14 novembro 2013

No Fuck, No Drive

“A terra a quem a trabalha!”

“O povo unido jamais será vencido!”

“Liberdade para Otelo!”

“Vota APU!”

“No fuck, no drive.”

Notam algum padrão? É verdade, são todos slogans de contestação. A maioria dos quais do período 1975-1985. Estiveram todos pintados nas paredes e muros da minha terra. É uma terra propensa a graffittis da mais variada ordem. Mas aquele último foi o que realmente despertou polémica.

Um grito existencialista? Niilismo à solta? O apelo revoltado de uma minoria? O distorcer de uma mensagem comercial com fins subversivos? Propaganda ambientalista? Desespero celibatário? Ninguém sabe ao certo. Provavelmente, nem o autor. Que teria, certamente, um pouco de génio e de louco e ficou anónimo para todo o sempre.

O mistério adensou-se em torno deste lema, ganhando aura de mito que sobreviveu à voragem do tempo. Até hoje continua a atormentar a “intelligentzia” local. Sábios, peritos de linguística, estudiosos da semântica e simples curiosos debruçaram-se sobre o significado concreto em acesos debates filosóficos, mas não foi atingida nenhuma conclusão concreta. Ninguém quis assumir a interpretação literal “sem foda, sem condução”. Era óbvio que havia algo mais escondido, apenas não havia consenso sobre qual a mensagem subliminar subjacente. Ou mensagens. E então optou-se por deixar a frase quieta, tentar ignorá-la, como se de um monstro adormecido se tratasse. Nenhum livro sobre a história da terra menciona esta frase, devido ao receio de exacerbar o demónio da dúvida que existe em cada local.

Em tempos idos, verdadeiras romarias de jovens, cavalheiros casados, senhoras distintas, velhos jarretas, crianças inocentes e escroques da sociedade se dirigiam àquela parede pejada de misticismo para apreciar a caligrafia escorreita daquele graffitti e a sua misteriosa força. Era uma espécie de azinheira de Fátima. Acenderam-se velinhas, examinaram-se pedaços de tinta à lupa, tiraram-se fotografias. Houve quem chegasse ao limiar da loucura, puxando os cabelos e anunciando o aproximar do Juízo Final. “VAMOS TODOS MORRER!!!!”, clamava o sr. Robalo, que claramente mordera o isco provocatório desejado pelo autor da frase. “Isto é só mau inglês e a tentativa de surrealizar com o célebre «No pain, no gain»”, tranquilizavam os mais cépticos. Mas nem eles próprios acreditavam naquilo que diziam, na vã tentativa de se convencerem a si mesmos de que não havia algo mais críptico e superior no cerne da questão.

Este jargão destronou sem esforço outros dizeres que até aí tinham gerado alguma celeuma, como “Vete [sic] ao espelho”, “Culha, o vosso pai” ou “Vitinha e…”, este último o graffitti de contornos mais agathachristianos alguma vez presenciado na terra, com a suas pequeninas reticências a ensombrarem o vigor com que a palavra “Vitinha” tinha sido pintada em todo o comprimento do muro. Quem era o Vitinha? “E” o quê, Vitinha? Porquê esta dúvida infernal? Mas a partir de “no fuck, no drive” nada mais seria igual. Os partidos políticos aburguesaram-se e deixaram de produzir murais com a qualidade de outrora, preferindo os mais assépticos cartazes com gente sorridente. Os produtores de graffittis simplesmente já não sabiam ler nem escrever e apenas colocavam rabiscos com nítida influência árabe, imperceptíveis e declaradamente anti-artísticos e apolíticos. O público geral tinha finalmente ganho consciência das intricadas perturbações surdas que assolavam as mentes da localidade. “No fuck, no drive” foi o princípio do fim, o último dos slogans dos bons velhos tempos, o derradeiro “statement” de uma estética meio punk, meio vanguardista, decididamente “anti-establishment”. Nunca se tinha visto e nunca mais se voltou a ver.

