11 janeiro 2020

A Midwinter Night's Dream


Isabel estava desconfiada, mas mesmo assim arriscou e foi ao ginásio que havia perto de casa. Era só continuar na rua da sua casa até ao cruzamento com stop, virar à direita pelo tosco passeio em direcção à rua de prédios construídos nos anos 80, com gradeamentos de ferro outrora colorido nas sacadas, e, depois de passar a velha retrosaria da velhota com o cabelo que parecia meio roxo, à esquerda para a praceta sem saída. Cinco minutos a pé. “Instrutores simpáticos e atenciosos, bem frequentado, prevalência de mulheres assim para o entradote, boa diversidade de equipamentos, espaço amplo e higienizado”. Deu o benefício da dúvida. As suas costas precisavam mesmo que alguma coisa se fizesse.



Nos balneários, que de facto estavam cuidados, nada a apontar. Cacifos estimados e os duches sem evidentes sinais de calcário. Pouca gente, não é mau, não se passa tanta vergonha, uma aparente quarentona e uma miúda muito esguia apenas, um instrutor não demasiadamente musculado a andar de um lado para o outro cá fora, uma música ambiente optimista mas com um volume moderado, Isabel fazia cautelosamente o reconhecimento do espaço. Foi pelo corredor bem iluminado até ao fim, podia virar à esquerda para uma sala de alongamentos onde se percebia pela porta de vidro que havia uma instrutora a arrumar umas bolas e cordas, ou para a direita, para uma sala de máquinas de exercício, donde provinha uma luz natural e um som techno mexido que abafava a música ambiente. Foi para a direita, só para espreitar, porque também lhe pareceu que não estava lá ninguém. Àquelas horas, seria o mais natural. Entrou e, de facto, parecia deserto aquele salão de máquinas variadas, com pesos e sem pesos, que fazem bips ou só guincham nas juntas pela falta de óleo, sem uma atmosfera carregada de suor ainda. Porém, numa passadeira afastada, um jovem que passeava com um ritmo baixo sobre o tapete detectou as feromonas deixadas no ar por Isabel à sua entrada. Olhou-a com aquelas sobrancelhas cortadas e os lábios descaídos. Possuía um boné de pala rígida e sobredimensionado para a cabeça, com o cabelo cortado rente onde se discerniam uns tímidos desenhos a desvanecer, mas que ainda assim Isabel conseguiu perceber à distância. Uma t-shirt branca muita larga, caindo numas calças pretas desleixadas sobre uns ténis duma marca qualquer e uma argola no canto do lábio. Mas a bijuteria não se ficava por aqui; ao pescoço, um fio de prata brilhante com uma espécie de sol flamejante na ponta e, proeminentes nas orelhas, refulgindo na claridade, dois generosos vidros a imitar diamantes. O jovem olhou Isabel com um pétreo olhar fixo, mãos sobre os apoios, mantendo a passada lânguida da sua caminhada. Isabel não quereria saber disto, mas assim que ela voltou o olhar do jovem e se escondeu atrás duma fileira de máquinas de fortalecimento abdominal, o jovem sacaria do seu telemóvel e teclaria, com um sorriso malandro que por momentos revelou o seu dente lateral dourado, uns emojis e uma letras esparsas que, em discurso corrente, significaria qualquer coisa como “Mano, a dama ja eh uma beka kota, ya?, mas mano, eu ia la, ya? Mem nakela, ya? Mano, vou fikar ah porta no fim e vou fazer um kanhao para representar o ppl do bairro, ya, e kuando a kota paxar eu, tipo, ya?, vou mandar uns props e pregunto s ela ta nakela e... ya, a ver o k ela diz. Mano, a dama tava a olhar bues, mem assim n boa, ya?, kek axas?” – e esta foi a melhor tradução possível.



