder

O Eddie Vedder enjoa. Já enjoa há algum tempo. Apanhei uma sobredose de politicamente correcto, deve ser esta a causa deste desgosto. Houve um tempo em que até achava piada aos cabelos compridos, camisas de flanela ou militaristas, calças gastas e botas ou outro calçado ratado. E também às exortações para a libertação do Tibete, às ondas do mar e praias prístinas, às crianças que nunca conheceram o seu pai, às referências a uma espécie de mescla entre Sérgio Godinho com José Afonso nascida no Canadá que era o Neil Young e aos gajos que andavam sempre com uma viola atrás, não fossem eles encontrar uma fogueira onde pudessem demonstrar toda a sua imperícia a tocar “Black” ou “Daughter”. Eu considerava que estas eram das melhores canções de sempre, mas naquele tempo ainda sabia menos da vida do que agora. Havia todo um conceito estético e espiritual associado ao Vedder, que granjeou grande sucesso na juventude chamada “fixe” nos anos 90 e cujos efeitos ainda se podem encontrar, com a natural adaptação aos tempos modernos. O Vedder era o super-fixe, o modelo a seguir, porque fazia música porreira e defendia causas ambientais e sociais de justiça inquestionável. Ele era o filho que qualquer hippie desejaria ter, a representação da rebeldia consciente, fundada e confinada. Não era um fogo contestatário niilista e vazio, de consequências imprevisíveis, como o que deflagra na juventude quotidiana; era uma fogueira que era olhada com certa parcimónia pelos poderes, que nessa altura estavam bem definidos e eram sobretudo pais e professores. A fogueira está sempre presente quando se fala de Vedder e das suas sósias, os pearljamistas, nem que como metáfora. Todos nós conhecemos algum pearljamista, algures na vida.

A fogueira consumava o apogeu do pearljamismo. Era aí que a malta fixe e preocupada com a sustentabilidade de recursos gostava de afirmar as suas vaidades, fomentando a queima da biomassa para calor e iluminação. A luz crepitante e as fagulhas inspiravam os pearljamistas a dedilhar a sua viola e a soltar um vozeirão artificial de quem está a engolir um microfone no fundo dum poço. Isso cativava as gajas, especialmente as adeptas de missangas, florzinhas no cabelo e malas volumosas a tiracolo, que respeitam muito os animais e fazem reciclagem. Se a gaja fosse vegetariana e dissesse que de religiões só o Budismo (“é mais uma forma de ser e de estar do que uma religião”), então era certinho que ficava caidinha. E todos sorriam muito e batiam palminhas no final de cada actuação esforçada. Era uma comunhão íntima entre os Homens e a Natureza, reforçada pelo costumeiro cigarrinho. De enrolar, claro, que o papel é mais natural e sempre baixa um pouco a receita das grandes corporações tabaqueiras internacionais, essas exploradoras sem pudor. Tenho para mim que grande parte dos pearljamistas se chamavam Nuno, eram baixinhos e magrinhos e estavam sempre a desviar o cabelo dos olhos enquanto diziam “iá, ‘tás a ver?”. Hoje em dia são programadores informáticos ou são comentadores televisivos e não revelam especial orgulho por poderem ter sido considerados sósias do Vedder. Porque isto do pearljamismo pressupõe que os indivíduos, seguindo todos a mesma cartilha, são muito seguros de si, avessos a rótulos e a outras caracterizações da “maldita sociedade capitalista”. Será o pearljamismo iconoclasta? Sim, para os casos que o profeta Vedder determinar.

Podemos dividir este tema de antipatia para com o Vedder em duas categorias. O primeiro tem a ver com o declínio evidente da banda dele. Duvido que eles tenham angariado muitos fãs nos últimos tempos com pecúlio tão desinteressante. As suas posições políticas e as suas letras fazem as delícias de toda uma turba moralmente inatacável, mas há uma sensação de que o disco – que não o suporte musical físico propriamente dito – está irremediavelmente riscado. Os primeiros cinco álbuns são bons, uns mais que outros, foram os que definiram o estatuto da banda e ainda se ouvem hoje em dia, nem que como colírio para a música ainda pior que se vai produzindo – alguma dela tenho mesmo dificuldade em categorizá-la como “música”; desde que veio o século XXI que os Pearl Jam são uma caricatura deles mesmos. Hoje, valem muito pouco e certamente valem muito menos do que a nossa nostalgia nos quer fazer crer. Já deviam ter parado de vez, assumido a sua desinspiração e continuavam a fazer umas digressões para os pearljamistas, sempre que se sentissem aborrecidos e/ou com falta de peso na carteira. Não os culparia por isso; afinal, é difícil estar sempre no top, ainda por mais na indústria deles. Modas vêm e vão, eles tiveram o seu tempo e agora é a vez de outros brilharem. Há apenas uns quantos fenómenos de sucesso que extravasam mais que uma década e os Pearl Jam não são decididamente um desses casos. O Kurt Cobain é que sabia das coisas e matou-se antes de decair. Resultado: não teve de andar a arrastar-se e a prolongar artificialmente a vida útil da banda, banalizando o que de bom foi feito. A banda envelheceu bastante, e mal, em termos musicais. Já está bem imiscuída no tal circuito dos “velhos”, das bandas que enchem estádios só pelo nome e mesmo que só esteja previsto soltar gases no cartaz, à laia duns U2. Os últimos álbuns dos Pearl Jam foram um ataque deliberado à memória deles, ainda que não tenham existido críticas assim tão contundentes a essas pobrezas musicais. O que se explicará pela simpatia socialmente aceite do Vedder.