“No fuck.”

“No drive.”


Arte urbana, política de rua, cérebros activos a explorarem os limites da criatividade. Tudo de borla, à frente dos nossos olhos, naquele outrora singelo muro. Um ponto alto da História da minha terra.

05 novembro 2013

Maria

A sério que há qualquer coisa sobre a Maria. Não que ela seja um trambolho. Não é. Mas o que faz com que os homens comecem a salivar quando a vêem? Ela teoriza com isso, diz que é por ser simpática e por ter confiança em si mesma. Tudo bem, é certo que isso ajuda. Mas não explica tudo. Consigo nomear uma mão cheia de casos semelhantes sem o mesmo sucesso. Consigo identificar uma pazada de gajas mais apelativas fisicamente que ela e, é isso mesmo, essa pazada de gajas não desperta o mesmo burburinho junto da turba masculina. Deve ser o conjunto, a soma das partes inferior ao todo, que faz a diferença não totalmente perceptível por mim. E ela, embora talvez não tenha consciência da relativa facilidade com que cativa as atenções másculas em comparação com outras gajas, está ciente que é uma musa para muitos. Depois é só escolher: este é o grande dilema dela, a tomada de opções, aquilo que lhe dá dores de cabeça. É a crise da abundância.

Maria é daquelas que está terrivelmente apaixonada por umas semanas até mudar a agulha para outro candidato que entretanto conheceu inesperadamente em sítios tão díspares como um restaurante, uma discoteca, a praia ou um transporte público. As coisas parecem bastante fáceis. Amor vai e vem como uma locomotiva que destranca, dá a volta e engata agora no sentido oposto para iniciar uma nova viagem. Não, as coisas não parecem fáceis; elas são mesmo fáceis. Os homens imediatamente passam a contactá-la via Facebook, e-mail, SMS, instant messaging e coisas de contacto virtual que eu nem sei que existiam e logo se arranjam saídas, almoços, jantares e cinemas com uma facilidade impressionante. Ela diz-me que são sinais dos tempos. As redes sociais estão aí em força e apressam a coisa, mesmo que o contacto físico tenha sido ínfimo. Isto custa ao indivíduo tradicional que gostava de espreitar a amada a ir à janela no cimo de uma árvore, fá-lo sentir a preto-e-branco, de volta ao tempo pré-industrial. Até o Hi5, vejam bem!, o Hi5!, pode servir para estas coisas e ela assegura-me que já houve casamentos que começaram no Hi5. Vale tudo, má escrita, fotos escandalosamente pretensiosas, conversas ridiculamente formatadas, gostos confrangedoramente deslocados só para manter o chat vivo, nada se nega à partida. Maria não costuma dizer que não. E se disser, é porque o gajo que a abordou é mesmo mau. Meeeeeeeeeeeeeeeeeesmo mau, talvez não tenha os dentes posteriores e nem sequer tenha concluído o 9º ano. Esta abertura também propicia a aventura, certo, mas ela continua num pedestal de adoração que raramente assisti.