Pensava Isabel haver-se colocado a salvo de vislumbres indiscretos quando, detrás dumas dessas máquinas, surgiu um velhote que desafiava a boa etiqueta dos ginásios. Não só pelo seu aspecto desregrado, mas porque a própria indumentária estava longe da imagem que conservamos dum “ginásio a sério”: calças de bombazine maltrapilhas, sapatos muito desgastados, pretos mas esbranquiçados pelo pó e pelo uso, um casaco de xadrez com o pêlo notoriamente manchado, tapando parcialmente um pullover azul pejado de borbotos sobre uma camisa amarelada com os colarinhos apertados, sabe-se lá se o tom original ou se o resultado de anos de lavagem descuidada. Ao pescoço, o passe do Lisboa Viva, sustentado por uma fita vermelha e envolvido por uma capa de plástico. Cassiano Neves. Passe reformado, +65. Na mão de Cassiano, um saco opaco de plástico branco do Mini-Mercado Almeidas que parecia pouco carregado. Cassiano pareceu tão surpreendido quanto Isabel, pois abriu a boca com baba ressequida nos cantos e revelou os seus dois os três dentes ainda mais amarelos que a camisa. Isabel não se apercebera inicialmente, mas num instante reparou em algo a sair pela braguilha das calças de Cassiano: a sua pila – um falo murcho, encarquilhado, triste, sem esperança, saudoso das vetustas conquistas e dos tempos em que se punha de pé, pujante e com veias férreas, escarlate de tão excitado, em ocasiões até mais de que uma vez por dia. Agora era uma sombra de pila. O retrato duma juventude ida. O sinónimo do Outono da vida. Uma virilidade pelo cano abaixo. Um motor com vontade mas sem a força dos cavalos mortos pelo tempo. Isabel arregalou os olhos e boquiaberta não emitiu um som. Cassiano percebeu que provocara uma comoção. Sem grandes pruridos e antes que Isabel pudesse cometer alguma acção, aproveitando o choque, salientou com a sua velha mão esquerda de pele trigueira e unhas compridas e sujas o facto do seu sexo estar ali ao léu e, com uma voz dorida, tentou saber sinceramente e de forma o mais cortês possível: “A menina seria capaz de dar uma alegria a este velhote?”.



Cassiano nem sequer reparara que a reacção de Isabel não foi propriamente a de quem recebe uma surpresa agradável, ela quase instantaneamente conteve um vómito e tapou a boca com a mão à laia de quem diz “que horror!”; sempre ao contrário do que se vê nos filmes do género, onde a surpresa é sempre agradável, todos os temores iniciais desaparecem e ela se envolve com dedicação. Aí sim, os anseios dos velhotes desesperados são cumpridos e as meninas revelam-se sempre melhor que a encomenda, solícitas como deve ser. Mas Cassiano já não via bem. Cenas relacionadas com a diabetes, cataratas e anos de andar a trabalhar junto de ferro fundido, sem óculos e com as limalhas incandescentes a saltar por todo o lado. Além disso, não coloca o colírio receitado pelo tipo da farmácia, o filho do Zé Pires com a Armanda da Moita, um bom rapaz. Não consegue acertar nos olhos e depois aquilo escorre-lhe para o lavatório, para o chão e até para a boca, é uma balbúrdia. E ele não consegue evitar provar aquilo, sabe mal, parece mesmo o bagaço da tasca do Quim Tonho, ali como quem vai do campo do Luso para o antigo Manuel de Mello e vira à esquerda até meio da rua, uma pomada demoníaca que era o principal, senão único, combustível de Agenor, um preto desdentado que vivia numa casa a cair junto da estação quando calhava, porque eram mais as vezes em que se quedava no chão duma rua qualquer. Não, mais valia o vinho servido no copinho de três. Era a Celeste, a assistente social, que lhe ia pôr as gotas todas as Quartas-Feiras. Mas Cassiano não gostava dela, era bruta, assim a atirar para o gorda, já ia no terceiro filho e ainda não devia ter quarenta anos. As mamas dela eram muito espalmadas, autênticos moldes de badalos, e andava sempre com um totó que fazia sobressair as raízes escuras do seu cabelo louro. Ia lá sempre a despachar e ficava possessa quando Cassiano mijava para o chão. “Então mas você não consegue fazer pontaria? Ai meu Deus...”. Nem quinze minutos estava lá, dizia que tinha mais coisas para fazer. “Deve ser ires fumar para a esplanada, a ver se aparecem aqueles gandulos para lhes cravares uns trocos em troca dum broche, não é? Foi a ser puta que chegaste aonde chegaste, não foi? Estas gajas de hoje são todas umas putéfias...”, pensa Cassiano, mas a visualizar-se a si mesmo a dizer-lhe isto de dedo em riste, uma forte expressão de reprovação no rosto e ela quase a chorar de vergonha, com o peso da repreensão moral de Cassiano a enterrar-se profundamente no seu coração de putéfia. Vamos lá, Celeste, admite: és mesmo uma rameira. Mas não, Cassiano não consegue ser assertivo. Já não pode. Já pensar nestes termos não é mau de todo, dada a idade e o desgaste. Já muitas coisas se varreram da memória. Já não há músicas algumas que se recorde. A não ser a música do “Avante!”, que era trauteada lá nos fornos e um pouco por todo o lado. Às vezes, a passear junto à baía, detém o olhar fixo no horizonte e pensa “those were the days...”, não exactamente assim, porque Cassiano nunca se acometeu de sentimentos poéticos nem sabe a referência velada ao Archie Bunker, mas com esse mesmo suspiro de saudade implícito.



