21 novembro 2012

Cavalo

Conheço uma tipa que tem uma valente cara de cavalo. Tem mesmo aquela cara alongada de equídeo, com a diferença que os olhos estão a olhar para a frente e não estão posicionados de lado. Há para aí uma meia-dúzia de palmos de distância entre os olhos e a boca. No mínimo. Tem cabelo extremamente liso como crinas a escorrer-lhe pelas costas. Ainda por cima, tem as mandíbulas assim a atirar para o protuberante, com gengivas quilométricas, que lhe conferem um aspecto cavalar quando se ri. E só se riu porque lhe meteram uns torrões de açúcar junto ao nariz.
Do pouco que a ouvi, deve comer palha, porque é tudo o que sai daquela boca. E eu aposto que ela relincha. Não a conheço muito bem, talvez porque hipismo não é bem a minha onda. Quem a conhece diz que ela é teimosa que nem uma burra. Neste caso, devia ser “que nem um cavalo”. Ou égua. Ou mula. Mas não, ela não é mula nenhuma. Não é, por sombras, uma cavalona. Mas esta cara de cavalo também fornica e permite-se ufanar do “meu marido” e dos “meus filhos” e etc. e tal, mesmo à laia de gaja de meia-idade. O marido dela é um jóquei, que diz “ei!,ei!” enquanto a pica com as esporas e lhe puxa as rédeas quando ela está assim para o rezingona e não quer fazer as provas de obstáculos. E ela lá põe os bofes de fora e manda uma pôia das grandes na carpete. A empregada, que lhe costuma pôr as ferraduras compradas na Foreva e pentear-lhe a trunfa, limpa tudo sem reclamar. O filho mais velho é um pónei com um pénis gigantesco que roça o chão a dar voltas no circo com criancinhas ao colo e o mais novo é um alazão de pau. Ou talvez não, mas o fixe disto é poder conjecturar à vontade.
E pronto, é isto. Sobre a cara de cavalo estamos conversados. Depois havia “o cavalão”. O cavalão foi a alcunha que o Johnny Petromax inventou para um gajo da minha turma no 10º ano. Foram tempos conturbados. Todas as 6ªs feiras havia rambóia no café a 100 metros da escola. Vínhamos do almoço e lá nos juntávamos todos, tipo uma da tarde, uma e meia, coisa e tal, e aguardávamos pelas aulas que só começavam às três e tal. Era um festival de fumo e bebida. Aquilo estragava o pessoal todo. Era aos litros e aos maços. Era a competição de penalties e das maiores passas. Era isso tudo. Vi gente a vomitar nos locais mais improváveis, com frequências totalmente imprevisíveis, em condições atmosféricas das mais diversas. E depois ainda íamos para as aulas, continuar o forrobodó. Quer dizer, a maior parte das vezes íamos, mas nem sempre isto era líquido, especialmente quando ainda estávamos com algumas faltas injustificadas para dar (sim, dantes chumbava-se por faltas). Fazia-se de tudo que não era suposto fazer-se numa sala de aula, inclusive fumar, juro que só não houve relações sexuais naquela aula porque as gajas não queriam. Até demonstrações de armas brancas houve naquela sala. Houve mais episódios deveras curiosos, que poderei desenvolver noutra altura e noutro fórum. A professora era uma espécie de mãezinha simpática à laia de uma Julie Andrews, só que míope; nunca deu por nada de especial, ou nunca quis dar, mas eu acho que ela via mesmo mal. Resumindo, aquilo era o deboche juvenil na sua plenitude, anos antes de virem com os telemóveis meter isso no YouTube e anos antes de o pessoal começar a ser violento em termos físicos com os professores. Pois bem, o cavalão era um tipo reservado, muito “estou-na-minha-e-tu-estás-na-tua”, com um olhar blasé, um estilo cool, mas não era propriamente um armário nem um gigante; julgo que o Johnny Petromax apenas estava a considerar a bruta aptidão futebolística e o aspecto robusto, mas não propriamente intimidador, d’ o cavalão. “Cavalão” foi alcunha que pegou e o Johnny Petromax até se afeiçoou ao cavalão mais que qualquer um de nós, até porque o cavalão vinha de outra terra, ele não se esforçava muito para fazer amigos, nós também já nos tínhamos e estávamos bem assim e só o Johnny Petromax, um tipo que cultivava o espírito de grupo, é que puxou por ele. E um dia o Johnny Petromax fez anos.
O aniversário do pessoal nessa altura era motivo para elevar as diatribes alcoólicas a patamares mais inusitados. Combinámos juntarmo-nos todos logo a seguir ao almoço no café do costume. O cavalão, que nem sequer era um habitué da tertúlia, também. E todos nós, especialmente o Johnny Petromax, estávamos ansiosos para ver a prestação copística d’ o cavalão, que, sendo forte fisicamente, devia aguentar estoicamente com a espuma e o gás de alguns litros de cerveja. E começou então a copofonia. Eu, como quase sempre, raramente testava os limites e era uma espécie de observador. Dá sempre jeito haver alguém mais sóbrio no meio das bezanas – para controlar comportamentos mais perigosos (tipo gente a querer mandar-se do 3º andar) e para saber algumas verdades (porque os genuinamente bêbados são incapazes de contar mentiras). E o cavalão ia com um ritmo devastador, sempre calmo, sempre a emborcar, mas já com vários copos no buxo. O Johnny Petromax lá disse, “pessoal, vamos para a aula”, e lá fomos nós, acabando o resto da cerveja pelos 100 metros que distava um sítio do outro. A aula corria normal, apenas um ou outro estore rebentado, um ou outro palavrão, nem se deve ter fumado muito na aula nem nada, talvez mais gente sorridente do que o costume. Mas o cavalão estava perfeitamente normal, muito na dele. Toca para o intervalo. O pessoal levanta-se, aos risos, bafo a álcool por todo o lado. E o cavalão? O cavalão acabara de passar por nós a correr, tapando a boca, descendo as escadas para ir ao WC. O Johnny Petromax, “eish, o cavalão vai ao gregues!”, com o espanto a inundar-lhe a cara e uma gargalhada etílica a sufixar-lhe a expressão que soltara. Para azar d’ o cavalão, a porta estava fechada e ele teve de ir junto à contínua buscar a chave e assinar um papel. Tudo isto connosco a assistir e ele sempre com a mão na boca a conter o vómito. E depois a chave não entrou à primeira. Era contrariedade a mais. Resultado: vomitou logo ali, à porta do WC, no átrio do pavilhão, com toda a gente a ver. Até a contínua, que rejeitou limpar aquilo, enojada. Era o pessoal a gargalhar nas escadas, “ó cavalão, já foste!”, e ele, com fair-play, já mais aliviado, sorriu para nós, na boa. A última imagem que conservo dele é ele com um balde de água a limpar o vómito. Mesmo “à cavalão”, pegou no balde e jorrou a água para cima do vomitado, formando ali uma pequena corrente de água suja que se foi esparramar contra o vidro da porta. Foi assim que ele limpou aquilo e acredito que aqueles pequenos bagos de arroz que se encontram nos vomitados se alaparam àquele vidro até aos dias de hoje. Ninguém se importava com minudências dessas naquela escola. Nesse dia, depois da aula, julgo que alguns foram continuar a beber copos. O cavalão é que foi para casa.
Sobre cavalos, era basicamente isto que tinha para escrever.