Eu sei disto tudo porque me tornei numa espécie de confidente dela. Devo ter sido o único que não me babei quando a vi, nem lhe fiz algum convite para qualquer coisa ao fim de cinco minutos, nem sequer partilho fotografias com grupos sorridentes em sítios com muito hype nas redes sociais. Por variados motivos, como ser um atadinho no contacto com gajas e, principalmente, creio eu, por não estar mesmo interessado nela. E então acabei por tornar no “amigo”. Ou, como eu penso várias vezes, no “desgraçado”. É péssimo. Não pedi por este estatuto e não o quero. Parece que fui entalado num enredo de comédia romântica com a Jennifer Aniston e estou ali num plano secundário, algures entre o gay e o geek, naquela zona cinzenta dos “gajos que não papam nada e são suficientemente totós e confiáveis para ouvir os queixumes das gajas”. Sou uma espécie de “comic relief” dela. Ter a sensação que estou a desempenhar esse papel num filme de gaja já é muito mau por si só. Viver essa sensação sem haver câmaras à volta nem um retorno monetário à minha espera é visivelmente perturbante. Fui ficando amarrado a esta situação e agora é difícil dar-lhe a volta, vai-não-vai lá vem ela meter conversa. E há uma pressão social enorme para que eu a ouça, desde o mel do seu palavreado e maneiras até aos gajos que lá no fundo invejam-me por eu ter captado a atenção dela. Para complicar as coisas, o zénite desta proximidade apanhou-a no seu auge multi-relacional e a mim no meu nadir sentimental. E agora ela sente-se no direito e no dever de fornecer-me indicações tendo em vista uma vida sócio-sentimental esplendorosa e de me enviar links para músicas upbeat de gajas. O que tem vindo a delapidar ainda mais o meu depauperado coração e a fazer-me sentir mais nauseado com o meu contexto actual.

Estas náuseas começam a alcançar níveis físicos; não é apenas estar a dizer de boca cheia “isto mete-me nojo!”; não, é mesmo sentir o estômago a revolver-se, um vácuo que começa a centrifugar cá dentro e uma nítida sensação de mau-estar a apoderar-se. Penso em afastar-me gradualmente dela tanto quanto possível, vou ignorá-la até ela perceber que é para ir pastar longe. Não bastava eu estar ainda à procura dos cacos da minha vida partida, como agora ainda tenho de a ouvir a vangloriar-se pelo excelente fim-de-semana com um par de horas dormidas em constante festa com amigas e amigos que acabam todos na casa uns dos outros e a dormir sabe-se lá com quem, ou a nova aquisição do Facebook, ou sabe-se lá que mais, quando sinto que o meu ponto alto destes dias é casualmente encostar-me a uma gaja boa num transporte público que não se queixa com o meu tocar. Isto é muito triste, mas, enfim, foi aquilo em que me tornei. E chega. Chega de conversas que não pedi e que não me fazem sentir melhor, bem pelo contrário: é que se a Maria consegue tanta actividade sentimental, porque é que eu não consigo?


Bom, ela é gaja e abusa de vestidos e saias e sorrisos largos. É um grande factor diferenciador. Mas mesmo assim, porque é que num espaço de 3 minutos ela recebeu 3 convites para ir almoçar de grupos de gajos diferentes? Há mesmo qualquer coisa sobre a Maria. Que eu não acho que seja nada de mais, assim como o filme em si, que era uma comédia como as outras e que recebeu demasiada atenção face à que deveria ter tido. Mas quem sou eu para avaliar, afinal? Estou perante o que será uma comédia de qualidade duvidosa e enfiado num cenário de tragédia. Não consigo apreciar as coisas com critério. Não há espaço para uma pequena gargalhada sequer. Maria paira sobre mim para me lembrar que há quem tenha o toque, o olhar, o estilo, alguma coisa intangível. E há quem não tenha. Há que saber viver com isso.