Foram bons tempos, apesar de tudo. A gente assobiava a melodia do “Avante!” às escondidas na Siderurgia, distribuía panfletos clandestinos pela Lisnave, carregava nos maços e marretas das oficinas da CP a força do proletariado unido. A fraternidade operária estava bem e recomendava-se. Resistia aos fumos dos químicos, à ferrugem das vigas dos armazéns, ao verdete das máquinas, às intoxicações provocadas pelas águas salobras, a malta aguentava. E tudo com uma fatia de pão e uma sardinha ressequida por dia. O povo sustentava-se entre si, nos casebres quase defenestrados onde famílias numerosas coabitavam com as ratazanas e outros bichos rastejantes, todos alinhados numa ruazinha que começou sem esgotos e com muita lama, miúdos todos sujos a comer do chão, gente que ficava especada a olhar para uma câmara fotográfica como se aquilo fosse uma modernice esquisita, com olhares sumidos e sulcos que eram autênticos carris para o suor naquelas caras. O futuro estava ali, contudo, nessa força inquebrantável mas humilde, assim rezava o que dizia o Bento, o Chico Varão, o Dias, o Alentejano e outros do partido, era preciso era os camaradas permanecerem unidos que um dia “o sol brilhará para todos nós”. Ah, como era bonita essa letra. Por isso Cassiano ainda a sabia de cor. Tudo gente que dava o litro e muito solidária. Havia que transformar o cansaço em alegria através do espírito de grupo. Ao fim duns decilitros de vinho carrascão, as coisas alegravam-se ainda mais. O Bento não sabe, mas o Cassiano, numa noite em que o Bento foi lá para a reunião secreta do comité e ele ficara a beber uns copos lá na rua, viu a mulher dele a passar e a acenar-lhe toda simpática. Pelo menos, foi o que pareceu a Cassiano. Era a Judite, tinha um cu que era uma maravilha. Já mantinham uma relação namoriscada há algum tempo, ela sempre lhe presenteava um sorriso quando ia servir a sopa lá na fábrica e Cassiano não era muito daquelas coisas políticas, gostava duma boa foda assim de vez em quando, como mero desinformado que era. E a Judite também, que isto de ter o marido a pensar mais na liberdade e no fim da opressão burguesa também lhe secava os fluidos. Tapou-lhe a boca para não se ouvir nada e ela levantou o vestido meio em farrapos, revelando uma vulva com níveis estéticos muito saudáveis para uma mulher proletária. E foi avante, camarada, avante. Mesmo assim, Juca, o filho deles, ainda acordou, aquelas paredes pareciam papel, “Mãe, está aí?” e o Cassiano saltou pela janela fora, assustou um gato, o cão ladrou, ai c’um caraças!, o Cassiano vai ser apanhado literalmente com as calças na mão. Em pânico, escapou-se para a escuridão, ainda derrubou um caixote e ficou à espera. Ao fim duns segundos, saiu do seu enconderijo, pensando estar tudo controlado, mas na penumbra deu de caras com a irmã mais nova da Judite, a Ilda. “És tu, Cassiano? Olha para esse estado!”. E ele veio com algumas desculpas, notava-se o cheiro a álcool e Ilda condescendeu e até achou graça. Passado não muito tempo, Cassiano comeu a Ilda também. A Ilda depois casou-se com o Alentejano, que por sua vez andava a comer a irmã do Bento até esta apanhar uma coisa esquisita que lhe deixou toda amarela e bexigosa. Nessa altura, o Alentejano borrifou-se nela e arrastou a asa para a Ilda. E faziam um bom casal, embora lhes calhasse o azar de terem tido dois filhos atrasados mentais. Cassiano também gostava da sua Elisabete, a esposa legítima, fora-lhe recomendada pelo Dias, primo de Elisabete, ambos vindos de Vendas Novas, e que também era seu vizinho e casado com a Aidinha, prima de Judite e Ilda, que tinha um braço mais curto que o outro e que por isso estava dispensada de trabalhos mais pesados e era a ama principal da Verderena. Tudo bem que Cassiano dava as suas facadinhas no matrimónio, mas Elisabete trabalhava bem, cozinhava melhor e não perguntava muito. Tal e qual como o Dias tinha prometido. Era tudo gente muito próxima, está bom de ver.



