30 julho 2015

Mariah Carey

Não quis acreditar quando vi a Mariah Carey perto de mim. Lá estava ela, inundada de maquilhagem sobre aquela pele tostada, quase que uma obra perfeita de Photoshop, a roupa da moda comprada numa Primark a disfarçar que era Prada, saltos altos a revelarem a unha tingida com uma matiz que não era rosa, nem vermelho, nem azul, antes uma cor intrincada que ninguém sabe ao certo como catalogar, os adereços chocalhantes e pouco práticos mas que devem despertar uma cobiça irritante nas outras tipas e, como pedra de toque do pandã estilístico, uma expressão facial plástica, fria de tão imaculada, cujo único brilho provinha do batom esparramado naqueles lábios desenhados com compasso, esquadro e pincel milimétrico, já que as pestanas, frondosas, pareciam obras de engenharia mecânica, e as sobrancelhas, mais finas que a mais fina massa de pizza e desbastadas meticulosamente após horas de pinçadas mais ou menos dolorosas, estavam concebidas para serem uma espécie de adereço facial ao cabelo, alisado pelo vapor dum ferro fervente e tintado numa tonalidade nem bem loura, nem bem castanha, mas muito na moda. Parecia uma bonequinha de porcelana que ganhara vida e saíra sub-repticiamente duma loja de faianças.

O meu espanto foi em vê-la sozinha, sem estar acompanhada por um gajo qualquer também ele muito na moda, daqueles que desenham a barba como o Paulo Fonseca e vão muito ao ginásio para ficarem com braços muito fortes nos quais possam esparramar tatuagens das quais não saberão o significado e peitorais salientes e depilados com minúcia, na esperança de virem a ser convidados para entrar no Magic Mike XXL. Se calhar estavam a “malhar” no ginásio. Quando falam em “malhar” penso sempre no jogo dos velhos e imagino-os a tentar mandar os pinos para o chão ou, melhor ainda, a serem eles os pinos e a levarem com os ferros em cima da cornadura. De preferência, deveria estar acompanhada por um preto. Porque os pretos estão na moda. Os pretos e tudo o que é relacionado com eles, desde o sotaque e as expressões que me fazem desejar que eles fossem todos familiares do tipo d’ “Os Deuses Devem Estar Loucos”, passando pela gastronomia e acabando no idiossincrático gosto por roupas e preferências artísticas a atirar para o boçal. Os pretos estão tanto na moda que tudo o que digam ou façam é aceite como uma coisa porreira. Desde que li num panfleto “venha praticar kizomba porque praticar kizomba é viajar no tempo”, ilustrado por uma fotografia dum preto a colocar a mão apenas uns estratégicos centímetros acima do rabo duma “dama” (acho que é assim que eles chamam às mulheres; eles devem ser os “ases” ou os “reis” e só um teve a audácia de se intitular “valete”), que acredito piamente que hoje em dia os maiores vendedores de Torres Eiffel deste mundo são os pretos. O tamanho da verga deles ajudará, por certo, por muito que digam que “o tamanho não interessa”. Balelas que já ninguém compra, nem mesmo com super-saldos sobre as promoções.

Apesar de sozinha presencialmente, estava acompanhada por um telemóvel touchscreen, que acariciava com cuidado, não fosse ratar demasiado a sua unha. Penso que era um i-Phone da “Éiple”, que é tudo o que esta gente conhece e é uma das peças mais imprescindíveis para obter reconhecimento social. Devia estar a debitar emoticons num comentário a uma amiga qualquer que exibia com opulência as suas novas unhas de gel com uma careta patética no Facebook ou no Instagram. O nível de literacia dela e das suas amigas mede-se, segundo consta, pelas complexas frases que expressam por intermédio de bonequinhos. Sim, porque ela não deverá ser capaz de conjugar correctamente as formas verbais no pretérito perfeito da segunda pessoa do singular, mas é francamente hábil em juntar bonequinhos de maneira a que todas as suas pares percebam. Uma putativa campeã de Emojination. E depois lançava expressões de superlativo enjoo, gritos mudos de impaciência, com aqueles olhinhos que se esforçam por ficar esbugalhados sob o peso mastodôntico daquelas pestanas de meio-metro, especialmente às pessoas que respiravam de muito perto o seu ar. Uma chatice, as pessoas normais, sem bronzeados Piz Buin nem bugigangas sugeridas pelos blogues das gajas “trend-setters” – e que encarnam basicamente o que os santos representam para religiões mais formalizadas como a católica na sociedade tão esvaziada quanto exibicionista deste maravilhoso mundo moderno, onde tudo são sorrisos, exclamações de êxtase automático e paixões incontroláveis e instantâneas. Pois, se uns professam a paixão de Cristo e todo o bem d’Ele emanante, outras espalham a palavra d’A Pipoca como a sebenta indispensável para sufragar quem é “hot” e quem é “not”: as “hots” são as que vão ao ginásio às horas adequadas para apanharem os gays mais musculados do pedaço, pedem o gin “com açúcar no rebordo do copo e zimbro q.b.” e estão com a gente certa na festa certa a sacar selfies, as “nots” são basicamente o resto, gente estupidamente frugal, inconcebivelmente feia e aborrecida, que até sabem o que é a crise de facto.