31 julho 2013

A Crise

Há realidades que não são exclusivamente nossas mas que tomamos como tal. Porque há uma identificação tão forte, como uma metáfora perfeitamente esgalhada por uma entidade abstracta, que não resistimos a dizer que aquilo, que não é somente nosso, só pode ser nosso. Pode ser feitio. Pode ser defeito. Pode ser a idade a avançar e é a acumulação de experiências que nos leva instintivamente a declarar “isto aqui é a minha cara, já me aconteceu exactamente isso”. Ou só porque sim. É como aquelas letras de canções que nós pensamos que foram escritas para nós. E agora consigo jurar que o Billy Corgan e, pasme-se, o David Fonseca escreveram letras a pensar em mim. Mas houve um tempo em que tudo era belo e puro e em que eu não dava por nada. O Dentão dizia que tinha uma máquina que fazia fatos do He-Man e o Raposo dizia que tinha um carro que subia paredes “na boa” e que possuía um botão que, uma vez pressionado, fazia com que o carro crescesse sem parar, sendo impossível travar o seu crescimento e o carro nunca mais voltaria ao normal. É claro que o Dentão recebeu montes de encomendas de fatos que jamais concretizou e o Raposo nunca ousou carregar nesse botão, que nem era bem um botão, e também nunca demonstrou que o carro subia as paredes. Uma vez ainda experimentou mostrar a versatilidade do seu veículo, mas aquilo foi contra o rodapé e só levantou ligeiramente as rodas da frente. “É das pilhas, que estão fracas”, desculpou-se. Depois vingou-se e teve um Nikko telecomandado. A vida corria bem. Havia lojas abertas por toda a terra, sabíamos onde comprar saquetas de cromos “que dão prémios”, onde estavam os Bollycaos que eram fofinhos e cremosos e não os duros e oleosos donde coleccionávamos os “Tous”, jogávamos ao quarto-escuro sem falsas intenções e todos os velhos que conhecíamos pareciam que tinham sido sempre velhos e nunca iriam passar daí. Havia o bêbado Vaidoso e toxicodependente Acúrsio, a Fininha e a avó do Bispo e toda a gente dizia olá uns aos outros. Éramos gente importante e estávamos destinados a grandes feitos.

As coisas foram sendo mais ou menos assim, até mesmo quando descobrimos que já nos conseguíamos ejacular como nos filmes, pinguinhas de sémen muito aguado após visionamento de VHSs com nomes tão sugestivos como “Rampa de Bicicletas” ou mesmo outras só com uma etiqueta marada que praticamente denunciava que aquilo era “filme de foda”. Constituímos alguns punhetódromos, Ron Jeremy passou a ser um “household name” entre nós, começámos a apalpar gajas e houve quem fumasse o primeiro Surf 18 ou Golden American, autênticas zurrapas de tabaco. As lojas continuavam a bombar e foi nesses espaços comerciais que começaram a cair os primeiros gadgets, que naquela altura não eram mais que um Spectrum. Os 128k, já com leitor de cassetes incorporado, não façam confusão. Era o topo. O Dentão aprimorara uma técnica infalível para carregar os jogos utilizando uma chave de fendas no parafuso por baixo do leitor de cassetes. O Raposo deu um novo significado intemporal aos jogos “Decathlon” e “WEC Le Mans”, que não vale a pena explicar textualmente, e demorou a perceber que carregar no Space durante o carregamento de jogos abortava esse mesmo carregamento e conduzia a muita frustração, directamente proporcional ao tempo dispendido. O Securas comprou um aparelho com teclas em espanhol e foi gozado por isso, mas não fazia muita diferença: todos esperávamos horas a fio para que um jogo carregasse naquele festival psicadélico de cores e ruído que hoje até parece estar na moda e passar muito na Cidade FM, quer teclássemos em “Enter” ou “Cargar”. O Varetas e o Rajã já tinham um computador “a sério”, um Windows qualquer-coisa com monitor VGA, que eu não sabia o que era, mas que só podia ser coisa boa, porque tinha MS-DOS, cursores muito tecnológicos e as coisas vinham em disquetes, que era qualquer objecto apenas ao alcance do pessoal com mais dinheiro. Eu até pensava que eles conseguiam entrar dentro de ficheiros do FBI, CIA e etc. e poderiam salvar o mundo desde que decifrassem um código e se esquivassem a mensagens tipo “Abort, Retry or Ignore?”. Mas desde que a gente jogasse Arkanoid ou F1 Manager estava tudo OK. Não havia cá invejas. Depois vieram as Mega Drives e o Securas, sempre um passo distante dos demais, optou erradamente pela Master System e, embora defendesse que o Alex Kidd era “altamente”, o certo é que passava horas a jogar Mortal Kombat e Fifa na casa do Dentão. O desprendimento era tal que o Dentão teve um casaco da “Rébuk” que vendeu ao Securas e o Ceras comprou outro igual. Tudo perfeitamente normal. O café do pai do Daninhas continuava lá ao pé da esquina, muito pequenino e tresandando a fritos, mas com uma afluência incrível e malta muito certinha que fazia o totobola. Muita gente trabalhava nas fábricas, nas lojas e nos cafés da terra. Havia já muitos carros por todo o lado, o que não nos impedia de jogar à bola, de cautchu, quando as havia, na rua, no alcatrão, em terra batida e conhecíamos sempre os tipos que se aproximavam para reclamar um “desafio”, embora as coisas pudessem tornar-se complicadas sempre que traziam o irmão mais velho, que já tinha namorada “a valer” e que sabia o que era foder – como nos filmes. “Uau”, pensávamos, “um dia quero ser como tu, bate-chapas e sem dois dentes”. Tempos bonitos. Lá fechou aquele restaurante ao qual só fomos uma vez e até dissemos que “sim senhor, aqui come-se bem”, mas nunca lá voltámos. Desconfiávamos que aquilo não seria grande espingarda por estar sempre vazio, porém ficámos agradavelmente surpreendidos por ser porreiro. O certo é que não voltámos. E quando esse restaurante fechou, reabriu com nova gerência e voltou a fechar e a reabrir com muito mais celeridade. Ou então era só o tempo a passar mais depressa.