O segundo aspecto vem desta sua imagem de afabilidade e da personagem em si. Se o Vedder fosse português, isto é, imaginem o Miguel Guedes por um momento, ele seria do Bloco de Esquerda. Tal como o Miguel Guedes. E isso é extremamente enjoativo. O Bloco de Esquerda exala todo um fedor de perfume chique misturado com fumo de cannabis que é francamente irritante. Eu só concebo gente normal do Bloco de Esquerda, vá lá, até aos 25 anos de idade, altura onde deverão, como sói dizer-se, “crescer e ganhar juízo”. A partir daí, se ainda continuam a apoiar o Bloco, é porque são manipulados ou são manipuladores (a ganza também ajudará a confundir as almas mais susceptíveis). O Vedder de hoje dia, como ele próprio confessou, é um gajo de bem com a vida e cujo eco das suas posições ganhou peso com o passar dos anos, ao contrário da sua música. Tem o seu pé-de-meia, gosta do seu vinho, faz o que quer. Isso de andar pendurado em tabelas de basquete e amuado com as revistas e as promotoras é coisa do passado. Mas, sentado no seu confortável cadeirão, ainda mantém a lengalenga de que os “capitalistas selvagens destruíram o nosso belo planeta”, “há fome por todo o lado”, “transgénicos nem pensar”, “devíamos ser todos iguais”, “segue os teus sonhos”, entre outras tiradas impregnadas de idealismo que seriam gozadas se proferidas por uma louríssima candidata a Miss Universo. A maior parte dos pearljamistas modernos também é assim, mas com uma diferença fundamental face ao Vedder: este pessoal não gosta de admitir que a vida lhe corre bem. É feitio e defeito. Então recrudescem a sua revolta “aos grandes interesses financeiros”, “aos machistas e sexistas”, “aos racistas e terroristas”, “ao Governo que não me disse que se eu estudasse psicologia não teria emprego”, entre outros alvos fáceis e genéricos. Mas até agora, a maior privação que esta gente teve foi quando ficou sem bateria no telemóvel durante meia-hora, que comida, roupa, viagens, hospitais e escolas privadas, gadgets e até idas os concertos dos Pearl Jam nunca lhes faltou.


O Vedder pode não perceber, ou estar-se a borrifar, que a sua ética aparentemente incontestável, aliada à música tão irrelevante conquanto pretensiosa, o poderá guindar ao patamar de ridículo onde o Bono está hoje em dia. Será uma heresia dizer isto aos pearljamistas. “Não, ora essa, o Vedder é sempre uma referência, um símbolo cultural, o Lennon da nossa geração”. Para mim, o Vedder está tão gasto como a roupa da moda dele. Tão gasto, tão insignificante e tão irrepreensível que nem sequer tem um fanático que lhe dê um tiro como ao Lennon. 

O Nuno está melhor. Já não está tão escanzelado, embora também já não tenha tanto cabelo. Arranja-me uns filmes fixes e tem um bom gosto musical, em termos gerais. Instalou um sistema de som no escritório do seu T3 em Odivelas que é um mimo e que assusta o gato da vizinha do lado, o que já motivou queixas na reunião de condomínio. Mas o Nuno é “aquela base”, ri-se e continua a testar as capacidades das colunas. E as vidas do gato. Possui contactos porreiros para questões informáticas e ainda fuma umas ganzas de vez em quando, se a mulher não o chatear muito. Diz-se afastado do pearljamismo, já não é sequer praticante assíduo, o trabalho e o filho ocupam-lhe o tempo. “Iá, mas continuo a curtir a cena, ‘tás a ver?”. Sim, claro. Apenas era muito melhor quando dizias isso e desviavas o cabelo, lá junto à fogueira com a Catarina Martins embevecida a olhar para ti.

01 novembro 2015

Comic Book Guy




Já chove. Chover é bom. Medra as coisas verdes. No plano material, as coisas verdes fazem o mundo avançar. Sabe isso desde os livros de ciências da preparatória. Existem incontáveis documentários sobre o tema. Há todo um ciclo engendrado pela Natureza que nunca falha. A Natureza é a maior e melhor argumentista de sempre. Um blockbuster que não pára de surpreender. São temporadas e temporadas de êxito permanente. Vê lá tu que toda a gente morre, todos os bichos que alegremente saltavam ao nosso lado se fenecem em pó e no entanto o vento continua a soprar, o sol a nascer, as estações a suceder-se com maior ou menor variação, as coisas verdes a criar raízes que rebentam o betuminoso e ocupam as casas devolutas, duma forma que deixaria os militantes do Bloco de Esquerda corados de vergonha. A Natureza não tem complacências. É muito mais assentimental do que julgamos. É assim desde que há registos, nem se sabe bem como começou. Dizem que foi uma grande explosão. À falta de melhor explicação, aceita esta. Uma grande explosão a qual podemos imaginar com os nóveis efeitos 3D, manipulados através de programas informáticos bastante evoluídos. Que irão evoluir ainda mais. Qualquer dia há-de conseguir-se chegar perto. Há tentativas a ser levadas a cabo num laboratório lá para França. Havemos de conseguir. Talvez não no nosso tempo.

