19 abril 2017

Christopher Walken

Em tempos não muito idos, havia vergonha. Não que fosse algo que suscitasse orgulho ou celeuma. A gente não tinha era muitas formas de perdê-la. Então conservava-la como um pickle envinagrado no fundo da dispensa, despojo esquecível que teimava em nunca se deitar fora, por muito fora do prazo que estivesse. A vergonha não era coisa de se perder facilmente. Não era nenhuma chave de viatura em viagem interminável pela mala duma senhora. Não era algo que saísse pelo bolso dumas calças ratadas. Nós até tentávamos que ela nos passasse despercebida, mas, teimosa, a vergonha ficava por lá, agarrada por pinças imaginárias, colada por uma Super Cola 3 absurdamente invisível e potente. Nós sabíamos que a tínhamos, lá alapada e senhorial. Ponderávamos e retraíamo-nos em consequência. E nunca a largávamos, à laia dum objecto precioso que nunca fora. Porque custava abandoná-la perante a presença efectiva de gente. Gente a sério, de carne e osso, da qual sentíamos a respiração e os esgares de espanto ou indignação, bem à nossa frente. Pelo menos, desfazermo-nos dela duma forma cabal e espalhafatosa. Perdia-se a vergonha em surdina, em pequenos actos e traquinices partilhadas em forma de air guitar num quarto, numa masturbação que pincelava os lençóis pela calada da noite, numa cumplicidade espontânea entre um par de amigos ou numa carta de amor rabiscada num cantinho lá de casa e cujo destino seria, invariavelmente, o caixote. A vergonha não aceitava ser deitada ao lixo, obrigava-nos a deitar o resto para o lixo. E vivíamos com isso, por muito que até desconfiássemos que o excesso de vergonha nos castrava de todo um eventual potencial que julgávamos possuir.

Hoje, porém, isso da vergonha é um conceito em desuso. As pessoas esqueceram-se disso. Perdem amiúde a vergonha e nem se dão conta. A única vergonha que subsiste é a vergonha de ter vergonha. Porque hoje há tantos repositórios onde deixar a vergonha à porta, como se fosse parte do código de conduta desta grande festa dos tempos ultra-modernos, que é quase tão natural como beber água. Até beber água já não é tão descomplicado como dantes: agora há vários sabores, mineralizações diversas, há quem defenda que a água da torneira é que é boa e a que evita pedras nos rins, há quem receie pelos detritos que vêm nas tubagens que podem provocar um cancro qualquer e há até quem nem beba água, declarando, ufano, que isso “é para meninos”. É também um sinal da perda da vergonha, as proclamações absolutas e, não raras vezes, desconsiderando toda a razoabilidade que dantes andava de mão dada com a vergonha. A razoabilidade também se perdeu por uma vereda sombria, coitada.

Estão a ver aquele magote de gente com o pescoço dobrado sobre o seu ecrã, mexendo os polegares? Sim, aqueles que estão juntinhos sem descolarem as suas íris brilhantes daquele magnético ecrã e verem quem está ao lado? Estão todos a perder a vergonha, silenciosamente, uns para os outros. A gente entra num mundo de total abertura e pensa que está ainda no seu cantinho, mas não, está a fazer um strip-tease da alma para muitos outros olhos. Pensa que está a brincar ao Risco, mas está a criar ondas de choque que mata gente da Síria à Coreia. Crê que é tudo muito amigável e asséptico; engraçado, quiçá, mordaz com muito estilo, talvez; mas está a desencadear sentimentos pouco nobres noutra gente que se impressiona facilmente e a levar com ricochetes desagradáveis. Pode até imaginar que ainda está no café a falar com amigos, mas está a gerar inimigos ocultos, muito irascíveis e igualmente exauridos de toda a sua vergonha, que replicam com feroz veemência. E também com uma dose de demência, que rima, e não só porque fica bem. Parecem cães que ladram muito atrás da vedação e que ficam sem saber o que fazer quando se apercebem que essa rede acabou. Já ninguém sabe o que fazer sem rede no chamado “mundo desenvolvido”. A falta de vergonha animalizou-nos, no sentido mais irracional do termo.

