22 maio 2012

Clarabela


Ela vem com todos aqueles equipamentos de série femininos: gosta de roupa, sapatos e malas; perde tempo com dietas, sumos vitaminados e produtos comprados em ervanárias de vão de escada; não perde uma oportunidade de falar dos amigos e família, falando tanto que é pouco crível que haja um segredo que se aguente impune com ela; e é uma adepta fanática desse grande desporto feminino por excelência que é a fofoquice. Seja a fofoquice dos famosos, seja a dos que estão mais próximos: tudo é fofocável. Em cochichos com as amigas nas esquinas, em longas conversas ao telefone e em palavras dispersas no Facebook, todos os fóruns servem e mais alguns serão bem-vindos. Ela fofoca com todos, mesmo até com quem não manifesta interesse na fofoca. Julgo que é uma necessidade de libertação, como se aqueles fait-divers lhe esmagassem o estômago. É um vómito de alívio e nós estamos a segurar-lhe a testa. Na adolescência, deve ter comprado a Bravo alemã só para ver o David Charvet ou qualquer contemporâneo e forrar os cadernos, preferencialmente cor-de-rosa, com coraçõezinhos e fotografias, pedinchando aos pais para sair com as amigas de braço dado num Sábado à noite para uma discoteca qualquer. As contas de telefone (antes de 1998) e de telemóvel (desde então) nunca devem ter sido nada modestas. Pelo menos, não a imagino de outra forma.

Talvez não sejam componentes básicos que nós valorizemos por aí além, mas estão lá e fazem dela um bom exemplo de feminilidade. Se estes requisitos não estivessem minimamente reunidos, estaríamos aqui a lamentar a falta de algum deles e a dizer “ela bem que podia fazer mais o que as mulheres costumam fazer, que já não me sinto bem ter ela a arrotar cerveja enquanto insulta o árbitro quando vemos o jogo na televisão”. Há quem goste de mulheres-rapazes. Eu por mim tolero, desde que haja outros ingredientes adicionais. Mas ter uma tipa que tem o sentido de higiene de um gajo não é uma perspectiva interessante para mim. 

Depois, possui alguns extras: não é loura, nem é burra; tem uma cultura geral bastante razoável e é possível conversar-se com ela sem ser de trabalho ou de temas exclusivamente femininos, como o nome daquela cor que não é bem azul nem bem verde. Nota-se que possui alguma sensibilidade para os gostos masculinos – não que seja algo muito difícil de desvendar, mas nem todas atingem. No fundo, revela alguma experiência relacional, o que tanto pode encorajar os mais afoitos como assustar os mais imberbes. Em casa, porém, não deve ser nada de especial, porque isso não é nada chique para a mulher moderna, que está mais apostada em sobressair a vertente de fada do lar do seu cônjuge (e cônjuge é das palavras mais feias que podem existir, mesmo para fazer sentir mal o “companheiro” ou “parceiro” com todo o seu peso jurídico).

Ora bem, ora bem. Já se falou de requisitos básicos e de extras, mas o que interessa mesmo é o chassis. E o motor. Que é como quem diz, “então mas é gaja é boa ou não?”. A resposta é: não é boa. Mas também não é má. É normal. Talvez um pouco mais encorpada que a média, mas francamente normal. Sem ser especialmente bonita, não é feia. Tem mamas 1.8 de cilindrada num cagueiro movido a gasóleo, o que é razoável, levemente potente, mas nada de extraordinário. Com facilidade terá uma amiga que nos despertará primeiro as atenções, mas também não deverá ser o patinho feio do grupo. Não sendo magra, que “nunca foi” (segundo palavras muito imbuídas de fair-play da própria), também não é especialmente gorda, embora pudesse ter menos um quilito ou outro para efeitos de valorização pessoal. Ela é para os apreciadores de alguma chicha, decididamente não para quem gosta de top-models desportivas, mas também não será bem para os apreciadores de grandes churrascos que adoram camiões de carne. Ela está muito em torno da mediana, apenas com um ou outro pormenor distintivo. E depois, quando sorri, desenvolve duas marcas profundas na cara que delimitam com vigor as bochechas, exibindo com destaque os dentes posteriores. Essas marcas são tão fortes que, a uma curta distância, parece mesmo que tem dois círculos estampados na cara.