O tempo agora é de chuva. Não é nada mau. Dá uma bela desculpa para ficar em casa. Nunca quis mais do que ficar em casa. O mundo lá fora não é assim tão bonito. E não é pela Natureza, a Mãe, que essa sabemos ao que vem; é mesmo pelas pessoas. Que são imprevisíveis, cruéis e chatas. Aberrantemente imperfeitas. Muito aborrecidas. Limitadas, que nem um Pentium IV com memórias analógicas na segunda metade do século XXI. Como uma mulher no auge do seu ciclo menstrual, não vale a pena tentarmos descortinar o que as pode tornar mais agradáveis. As pessoas ausentam-se, adoecem, irritam-se, falham, enfim, não são de fiar. Não se pode programá-las a ligarem e desligarem como queremos. Não dão sinais evidentes de aviso que a sua bateria está fraca. Têm sentimentos, magoam e são magoadas por coisas imperceptíveis. Nunca surgem avisos de que há um malware que precisa de ser desinfectado. Os anti-vírus convencionais não costumam chegar. E é sempre assim. Por isso mais vale ficar no seu espaço do que ocupar o seu precioso espaço. Sem chatear e sem ser chateado. Há muito software giro para ser descarregado. Séries, jogos, aplicações diversas para tudo e mais e alguma coisa. Utilíssimas, giríssimas, com interfaces intuitivos em cada upgrade. Novos equipamentos gráficos e de som a instalar na máquina.

A máquina. Há que tratá-la com respeito. Actualizá-la frequentemente. Substituir peças obsoletas, protegê-la do frio e do calor. A máquina também tem sentimentos. Não gosta que lhe cortem a electricidade de forma repentina, também se atrasa e demora a responder se a atafulharmos de lixo evitável, reage se quisermos fazer batota com ela. Mas a máquina é muito mais leal. Quando falha, sabe subtilmente dizer que a culpa foi nossa. E nós reconhecêmo-la, com uma humildade intrinsecamente humana. A máquina não é humilde, mas também não nos enche com bazófias espúrias. A máquina é tão boa que, se a máquina tivesse orifícios envoltos de carne, fornicá-la-ia. É a sua única limitação visível. Mas, quem sabe?, um dia será possível. Como no filme “Demolition Man”, mas melhor. Das máquinas só podemos esperar o melhor. Isto se não houver ninguém estúpido por perto. O mal das máquinas é haver gente estúpida a mexer nelas.

É que, por vezes, também gostaria de sentir um abraço, um toque morno, uma palavra inesperadamente gentil, um gemer de prazer. Mas isso acaba por passar. É só procurar alguma coisa na máquina que debele essa fraqueza de espírito tão humana. E depois dar largas aos nossos recorrentes e fúteis anseios. A máquina nunca recrimina. Com ela o segredo está guardado, se assim o quisermos. Com ela vamos a qualquer lado. Espreitar qualquer perversão, inventar qualquer diálogo, estabelecer conexões ou aprender coisas sem o peso físico das velhas enciclopédias. Saibamos nós as suas linguagens. E ele sabe. Passou dias, meses, anos a treinar códigos e a perceber de cabos e de ligações sem fios. Outros gastaram esse tempo a brincar sem objectivo. Já percebe muitas manhas, truques e dicas que a maior parte das pessoas não domina e às quais demonstra uma certa relutância a educar. Porque as pessoas são estúpidas. Acho que já tinha escrito isto, ou pelo menos a ideia já deveria ter ficado clara – isto, obviamente, se as pessoas que lêem os outros não fossem assim tão medíocres. Estou a entrar num loop. A máquina também fica agastada com os loops, mas geralmente basta carregar no Esc ou estabelecer qualquer maningância com as teclas Ctrl+Alt. Nas pessoas, os loops costumam ser insolúveis e não é gerado um blue screen. Lamentavelmente. É um erro básico de codificação. Um defeito de origem que persiste para mal dos seus pecados.