Esta alegria teve o seu zénite no 25 de Abril, ena pá, aquilo é que foi festa. Quando lhe perguntam onde estava no 25 de Abril, Cassiano diz que estava na fábrica até virem o Bento e os outros aos pulos, agitados, a dizer que naquele dia não se trabalhava mais. “O fassista do Caetano está preso”! Mas isso era apenas parte da história. A seguir a ter saído prematuramente da fábrica, Cassiano foi dar a última foda na Judite. É claro que ele não sabia que era a última nem percebeu o augúrio que daí adviria. Toda a gente esteve eufórica durante umas semanas, muito ocupada em plenários, comissões e manifestações, pintavam-se murais e faixas, uns citavam a China, outros a URSS, aqueloutros a RDA e o Chico Varão derretia-se todo pelo heróico povo da Albânia. O pior foi depois, quando o ordenado deixou de pingar. O patrão tinha fugido para o Brasil com a Maria de Lourdes, uma loura nortenha que andava sempre atrás do chefe com papéis e malas. Era ela que tratava de tudo, na prática. Foi mais a fuga dela que pesou, já não havia ninguém para passar os cheques e era ela que tinha as chaves do cofre. Nem cem escudos encontraram nas gavetas do escritório em pantanas. A malta ao princípio ainda formou uns piquetes onde se jogava maravilhosamente à sueca, mas depois começou a gerar-se alguma inquietação e até zanga. Desataram a aparecer uns pretos e uns retornados à procura de trabalho e a solidariedade começou a esfumar-se. Veio esta gente de fora e a malta de cá continua com fome, não pode ser. Do ambiente fraternal entre os camaradas, passou-se a desconfiar do burguês escondido em cada um. O acelerador da mudança estava a fundo. O Bento passou a usar gravata e mudou-se para Lisboa. O Chico Varão foi preso. O Dias desapareceu por uns tempos, depois soube-se que foi para a França onde estavam uns tios. E o Cassiano parado na fábrica agora fria e despojada até que um dia deixou simplesmente de aparecer. E ninguém se importou.