E é pelo facto de ficar com dois círculos estampados na cara que ela me lembra a Clarabela, especialmente as suas narinas – duas grandes bolas ali abertas nas trombas. Também me lembra a Popota, mas a Popota é demasiado gorda e muito cabeça-no-ar. A Clarabela também será demasiado magra, mas ajusta-se melhor, até pela idiossincrasia que emana das histórias da Walt Disney, especialmente na vertente “fofoca”.

Ao contrário de muitos reconhecimentos, desta feita primeiro olhei para a Clarabela e só depois para esta tipa. Sabia que naquele sorriso estava uma semelhança com qualquer coisa. Deixei a Popota de prevenção como melhor aproximação. Só quando vi com atenção um determinado desenho da Clarabela a rir-se de frente é que fiz “bingo!” e associei. Já lá vão uns anos e agora já não há nada a fazer, esta tipa parece-me mesmo a Clarabela. Que é uma vaca, para quem não saiba. Acho que, mesmo assim, mais vale ser comparada com uma vaquinha inofensiva, embora claramente periférica no cômputo das personagens Disney, do que com uma hipopótama selvagem.

E porque é que é a segunda gaja que eu comparo com personagens de animação? Intrigante. Cá para mim, é porque os cartoonistas e os argumentistas fizeram um excelente trabalho de caricatura, tanto físico como psicológico. Melhor do que a realidade alguma vez nos poderá oferecer.

21 maio 2012

Nélson Oliveira


Na minha terra havia, há e haverá sempre muita gente parecida com o Nélson Oliveira. Mais uma vez, não se tome a parecença de forma literal. É verdade que conheço alguma gente com as orelhas bem saídas tipo Dumbo e que talvez tenha marcado um golo decisivo no alcatrão lá da escola, mas não é a isso que me refiro. Estou a referir-me à capacidade, intrínseca ou partilhada, de se promoverem como grandes estrelas sem haver grande sustentação para tal.

O Nélson original talvez seja bom rapaz. Talvez venha a concretizar o potencial que se lhe augura. Talvez. Mas, para já, tem menos golos e menos minutos que o Postiga em termos de ligas nacionais. E se é possível estabelecer comparações com o Postiga, então é porque a coisa não é boa. Independentemente disto, é impossível obter uma crítica adversa em relação aos poucos minutos que ele esteve em campo – se ele se deteve com a bola quando tinha um colega em boa posição, leremos “é a vontade natural em mostrar serviço”; se ele falhou redondamente numa posição favorável, é porque “o ângulo era já muito apertado”. Por ângulo apertado, entenda-se um ângulo a tentar entrar num comboio que furou uma greve dos transportes e não um ângulo claramente inferior a 45º do poste mais próximo – mas o tema dos ângulos apertados ficará para outras núpcias.

Depois de um Verão em alta, onde um ou outro golo pelos juniores aguçou o instinto inato para a deificação por parte dos portugueses em particular e dos lampiões em geral, Nélson passou por uma fase de obscurantismo e, na melhor das hipóteses, medíocre. O culminar da grande progressão desta época traduziu-se em meia-dúzia de remates jeitosos e no relegar de Yannick Djaló para o extremo… da bancada. E, se há uma segunda lição a retirar das comparações, é a de que o gajo que pode ser simultaneamente comparado com Postiga e Djaló não pode ser necessariamente bestial. Pelo menos, por enquanto.

Admiravelmente, estes parcos atributos valeram-lhe capas de jornais, chamada à Selecção, spots publicitários, prémios de revelação e admito até que seja a cara do emblema dele na montra oficial do clube. Nunca fazer tão pouco rendeu tanto. E a carreira dele ainda mal começou.