E os pecados da gente são muitos. Dantes, perdia a alegria quando lhe recriminavam por ser muito gordo, muito compenetrado em si mesmo, sem requisitos sociais apurados. Mas depois aceitou esses esgares dos outros como parte do pacote onde estava inserido. Ao contrário do serviço de internet, o desdém dos outros não é negociável. Assume-se. É uma variável exógena. Resta controlar a sua parte. Se é chato? É. Também já escrevi que não há nada tão chato como as pessoas. Então investiu no seu próprio prazer: a certeza de se sentir superior num capítulo muito exclusivo, a total consciência de que "isto não é para todos". Não é um prazer que decorra do deleite visual, nada disso. Não há cá partilhas de paisagens fantásticas no Instagram nem de poses sensualmente tratadas para a inveja do Facebook – e ele saberia exactamente como torná-las fantásticas se quisesse, e até em plataformas bem mais estimulantes que essas a que a maralha acede em massa. Parecem búfalos numa manada. “Búfalo” quiçá o chamem em surdina, mas ele não quer saber dos ditames físicos. Reconhecendo a desvantagem, e a pouca propensão para entrar nesses jogos frívolos, ele investiu no recolhimento e no saber. É, bem vistas as coisas, um monge da idade informática.

Ainda assim, tem amigos. A maior parte nunca os viu. Estão longe, numa máquina semelhante à sua, a trocar preciosas informações num ambiente selecto e protegido. Estão todos bem e confortáveis assim. São eles quem verdadeiramente sabem interpretar todos os seus tiques de expressão no teclado e valorizar o conhecimento que detém sobre matérias aparentemente inúteis para a gente. Essa gente banal, a atirar para o ridículo com as suas mundanas preocupações sobre o estilo e pose, vãs com os seus sentimentalismos incipientes. E depois tem conhecidos. Tipos geralmente de óculos, gajas vestidas de preto, gente de poucas palavras. Preferivelmente, de poucas palavras, anotou ele no anúncio mental sobre as pessoas que quer deixar aproximar do seu círculo. As palavras costumam ser demais, vezes demais. Geram erros. Causam trapalhadas. E depois há que percorrer todas as linhas de código assinaladas a amarelo e perceber como meter a coisa a funcionar – se as pessoas funcionassem como as máquinas; na realidade, na dura e triste realidade, ficamos muitas vezes sem perceber nada. É frustrante. Com a máquina sentimo-nos desafiados, motivados a percebê-la e recebemos gratificações quase instantâneas. Fugimos do choque. Geramos rotinas que impliquem a redução do risco. Há muito risco no contacto humano, e não apenas para a transmissão de doenças. Isso é o menos. O pior é mesmo a confrontação com a estupidez humana que espreita em cada esquina. Um horror. Sem perfil previamente verificado, há sempre que desconfiar do próximo.

Felizmente, hoje chove e ninguém, nem mesmo os mais distraidamente néscios, o irá importunar. Porque quem anda a chuva molha-se e isso geralmente retrai as pessoas. Foi um bom dia. A velocidade de download foi superior ao normal e conseguiu-se sacar mais uma série completa para ver ao jantar, composto por fritos e regado por bebidas carbonatadas. Dizem que morreu muita gente ultimamente. Atentado ou acidente, se for mesmo espectacular farão um grande filme disso e ele irá obtê-lo em primeira mão. Para então poder lançar a sua crítica especializada. “Worst. Movie. Ever”. Costuma ser assim. Intérpretes parvos só pode dar nisso, em fracassos previsíveis. Só a máquina salvará o negócio, com a sua técnica requintada por intermédio de uma vasta gama de tipos conscientes como ele. Não um, não dez, não cem; são milhares de tipos como ele, num silencioso trabalho organizado, é que dotam os servidores e recrudescem o poder da máquina, fazendo o mundo avançar a nível intelecto-espiritual. A nível físico, a Natureza dá cabo de nós todos. Nada a fazer.

17 setembro 2015

Vamos Correr Com o Euro

Qual Academia de valores donde despontam talentos intervencionistas, a minha terra oferece periodicamente graffitis de uma complexidade interpretativa ímpar que engajam toda a comunidade.

O último, e mais amplo, exemplo espraia-se sobre um betão maciço e orgulhosamente cinzentão, pintado a negro de forma levemente tosca, talvez espalmado por intermédio de rudes golpes de trincha com tinta não-acetinada, bem num enfiamento duma rotunda. Não possui a verve gatafúnhica da nova street art, é antes um resquício das velhas pinturas rupestres do PREC e pós-PREC. É um graffiti vintage, um vandalismo urbano démodé que muitos julgávamos perdido no fervor de tantas tags e pinturas com spray colorido. Saúde-se este retorno que muito contribui para a diversidade da expressão popular nas várias paredes, muros e até persianas de rés-de-chão, portas e carrinhas de aspecto abandonado.

Refere este graffiti: “VAMOS CORRER COM O EURO”. Só isto. Em maiúsculas.

Todos reconhecemos que na escrita moderna o estar em maiúsculas significa gritar, exortar, reclamar duma forma veemente. Muitos encaram o que está escrito em maiúsculas como um insulto, uma má-educação atroz, um barulho mental soez, em flagrante desrespeito pelas normas tácitas de elevação comunicacional. Alguns aboliram mesmo as maiúsculas e escrevem somente com minúsculas, nomes próprios e tudo, para assim não correrem o risco de acicatar, nem que ao de leve, as susceptibilidades mais sensíveis de alguns leitores. Este graffiti parece escrito com maiúsculas exactamente com esse propósito de despertar consciências, seja de que forma, mesmo que a abordagem possa afigurar-se algo abrutalhada. É que, afinal, não há nem boa nem má publicidade, só mesmo publicidade.