A ignorância agradece. Dantes, a vergonha impedia-a de se soltar. Agora, a ignorância corre por aí, à bruta, com as mamas ao léu – e, por vezes, até de forma literal. Sem a vergonha, a ignorância grassa como uma epidemia e fica ao cuidado de cada um vacinar-se como pode. Alguns não querem, alguns não sabem como, outros ignoram a ignorância. O que é ainda pior. Assim, a ignorância corta os laços mais profundos que a vergonha segurava e solta-se o insulto, o deboche, a inveja miudinha e mais e mais ignorância. Tende-se a simplificar tudo, a arranjar instruções tipo Ikea para resolver problemas, alguém há-de pensar, alguém há-de corrigir, alguém há-de fazer, alguém há-de responsabilizar-se. Alguém. A nós só nos interessa uma imagem. Um ícone qualquer. Uma fé nalguma coisa que nem sabemos bem o que é, mas é fé e a fé tem domesticado os espíritos inquietos de muita gente ao longo do tempo. Se a fé serviu dantes, servirá agora, pensa com pueril ingenuidade quem acha que a História cristalizou e é muito chata, coisa de velhos nostálgicos e que nunca se repete, neste mundo em que até podemos assassinar gente em directo e divulgar ao resto do mundo com a mesma facilidade com que escarrapachamos mais uma selfie numa aplicação qualquer, à espera de receber 346 comentários que dizem exactamente o mesmo, apenas variando na forma como abreviam e pontapeiam uma língua qualquer. Tudo porque estamos a olhar para o mundo atrás dum ecrã, no nosso cantinho, sem nos apercebermos que a linha invisível nos une a todos, mantendo-nos solitários em simultâneo, numa partilha de angústia social colectiva. Não reparamos, mas a quantidade de interacções apenas nos torna mais sozinhos, à medida que o cimento que daria para unir uns poucos serve para muitos. Vamo-nos desagregando e ruímos todo o nosso edifício sentimental, numa espectacular derrocada da qual ninguém quer saber. Se pelo menos ainda tivéssemos a vergonha, se calhar tínhamo-nos acautelado. Mas perdêmo-la pelo caminho e já não somos capazes de encontrá-la sem um GPS. E já ninguém escreve de forma perceptível para que possamos entender como reencontrá-la. Como nos reencontrarmos. Já nos perdemos a nós mesmos numa selva de redes. Emaranhámo-nos demasiado. E achámos muita graça porque pensávamos que éramos o pescador, mas éramos o peixe e fomos de arrastão. Fomos mais um peixe neste cardume sem vergonha.

E agora? Agora tens um revólver à frente com uma bala à espreita e estás cansado de andar com o relógio de outrém espetado no teu recto. Tens de largar esses fardos que te deixaram com um olhar louco e distante e com uma voz carregada de sarcasmos fotocopiados. Não há como voltar atrás. Nem saberás como. A solução é seguir em frente. Sem vergonha. Disseram-te que sem amarras algumas é que serás plenamente livre e realizado. E que o caminho da felicidade se faz sem medos. Arriscar, empreender, dar largas às frases feitas que são tão giras quanto vãs, descurar as bases que aqui te trouxeram e que tão miseravelmente te fazem comparar com os outros nesta sociedade aberta, de competição ferina, onde não há lugar para os fracos, anónimos e aborrecidos. Ninguém quer ser a nota de rodapé. Tu não queres, certamente, não ter nada para contar a quem não te quer ouvir. Está nas tuas mãos segurar o revólver com determinação e criar uma grande história.


Mas ser feliz não é, simplesmente, uma opção viável. Tu sabes bem que sim, mesmo que te esforces para convencer os outros do contrário. Ninguém quer ser convencido, de qualquer forma, apenas tranquilizado. Tu sabes bem quais são as linhas com que te coses. São iguais às dos outros todos. Somente não consegues admitir. Por vergonha?