Também eu conheci lá na terra alguns gajos assim. Tipos de quem se dizia, “ah e tal, o gajo é muita bom”, “lá vem ele para arrebentar com isto”, “este gajo tem o cu virado para a lua” e cenas do género. Sempre foi uma terra muito pródiga na construção de tigres de papel. Desses gajos eu nunca vi nada de especial: nem soft skills extraordinários, nem um físico assim tão portentoso, nem acções, nem nada. Mas tinham uma pose e uns soundbytes deliciosos. Tinham jactância e positivismo irracional a rodos. Auto-promoviam-se com estórias mirabolantes, relatos heróicos de coisa nenhuma. Tinham sempre alguém que corroborava os feitos, geralmente alguém que gostava de ficar com as sobras. E com isso, faziam amigos, arranjavam namoradas, eram convidados para tudo o que era fixe e movimentavam-se muito bem nestes círculos virtuosos que cresciam naturalmente. Nisso tinham mérito. Mas, para além disto e da sua desinibição imaginativa, também não tinham mais nada. O grande valor deles era precisamente o de fazerem das suas imensas fraquezas enormes forças, o de cimentarem uma imagem apenas com base na gabarolice e de conviverem muito bem com este desequilíbrio entre o real e o imaginário tornado real. No fundo, eles próprios convenceram-se que eram bons, as pessoas à volta reconheciam que eles eram bons sem questionar e todo o mundo vivia feliz.

Para mim, as coisas também foram assim, pragmáticas, durante algum tempo; convenci-me que aquela aura de grandiosidade, aquela publicidade franca e gratuita, era qualquer coisa de natural, dados os seus feitos: ou se tinha, como eles; ou não se tinha, como eu, que teria que me esforçar a sério para fazer qualquer coisa que fosse reconhecida e mesmo assim não teria garantias de sucesso, pois achava, com o negativismo que esses gajos nunca tiveram, que mesmo aquilo em que era sucedido não era aquilo que atraía o resto das pessoas, sempre mais afoitas a reconhecer outras coisas mais do gosto geral, como marcar golos, engatar gajas ou contar piadas. Mas depois vi o outro lado, a fraqueza da sua glória, a pequenez da sua cultura, a pobreza dos seus espíritos. Eram tudo menos seres perfeitos, tudo menos ídolos, acreditem. As mentiras revelavam-se uma atrás da outra. Não se podia contar com eles em situações de aperto, eram os primeiros a debandar ou a enjeitar responsabilidades, das quais fugiam com a mesma esperteza saloia com que impingiam as suas qualidades aos demais. Jamais se retractaram perante o exagero da sua figura. Ainda continuam pedantes, com a sua legião de fãs, mas aquilo já não me aflige, porque percebi o vácuo em que assentavam as fundações da sua personalidade. Eu sou assim, demasiado low-profile, e eles são assim, demasiado high-profile, estamos muito bem assim e há mercado para todos – embora aparentemente, só exista o deles. Mas a “maioria silenciosa” será sempre a maioria e o conteúdo, se houver justiça, prevalecerá sobre a forma.

O Nélson também estará bem. Pudera, é um suplente com um estatuto desmesurado. No caso dele, vejo muito mais influência externa do que pessoal e vejo algum valor… não o suficiente para tamanho hype, mas algum valor. O grande problema do Nélson, que não será bem um problema, é mesmo a necessidade de criar um mito para dar às massas para elas regurgitarem como a atracção da época, para mais estando no clube em que está. Ele aproveitará até concretizar a sua fama ou até as pessoas se fartarem dele e abraçarem outro ídolo pré-fabricado, que adorarão incondicional e irracionalmente. Já os tipos da minha terra estão mais numa corrida de fundo e não precisam de correr com tanto afã à procura do reconhecimento, sendo que alguns entretanto já caíram em desgraça junto de quem lhes adorou, partindo para novas paragens de modo a recomeçarem os seus joguinhos de manipulação de imagem com outra gente menos experimentada. O Nélson ainda pode ter uma saída airosa, coisa que estes gajos dificilmente poderão ter.