Passando para além do plano estético, é interessante tentar perceber a mensagem que este dizer, supostamente anónimo, quer passar ao transeunte mais atento que nele repara. Designadamente, o que se pretende transmitir com “CORRER COM O EURO”.

À primeira vista, pode parecer uma incitação à actividade física. Portanto, provinda dum instrutor dum ginásio qualquer, daqueles que agora pululam por aí como cogumelos, ou dalgum cardiologista desesperado. Precisamos todos de correr, de mexer o corpinho, de saltar do conforto da poltrona malandra, de abandonar as garrafas de cerveja em frente da televisão, de mudar o paradigma sedentário que nos entope as veias, que nos descai as peles, que nos alarga a barriga e nos torna extremamente vulneráveis a um enfarte repentino – como se um enfarte pudesse ser um acto contínuo no tempo. Ninguém quer ser uma pessoa obesa, feia, facilmente ofegante e de músculos frouxos. Por isso há que correr. É o mais básico. Depois pode passar-se para o ciclismo aos magotes aos fins-de-semana nas estradas nacionais. E depois de ultrapassado o medo de ser passado a ferro por um camião, então poderá avançar-se mais um nível e frequentar um dos tais ginásios, já mais imunes ao medo da repreensão dos olhares dos frequentadores habituais, extremamente tonificados e pouco complacentes com massas adiposas. Tudo isto requer a compra de material adequado. Não serve um par de ténis vulgares ou uma t-shirt da EDP oferecida pelo neto da vizinha que participou numa mini-maratona. Ora essa, claro que não; antes mesmo de começar a ser um atleta amador, é necessário desenvolver o estilo dum atleta a sério: adquirindo uma camisola anti-transpirante em material XPTO, preferencialmente numa cor fluorescente, uns calções justinhos cuja cor condiga, umas pequenitas meias cujo logotipo da marca sobressaia e um par de ténis de aspecto marciano e simultaneamente robusto, também muito coloridos e com uma parafernália de orifícios e ornamentos que fazem as pessoas acreditar que correm mais. A Cláudia Vieira e o Ângelo Rodrigues também começaram assim, cheios de estilo, e só depois foram correr para ficarem com aqueles corpos em excelente estado de conservação. Eles bem que podem dizer que não conceberiam a sua existência se não dedicassem duas horas diárias ao esforço físico, mas a verdade é que tudo isso seria impossível se não se munissem com equipamento Adidas ou Nike da última geração. O hábito não faz apenas o monge; o hábito faz e suplanta o próprio monge e sem o hábito o monge seria apenas uma pobre amostra de gente, um sub-eclesiástico. Para mais supostamente anafado e careca, como os monges costumam ser.

Pode suceder, contudo, que nem a imagem de modelos sorridentes e bastante amantes do desporto seja suficiente para convencer o mais comum dos mortais semi-vegetativos. Por isso, o autor do graffiti congeminou uma motivação superlativa: corramos com o Euro. Note-se que não é correr atrás do Euro, que isso já toda a gente faz, a maioria sem benefícios aparentes para a sua saúde; é correr com o Euro, tentar escoltá-lo quando ele parece inacessível com a sua passada fugidia. O Euro é daqueles sujeitos difíceis de seguir e, ao mesmo tempo, poucos desistem de se esforçar por agarrá-lo. É um sujeito fascinante que não deixa ninguém indiferente. E para este fito até apareceria de boa-fé, sem ânsias de fuga e com vontade em ajudar, não a perder a dignidade, como costuma marotamente fazer, mas sim a perder as banhas. Não seria um antagonista, mas um acompanhante. De luxo. Já não há desculpas para não levantar o rabinho do sofá. Quem não quer estar perto do Euro, de sentir a sua monetária transpiração e de acompanhar as suas pulsões aceleradas no mercado? Convenhamos que o seu ritmo poderá ser feroz, mas é uma oportunidade imperdível: ninguém quer estar longe do Euro e, pior que isso, vê-lo a fugir de forma impotente. Todos podemos torcer o nariz à corrida por não termos companhia, ou porque a companhia cheira mal ou é chata, mas não há razão para não corrermos se formos correr com o Euro. Ninguém vai recusar este repto. Quem vai dizer que não a uma moedinha de 2 euros que passa por nós a descer a avenida toda fresquinha? Quem pode ignorar o piscar de olho de uma notinha de 20 euros quando nos insinua “hey baby, you runnin’?”? Quem vai perder a ocasião de se juntar a um pelotão de maços de notas vivaças e tesas que calcorreiam alegremente os passeios à beira-mar pelo crepúsculo, fortificadas para aguentar com choques cambiais e ataques especulativos de toda a ordem? Serve para todos, mesmo para as mulheres que já estarão mais habituadas à frieza pouco maleável dos cartões de crédito e aos milionários caídos abruptamente em desgraça.