Acabou por se juntar a Elisabete na padaria que esta tinha em Sto. António da Charneca. Podia ter sido pior. Ganhavam razoavelmente, embora isso lhes custasse o sossego de todas as noites e um certo aconchego conjugal. Ainda assim, davam-se bem. Fodiam pelo menos uma vez por semana, pelo menos até ele fazer 40 anos. Depois disso, já não sabe. Foi a hipertensão, vesícula, o reumatixo, as cruzes, as varizes, tudo de enfiada em ambos, com a falta de tesão de permeio nele. De vez em quando, o cu da Judite atravessava-lhe a mente quando fechava os olhos, depois abria-os e dava de caras com uma Elisabete esforçada e coberta de farinha, mãos na massa e um bigode a brotar nas faces luzidias e rosadas, que lhe alertava “Tens de tirar os papo-secos do forno!”. A especialidade da casa eram as bolas de manteiga, que abasteciam as principais pastelarias do Barreiro até a Moderna começar a ter produção própria. Mas também se safavam com a padaria convencional e forneciam umas quantas carrinhas de transporte que iam até Azeitão ou a Pegões, se fosse preciso. Não tinham filhos. Elisabete tinha um problema nos ovários, já desde os vinte e tal anos, tomava comprimidos para as dores. Cassiano também não se importou com a falta de descendência, sobrava mais para o vinho, embora os medicamentos consumissem muito do orçamento. Depois houve um dia em que Elisabete cuspiu sangue inadvertidamente sobre a massa do brioche e os clientes reclamaram muito da “massa com cor de cereja mas que sabia a ferro”. Foram outra vez à farmácia do filho do Zé Pires com a Armanda da Moita e este deu-lhe uns comprimidos e duas cápsulas para tomar a seguir às refeições. Isto numa Sexta-Feira. Passou-se o fim-de-semana e na Segunda-Feira, quando o Cassiano foi pegar ao serviço, Elisabete estava esticada no chão da padaria sobre um tabuleiro de pão acabado de cozer com o cão a lamber-lhe a cara e o rabo a abanar. Cassiano ainda duvidou, mas quando o cão parou de abanar a cauda e o fixou com aqueles globos negros, soltando um tímido ganido, Cassiano percebeu claramente a mensagem que o cão lhe transmitira. Os cães não enganam a gente.



Como Cassiano não percebia basicamente nada de padaria, o negócio foi trespassado. Ainda convidaram Cassiano para ajudante mas ele declinou. Já não era um local que lhe proporcionasse boas memórias. Deambulando pelos cafés da extensa Avenida Bocage e suas transversais, foi procurando derreter essa  memória impregnada de dor e solidão em ralis de copos e garrafas, embaciando cada vez mais o olhar e envelhecendo muitos anos numa matéria de meses, convivendo com Agenor e outros sub-humanos decrépitos entre o lixo acumulado fora dos caixotes em dias que se tornavam noites e depois dias outra vez. Conservara o cão, que, sempre sensato, parecia olhá-lo com pena quando Cassiano ficava sobre a cama um dia inteiro, todo mijado, as moscas na sua boca aberta, um crucifixo torto sobre a cómoda empoeirada, onde uma velha fotografia a preto-e-branco duma Elisabete jovem e sorridente repousava. Um verdadeiro compincha para qualquer vagabundo que se preze, este cão, que era o único que ainda o acompanhava. Um dia, o Chico Varão, já mais refeito na vida, encontrou o Cassiano a tropeçar numas pedra soltas da calçada e deu-lhe um abraço. Disse que andava na Câmara e que se calhar precisavam duns almeidas, assim uns gajos que varressem, trabalhassem com pás e essas coisas. Aquilo era emprego para a vida. E assim foi. Quer dizer, o Chico Varão reformou-se logo aos 45 e moveu as suas influências para que o pessoal amigo também fosse. Ainda assim, o Cassiano teve de esperar até aos 51 anos. Foram alguns anos sempre no sujo, à chuva e ao sol. As gentes foram mudando, começaram a ser mais ensimesmadas e já ninguém dizia bom dia a ninguém. Os miúdos foram crescendo mal-educados. Varria muitas seringas do chão, deu de caras com dois putos roxos com um garrote no braço e a babarem-se nas traseiras duma arrecadação junto do bairro dos ciganos, tentaram roubar-lhe algumas vezes e até levou porrada duns putos bêbados à noite. Mas também encontrou muito material ainda em condições abandonado nos caixotes, até bons brinquedos para cão, carteiras com algum dinheiro e outros pertences com valor. Portanto, tudo se compensava. E era uma reforma razoável, dava para os comprimidos e para o essencial. Isto é, o álcool e a ração para o cão. Que isto de restos sempre disseram que não são uma alimentação correcta.