O tempo passava, com efeito, mais depressa. Começaram a vir chineses, indianos, brasileiros, os cabo-verdianos passaram a ser a maioria nas escolas que já não eram as minhas e o pessoal começou a andar de carro. Já não se jogava à bola. Começaram a proliferar a TV Cabo e as Playstations. O grupo tinha perdido a sua consistência inicial e entraram novas personagens, como naquelas séries que começam a perder audiência e a dar espaço a tipos que nunca foram destinados para ser os principais, mas que tinham os seus bons episódios de quando em vez. Teimávamos em ser felizes, mesmo com algum sentimento miserabilista tão pós-grunge a acossar-me aqui e ali. É que, assim em termos gerais, toda a gente vivia bem, mesmo que não se soubesse bem como. E ainda não tinha visto nada, mas julgava que podia ter qualquer coisa para me angustiar, nem que fosse o tédio. Era assim para o “fixe”. Esse grande “cool” que era o Kurt Cobain já se tinha matado mas tinha deixado sementes e um grande merchandising. Formámos uma tertúlia de devassa num café próximo e tornámo-lo no nosso território. O dono, o Tio Queiroz, barafustava e coisa e tal, mas éramos nós que lhe enchíamos os bolsos com as minis e os cariocas de limão. Foi a fase do delírio puro, do hedonismo, da desbunda pela desbunda, como se quiséssemos sorver, sem limites, os últimos raios de adolescência que nos faltavam. Lá vinha o Tio Queiroz com “vocês são escumalha!... o que é que querem para beber?” e as coisas foram-se passando, às vezes chegando ao vómito, às vezes conseguindo evitá-lo. As histórias são tantas que torna-se difícil enumerá-las. Era a abundância, o fabuloso mundo dos jovens proto-digitais. A evolução continuava inexorável, porém, e veio o novo milénio, com a internet e a fantástica possibilidade de obter álbuns que não tivéramos possibilidade de comprar ou de pedir emprestado, ainda que, ao princípio, a velocidade de download fosse tão rápida quanto a velhota do anúncio do Obikwelu. Curiosamente, nada aconteceu aos sistemas no ano 2000, a não ser ao sistema do Dentão, que quase se apagou no ano novo, de uma forma menos espectacular que o meu apagão de 1999 – em que, mesmo assim, recuperei heróico para ver o sol nascer no horizonte enquanto os outros todos já dormiam ébrios e vencidos pelo cansaço. Vieram as namoradas, posteriormente convertidas em digníssimas esposas, depois os filhos dos irmãos mais velhos, depois os filhos de nós mesmos. O grupo desintegrou-se. O café do pai do Daninhas começou a ser frequentado por outra gente. Pelo menos, parecia-me – eu próprio já não reparava bem, já não passava por lá amiúde. Disseram-me que já nem sequer era o pai do Daninhas o dono do estabelecimento. Mas não fiz caso, estava a jogar FM e a sacar cenas pela internet. Não reconhecer a gente tornara-se trivial. A terra começou a definhar, as lojas fechavam, a fábrica deu espaço a uma urbanização de luxo e eu pensava “que sa foda”, porque estava bem, embrenhado em sonhos de realidade e cada vez mais cínico, mesmo que achasse que podia estar melhor. Veio a acomodação e o desinteresse. Os primeiros velhos começaram a morrer, mas aquilo nada me dizia. Nunca fui bom a interpretar sinais pouco explícitos. Arranjei trabalho, o dinheiro começou a cair e, mesmo que tudo à volta começasse a parecer-se pouco com o que tinha sido, achei que estava no caminho certo, não reparando que o isolamento ia crescendo. Eles é que estavam mal, fossem quem “eles” fossem. Acabei por sair da terra e iniciar um novo ciclo. Pouco confiante, como sempre. Aquilo que me confortava era saber que havia outros piores e, valha a verdade, havia apenas um ou outro dia mau, mas o comboio continuava sobre os carris.