Se tomarmos este graffiti pelo seu valor facial, passe a ironia, é, sem dúvidas, um dos mais apelativos slogans pró-forma física de sempre. Nem o Forrest Gump, imaginamos, conseguiria arrebanhar tanta gente numa correria massiva por glúteos bem definidos e outras graças decorrentes da saudável corrida. Mas e se estivermos a aplicar uma famosa expressão bem portuguesa de “correr com” = “livrarmo-nos de” alguma coisa? Neste caso, o tão badalado Euro?

Para já, a análise mais semântica da expressão aponta num sentido de total desprezo lusitano pelo esforço físico, o que, paradoxalmente, reforça o sentido da interpretação de dois parágrafos acima. “Correr com” alguma coisa, para os portugueses, não é tanto para nos exercitarmos em conjunto mas para nos vermos livres dessa coisa. Especialmente se essa coisa custar a ir-se embora. Correr, essa actividade tão aborrecida e esforçada, e esforço, esse substantivo que perturba tanto a quem só quer sopinhas e descanso. Não nos despegamos de alguma coisa com palavras ocas ou gestos subtis, precisamos de “correr com” essa coisa, de nos empenharmos a fundo no seu desaparecimento. Essa coisa, alegadamente, também não gostará de correr como nós e, logo, se “corrermos com” essa coisa é remédio santo para que não nos volte a importunar. A criatura fica logo com os bofes de fora, diz “fogo, que este gajo é maluco e cansa-me” e já não regressa mais. O curioso aqui é que a coisa que é objecto deste graffiti específico, o Euro, é uma das coisas que nós por aqui não gostamos de ver a fugir para não mais voltar e custa muito mais vê-lo chegar do que vê-lo partir.

Mais interessante seria inquirir o autor deste graffiti que eventualmente o escreveu com este último sentido sobre o que ele propõe em alternativa. Sim, porque isto de dizer “ah, não queremos esta unidade monetária” pode dar pano para mangas. Não quer porquê? Porque é feio? Porque tem um nome parvo? “Olhe, eu gosto mais de Piloto, é o nome do meu cão e gostava de comprar quinquilharias que custassem 12 Pilotos e 50 Pilotinhos [novo nome do cêntimo]”. Ou porque esta unidade se mostra tão arisca dos seus bolsos que é deixá-la ir à sua vida e talvez com uma nova designação a sorte não seja tão madrasta? Quem sabe, ele há grafiteiros tão invejosos quanto supersticiosos. Ou será porque prefere uma moeda mais atractiva como o dólar, quiçá o revivalismo do velho escudo ou o espírito prático das notas de Monopólio? Ou ainda porque não quer pura e simplesmente proceder a trocas baseadas em papel-moeda e prefere métodos de troca directa, dou-te duas galinhas por um i-Pad e tu dás-me um balde de cerejas e uma arroba de batatas por umas calças Levi’s? Podemos especular de tudo um pouco.

E podemos especular porquê? Porque não foram apresentadas soluções e alternativas concretas. Geralmente, nunca são. Por isso podemos conjecturar que o autor daquele graffiti, se efectivamente escreveu “correr com” com esse sentido de “acabar com”, expressou a sua insatisfação por manter uma moeda incontrolável só porque tem o maior galinheiro da zona e se voltássemos à troca directa teria possibilidade de comprar tantos i-Pads quantos quisesse, ou porque gosta de acabar com coisas que, vá lá, ainda nos permitem ir ao supermercado e sair de lá com alguma coisa, só para chatear os outros ou porque é ele mesmo que se sente tremendamente enfadado com a situação. Isto de “correr com” coisas é muito bonito, mas depois o que viria correr até nós em substituição? Não se sabe. Não nos foi dito nem mostrado. Mas talvez isso não interesse sequer, porque – lá está – alternativas custam a elaborar e isso não dá jeito agora. Para este grafiteiro, talvez só interesse “correr com” o Euro por si só; importa é derrubar, destituir, boicotar, impedir e tudo o que implique a cessação de movimento – curiosamente, utilizando uma expressão que remete para o movimento rápido de corrida. Tudo é ameaça, nada é passível de ser usado em proveito, por isso é destruir tudo, como uma criança enervada que vê os outros a jogar melhor o seu jogo e então entra em birra e acaba com o jogo todo, o dela e o dos outros. Isto de querermos aproveitar tiques infantis para resolver problemas sérios não costuma dar bom resultado na vida prática. Digo eu, embora ainda haja gente que prefere apontar culpas ao papão e que acredita que há um lugar perdido no Mundo onde hambúrgueres crescem nas árvores e há sempre sol e animais sorridentes e fofinhos aos pulos. O “correr com” é utilizado como força de bloqueio à própria corrida do Euro, que, em geral e infelizmente, é coisa que costuma correr para longe de nós. Há mais camadas de ironia neste graffiti do que folhas de massa numa lasanha.

Eu cá prefiro, candidamente, ignorar patetices inconsequentes e continuar a encarar a expressão como um sincero apelo à mobilidade. Mas, lamentavelmente, eu estou num patamar de preguiça superior e este graffiti não me irá mobilizar. Talvez se dissessem “vamos correr com o euro por x euros”, talvez aí equacionasse mexer-me. E vai daí não, se calhar consigo o mesmo numa raspadinha – que raspo com… uma moeda de Euro – e não preciso de me cansar. Nah, deixa-os correr.