Mas isto de reforma não é um mar de rosas, não se pense assim. É uma sucessão de minutos e horas que tardam a passar e que se acumulam ao ritmo irritante do tic-tac do velhíssimo relógio da sala. Não há um objectivo em mente. A mente confunde-se. Os copos somam-se vazios sobre o balcão. A cabeça pesa. Nada parece fazer sentido, desde as vozes na televisão aos carros que passam na rua. As pessoas são apenas montes de carne e ossos, anónimas. Onde se escondeu a alegria? A esperança no amanhã? A sociedade de que o Bento falava todo entusiasmado? O Bento está aí, nas páginas dos jornais que Cassiano já não consegue ler. Nem é pelo problema dos olhos, e o filho do Zé Pires com a Armanda da Moita bem lhe disse para andar sempre com os óculos, é mesmo por não ter paciência nem capacidade de perceber o que se anda a passar. Oh Judite, Judite, o teu cu é tudo o que me lembro e aquela noite em conheci a tua irmã, Judite, foi quando me senti mesmo vivo. Quando o coração acelerou, quando tinha um propósito e uma excitação que agora, Judite, não encontro em lado algum, pensou Cassiano com as mãos na cabeça sobre um banco na praceta em frente ao ginásio. Onde gente jovem e asseada vem exibir o seu glamoroso físico, juventude vaidosa e petulante, pobres desvairados que ainda não perceberam que, tal como a praceta, a vida não tem saída. Nem ele percebia como se poderia retirar prazer a correr por gosto, a esforçar-se por carregar pesados fardos de ferro com empenho, a testar voluntariamente os limites do cansaço. E dizem que ainda pagam, nem sequer têm um patrão a chicotear-lhes com um frígido olhar autoritário. Onde viemos parar, afinal? Cassiano sentiu-se enganado. Traído pelo destino. Que mal fizera ele?, questionava mudo, tentando compreender minimamente o porquê das coisas. Mas não por muito tempo. A cabeça doía-lhe, os olhos ardiam, os ossos fraquejavam. Das duas uma, ou faltava álcool ou faltava a dose de comprimidos. Era tudo muito confuso, muitas coisas para prestar atenção. Carros a apitar e telemóveis a vibrar por todo o lado. E Cassiano, trôpego, entrou dentro do ginásio sem perceber porquê, como nunca compreendeu bem as coisas durante a vida. A clarividência nunca fora o seu forte, já percebemos isso: até tinha os comprimidos e um litro de cerveja no saco que levava na mão direita e não dera conta disso.