Ela tem um marido. Um acompanhante. Um amigo especial. Uma marioneta, enfim; mais um dos seus incontáveis acessórios, mas com a particularidade de este não caber em nenhuma das suas malas e maletas. A Mariah Carey normal tinha um “sugar daddy” rico e possivelmente produtor dos seus próprios discos, esta terá um advogado ou consultor que passa muito tempo fora de casa, que a ajuda a manter as aparências e que a guia num Audi/BMW/Mercedes/Jaguar/Porsche (outras marcas não serão aceites, a menos que o carro custe mais de trezentos mil euros) para as festas da gente que interessa, que, embora ela saiba o quão são aborrecidas, é onde o seu sorriso é condignamente louvado. O sorriso deve ser apenas utilizado para a pose e com moderação, porque sorrir faz rugas e os cremes custam os olhos da cara. E do cu também. O cu que ela só dá aos amantes que vai conhecendo nas festas e que são, de preferência, estrangeiros com cara de estrangeiros de países conhecidos. Porque ninguém quererá saber dum gajo com aparência de ter saído da Amadora ou dum gajo do Laos, mas ficará sensibilizado se ela aparecer numa dessas selfies com um dinamarquês com olhos azuis pungentes e barba por fazer à Viggo Mortensen. Ou um angolano tipo Anselmo Ralph que fale numa língua que ela até percebe e que tem uma língua que a humidifica nos sítios que interessam.

O que ela faz? Não interessa bem ao certo. Vagamente, pode considerar-se “empresária”, embora também possa trabalhar por conta de outrém numa actividade que “não canse muito a cabeça”, porque o cansaço tira o glamour à gente. Coisas giras, como marketing, publicidade, relações públicas ou relações púbicas para a alta sociedade – um outro nome para “esteticista”, que é um termo demasiado anos 80. Anda por lá passando o tempo a cultivar invejas e a colher elogios, no essencial, porque isto de ficar em casa é uma coisa ultrapassada e aí ninguém a vê senão no Skype, cuja definição não favorece as suas formas nem deixa perceber o seu novo corte de cabelo ou o novo creme daquele laboratório francês. “Trabalho” é um substantivo que lhe faz comichão, é demasiado classe-baixa, soa-lhe a coisa da Margem Sul; o ideal é ter uma “ocupação”, porque não fazer nada pode sugerir um certo parasitismo diletante que não é o que se pede às divas. A Mariah Carey também só precisou de cantar a sério no primeiro álbum, depois foi tirando a roupa, fazendo aquela cara de cadelinha abandonada e confiando no playback, nas inovações tecnológicas e nas tipas feias que não tinham arcaboiço para ir para a frente do palco para continuar uma carreira. Valha a verdade, “música” é um conceito que já abandonou a ligação a “Mariah Carey” há uns bons anos, assim como “carreira” é algo que combina tão bem com esta Mariah como um stiletto numa arena de carrinhos de choque. Uma fartura no Urban. Uma mini numa Sunset Party. Um artista virtuoso num festival de Verão. Um bitoque no restaurante de sushi. Um pedaço de rapé inalado por intermédio duma nota enrolada numa casa-de-banho de uma grande empresa. Ela sabe do que estou a falar com estas comparações.


Vi a Mariah Carey no metro. Que é um transporte muito vulgar para ela, mas desta vez teve mesmo de ser, notava-se claramente pelo enfado que brotava da carinha de louça lavada com abrilhantador, dos labiozinhos meio torcidos, do ligeiro suspiro que exalava daquelas narinazinhas perfeitinhas. O meu sonho? Vê-la a espalhar-se ao comprido enquanto procurasse equilibrar-se nas escadas mais íngremes do Metro, em plena hora de ponta, rebolando sem remissão por aquelas escadas com o seu corpinho tonificado, tão estimado mas sem alma, até se espatifar com estrondo que nem uma bola da árvore de Natal na parede. Vocês já arremessaram uma bola de árvore de Natal com violência contra um muro? A bola desfaz-se em milhões de partículas cintilantes e desaparece de forma espectacular. Não te chateies, Mariah, seria um desaparecimento fantástico, se calhar iriam falar muito de ti, quem sabe emprestar o teu nome a uma festa de beneficência patrocinada por uma revista de moda em colaboração com uma bebida alcoólica com sabor muito doce e iriam povoar os teus perfis públicos com imagens dos teus tempos áureos, receberias muitos “likes” e muitos bonequinhos com a lagrimazinha ao canto do olho entre abreviaturas de suposto português misturadas com “OMG” e “RIP” e outras expressões americanizadas, links para websites de moda e obituários na Moda Lisboa. Tudo o que uma pessoa decente pode ambicionar, ao fim ao cabo.