Ah, e adoro o verbo “engajar”.

30 julho 2015

Mariah Carey

Não quis acreditar quando vi a Mariah Carey perto de mim. Lá estava ela, inundada de maquilhagem sobre aquela pele tostada, quase que uma obra perfeita de Photoshop, a roupa da moda comprada numa Primark a disfarçar que era Prada, saltos altos a revelarem a unha tingida com uma matiz que não era rosa, nem vermelho, nem azul, antes uma cor intrincada que ninguém sabe ao certo como catalogar, os adereços chocalhantes e pouco práticos mas que devem despertar uma cobiça irritante nas outras tipas e, como pedra de toque do pandã estilístico, uma expressão facial plástica, fria de tão imaculada, cujo único brilho provinha do batom esparramado naqueles lábios desenhados com compasso, esquadro e pincel milimétrico, já que as pestanas, frondosas, pareciam obras de engenharia mecânica, e as sobrancelhas, mais finas que a mais fina massa de pizza e desbastadas meticulosamente após horas de pinçadas mais ou menos dolorosas, estavam concebidas para serem uma espécie de adereço facial ao cabelo, alisado pelo vapor dum ferro fervente e tintado numa tonalidade nem bem loura, nem bem castanha, mas muito na moda. Parecia uma bonequinha de porcelana que ganhara vida e saíra sub-repticiamente duma loja de faianças.

O meu espanto foi em vê-la sozinha, sem estar acompanhada por um gajo qualquer também ele muito na moda, daqueles que desenham a barba como o Paulo Fonseca e vão muito ao ginásio para ficarem com braços muito fortes nos quais possam esparramar tatuagens das quais não saberão o significado e peitorais salientes e depilados com minúcia, na esperança de virem a ser convidados para entrar no Magic Mike XXL. Se calhar estavam a “malhar” no ginásio. Quando falam em “malhar” penso sempre no jogo dos velhos e imagino-os a tentar mandar os pinos para o chão ou, melhor ainda, a serem eles os pinos e a levarem com os ferros em cima da cornadura. De preferência, deveria estar acompanhada por um preto. Porque os pretos estão na moda. Os pretos e tudo o que é relacionado com eles, desde o sotaque e as expressões que me fazem desejar que eles fossem todos familiares do tipo d’ “Os Deuses Devem Estar Loucos”, passando pela gastronomia e acabando no idiossincrático gosto por roupas e preferências artísticas a atirar para o boçal. Os pretos estão tanto na moda que tudo o que digam ou façam é aceite como uma coisa porreira. Desde que li num panfleto “venha praticar kizomba porque praticar kizomba é viajar no tempo”, ilustrado por uma fotografia dum preto a colocar a mão apenas uns estratégicos centímetros acima do rabo duma “dama” (acho que é assim que eles chamam às mulheres; eles devem ser os “ases” ou os “reis” e só um teve a audácia de se intitular “valete”), que acredito piamente que hoje em dia os maiores vendedores de Torres Eiffel deste mundo são os pretos. O tamanho da verga deles ajudará, por certo, por muito que digam que “o tamanho não interessa”. Balelas que já ninguém compra, nem mesmo com super-saldos sobre as promoções.

Apesar de sozinha presencialmente, estava acompanhada por um telemóvel touchscreen, que acariciava com cuidado, não fosse ratar demasiado a sua unha. Penso que era um i-Phone da “Éiple”, que é tudo o que esta gente conhece e é uma das peças mais imprescindíveis para obter reconhecimento social. Devia estar a debitar emoticons num comentário a uma amiga qualquer que exibia com opulência as suas novas unhas de gel com uma careta patética no Facebook ou no Instagram. O nível de literacia dela e das suas amigas mede-se, segundo consta, pelas complexas frases que expressam por intermédio de bonequinhos. Sim, porque ela não deverá ser capaz de conjugar correctamente as formas verbais no pretérito perfeito da segunda pessoa do singular, mas é francamente hábil em juntar bonequinhos de maneira a que todas as suas pares percebam. Uma putativa campeã de Emojination. E depois lançava expressões de superlativo enjoo, gritos mudos de impaciência, com aqueles olhinhos que se esforçam por ficar esbugalhados sob o peso mastodôntico daquelas pestanas de meio-metro, especialmente às pessoas que respiravam de muito perto o seu ar. Uma chatice, as pessoas normais, sem bronzeados Piz Buin nem bugigangas sugeridas pelos blogues das gajas “trend-setters” – e que encarnam basicamente o que os santos representam para religiões mais formalizadas como a católica na sociedade tão esvaziada quanto exibicionista deste maravilhoso mundo moderno, onde tudo são sorrisos, exclamações de êxtase automático e paixões incontroláveis e instantâneas. Pois, se uns professam a paixão de Cristo e todo o bem d’Ele emanante, outras espalham a palavra d’A Pipoca como a sebenta indispensável para sufragar quem é “hot” e quem é “not”: as “hots” são as que vão ao ginásio às horas adequadas para apanharem os gays mais musculados do pedaço, pedem o gin “com açúcar no rebordo do copo e zimbro q.b.” e estão com a gente certa na festa certa a sacar selfies, as “nots” são basicamente o resto, gente estupidamente frugal, inconcebivelmente feia e aborrecida, que até sabem o que é a crise de facto.