***



Isabel não voltou mais ao ginásio, claro. É que nem pensar. Saiu dali a correr, encontrou o instrutor, a instrutora veio logo a seguir e ambos ficaram a tratar do Cassiano, que andava ali de pila à mostra por entre as máquinas. Empurraram-no cá para fora, o instrutor meio a contra-gosto e com algum nojo recolheu o sexo de Cassiano para dentro das calças e ameaçou chamar a polícia caso a situação se voltasse a repetir. “Ah, isso é que não! Vamos chamar a polícia de qualquer forma! Velho tarado, ainda se atira a uma criança e depois como é? Vamos é reportar a situação!”, insurgiu-se a instrutora, quase com os lábios a tremer. “Achas mesmo?”, duvidou o instrutor: “O velho ‘tá bêbado, não é dessas coisas...”. “Não, não, não! É que é já!”, replicou ela, sacando do telemóvel. “Eu... eu não quero problemas...”, balbuciou Cassiano, tonto, cambaleando para fora dali, mão esticada em sinal de paz. “Ai, que merda, ‘tou sem bateria! Ó Gonçalo, liga tu para a polícia!”. Mas Cassiano já lá ia aos poucos no fim da praceta, aos encontrões nos carros estacionados e Gonçalo, preguiçoso, respondeu “Oh Carla, deixa lá estar, vamos mas é arrumar o equipamento que daqui a pouco a gente começa a chegar. Mais vale nem falar disto que é para não dar má reputação ao ginásio... Já viste o que é se começarem a dizer que andam tarados à solta por aqui? Não era bom, pois não?”. Carla conformou-se. Gonçalo tinha sempre uma forma calma de fazer valer os seus pontos de vista. Ao contrário do seu namorado, um franganote destravado que facilmente elevava o tom de voz quando se juntava com os parceiros de tuning ali na mata de Coina, embora essa rudeza até fosse sensual. E era realmente melhor irem tratar das coisas. Mas ainda guardava alguma raiva interior dentro de si. Gonçalo gostava daquele nervo, daquelas explosões femininas. A sua namorada era uma princesinha com notória falta de sal e muitas horas a ver vídeos de animais e de como arranjar pestanas na net. Só gostava de foder por cima dele e no mesmo lugar na cama e nunca às Terças e Quintas-Feiras, que eram os dias do yoga. E nos dias do yoga a tranquilidade deve ser total e primordial, até sobre o sexo. “Olha lá”, disse Carla, maliciosamente, “foi engraçado ver-te a mexer na gaita do velho...”. E Gonçalo, “Eh pá, isso não sai daqui! Só o fiz porque... porque foi a situação que foi, só isso! Eu só mexo na minha!”, e sorriu. Ambos reentraram no ginásio muito cúmplices e divertidos. Por isso, não admirou que quando a sala começou a ficar composta, os utentes tivessem ficado desagradados com um certo desleixo organizativo, que até aí nunca se havia manifestado: é que Gonçalo e Carla foram dar uma rapidinha à arrecadação e até se esqueceram dos deveres.



Portanto, se Isabel queria resolver o seu problema teria de arranjar outra solução. Os outros ginásios eram longe e mais caros, porém. Ficava mais barato arranjar daquelas bolas gigantes e experimentar em casa. Na sala dava, bastava desviar um pouco os móveis. E ainda dava para ficar junto à televisão, para distrair durante o exercício diário a que se iria compremeter a cumprir. Mas não era fácil. Não só a ginástica entediava-lhe, por muito benéfica que fosse, como a própria televisão só passava coisas deploráveis. Especialmente à tarde. Por incrível que parecesse, os programas vespertinos das televisões generalistas nem eram dos piores. É que ainda ia lá um convidado maluco que metia toda a gente a rir ou um artista musical qualquer, que por muito rudimentar que fosse o seu som, sempre era música que ajudava a passar o tempo. Ainda assim, havia sempre uma parte substancial dedicada às desgraças, desastres por todo o lado, a tragédia banalizada. Sempre em cima do acontecimento, por todo o lado, a televisão transmitia a miséria para gente comodamente instalada nos seus sofás assépticos. Agora ali tão perto da Isabel: uma tentativa de assalto a uma casa térrea perto do parque industrial da Quimiparque redundara na detenção de um jovem delinquente, com a fuga de outros dois, segundo testemunhas oculares. Isabel parou de esticar os braços e olhou por instantes para o televisor: estava um cão com ar abandonado e de aspecto muito inteligente a fitar a câmara junto à porta da casa, já com uma faixa da polícia para vedar a entrada de estranhos. E o jovem tinha um boné sobredimensionado, uns brilhantes muito espampanantes nas orelhas e qualquer coisa pendurada no pescoço, deu para perceber mesmo com a câmara aos quadrados sobre a cara dele enquanto era encaminhado pelos agentes para o carro. O jornalista ia referir qualquer coisa sobre o residente da habitação, um aparente septuagenário que vivia sozinho, isto é, descontando o cão, de acordo com os vizinhos. Mas Isabel suspirou e fez zapping nesse instante, procurando alguma música que só encontrou ao cabo de alguma busca num canal africano. E retomou o extenuante e obrigatório exercício, que até aí não se traduzira em melhorias evidentes para as suas costas, com a companhia de duas pretas a abanar os seus cus gigantescos e um preto com notórios problemas nas articulações e na dicção.