Ela tem um marido. Um acompanhante. Um amigo especial. Uma marioneta, enfim; mais um dos seus incontáveis acessórios, mas com a particularidade de este não caber em nenhuma das suas malas e maletas. A Mariah Carey normal tinha um “sugar daddy” rico e possivelmente produtor dos seus próprios discos, esta terá um advogado ou consultor que passa muito tempo fora de casa, que a ajuda a manter as aparências e que a guia num Audi/BMW/Mercedes/Jaguar/Porsche (outras marcas não serão aceites, a menos que o carro custe mais de trezentos mil euros) para as festas da gente que interessa, que, embora ela saiba o quão são aborrecidas, é onde o seu sorriso é condignamente louvado. O sorriso deve ser apenas utilizado para a pose e com moderação, porque sorrir faz rugas e os cremes custam os olhos da cara. E do cu também. O cu que ela só dá aos amantes que vai conhecendo nas festas e que são, de preferência, estrangeiros com cara de estrangeiros de países conhecidos. Porque ninguém quererá saber dum gajo com aparência de ter saído da Amadora ou dum gajo do Laos, mas ficará sensibilizado se ela aparecer numa dessas selfies com um dinamarquês com olhos azuis pungentes e barba por fazer à Viggo Mortensen. Ou um angolano tipo Anselmo Ralph que fale numa língua que ela até percebe e que tem uma língua que a humidifica nos sítios que interessam.

O que ela faz? Não interessa bem ao certo. Vagamente, pode considerar-se “empresária”, embora também possa trabalhar por conta de outrém numa actividade que “não canse muito a cabeça”, porque o cansaço tira o glamour à gente. Coisas giras, como marketing, publicidade, relações públicas ou relações púbicas para a alta sociedade – um outro nome para “esteticista”, que é um termo demasiado anos 80. Anda por lá passando o tempo a cultivar invejas e a colher elogios, no essencial, porque isto de ficar em casa é uma coisa ultrapassada e aí ninguém a vê senão no Skype, cuja definição não favorece as suas formas nem deixa perceber o seu novo corte de cabelo ou o novo creme daquele laboratório francês. “Trabalho” é um substantivo que lhe faz comichão, é demasiado classe-baixa, soa-lhe a coisa da Margem Sul; o ideal é ter uma “ocupação”, porque não fazer nada pode sugerir um certo parasitismo diletante que não é o que se pede às divas. A Mariah Carey também só precisou de cantar a sério no primeiro álbum, depois foi tirando a roupa, fazendo aquela cara de cadelinha abandonada e confiando no playback, nas inovações tecnológicas e nas tipas feias que não tinham arcaboiço para ir para a frente do palco para continuar uma carreira. Valha a verdade, “música” é um conceito que já abandonou a ligação a “Mariah Carey” há uns bons anos, assim como “carreira” é algo que combina tão bem com esta Mariah como um stiletto numa arena de carrinhos de choque. Uma fartura no Urban. Uma mini numa Sunset Party. Um artista virtuoso num festival de Verão. Um bitoque no restaurante de sushi. Um pedaço de rapé inalado por intermédio duma nota enrolada numa casa-de-banho de uma grande empresa. Ela sabe do que estou a falar com estas comparações.


Vi a Mariah Carey no metro. Que é um transporte muito vulgar para ela, mas desta vez teve mesmo de ser, notava-se claramente pelo enfado que brotava da carinha de louça lavada com abrilhantador, dos labiozinhos meio torcidos, do ligeiro suspiro que exalava daquelas narinazinhas perfeitinhas. O meu sonho? Vê-la a espalhar-se ao comprido enquanto procurasse equilibrar-se nas escadas mais íngremes do Metro, em plena hora de ponta, rebolando sem remissão por aquelas escadas com o seu corpinho tonificado, tão estimado mas sem alma, até se espatifar com estrondo que nem uma bola da árvore de Natal na parede. Vocês já arremessaram uma bola de árvore de Natal com violência contra um muro? A bola desfaz-se em milhões de partículas cintilantes e desaparece de forma espectacular. Não te chateies, Mariah, seria um desaparecimento fantástico, se calhar iriam falar muito de ti, quem sabe emprestar o teu nome a uma festa de beneficência patrocinada por uma revista de moda em colaboração com uma bebida alcoólica com sabor muito doce e iriam povoar os teus perfis públicos com imagens dos teus tempos áureos, receberias muitos “likes” e muitos bonequinhos com a lagrimazinha ao canto do olho entre abreviaturas de suposto português misturadas com “OMG” e “RIP” e outras expressões americanizadas, links para websites de moda e obituários na Moda Lisboa. Tudo o que uma pessoa decente pode ambicionar, ao fim ao cabo.