Ano após ano, tudo na mesma. Para mim. A rotina sedimentou-se de tal forma que qualquer desvio era uma dor de cabeça e eu não gosto propriamente de dores de cabeça nem do sabor do paracetamol. Fui ficando por aí, tentando evitar a chuva, passando por entre os buracos. O problema é que o mundo tinha mudado. Já nem sequer as televisões eram grandes objectos, a portabilidade instalara-se e com ela a banalização das relações. Quando dei por mim, toda a gente falava na crise. Já nem sei quando começou ao certo, mas sinto que ouço essa palavra diariamente há anos. E eu estive adormecido este tempo todo, embalado pelo “portuguese dream”. Que é um sonho tipo o americano, mas à nossa imagem: remediado, tímido, cumprindo os requisitos mínimos. Já não havia emprego. Já não havia gente conhecida. Os sítios cheiravam a mofo, tinham envelhecido como nunca pensei que envelhecessem. Os velhos iam morrendo todos os meses, sem nós nunca termos tido a oportunidade de lhes dizer adeus. E todos confirmavam “era uma grande pessoa”, como nunca reconhecida em vida. Outros, que eu ainda consegui ver agarrados à cama, mas já muito fracos para se agarrarem à vida. Morreram dias depois. “Um alívio para todos”, disseram-me os mais chegados. Comecei a sentir o círculo da morte a apertar-se mais em meu redor. Até o Tio Queiroz fenecera, soube meses depois, por acaso. Mas ainda eram os outros. Pensei que ia escapar incólume. Depois vieram as notícias inesperadas, os choques abruptos que nem trovões numa noite calma, e, finalmente, senti que a crise, qualquer que fosse a sua forma, também me tinha apanhado. “Daqui ninguém sai vivo” – não penses que és diferente. Porque a crise estava aí para democratizar a todos com o infortúnio. Fui atropelado pelo carrossel da crise, pela espuma tóxica dos dias. E estava a dormir muito bem, como se a minha muralha de esconder emoções dum Colunex se tratasse. A crise multiplicava-se em várias vertentes, fossem elas a crise económica, financeira, política, sentimental, de meia-idade, de valores, etc.. É um bicho resistente. Clamava-se por uma revolução e ninguém sabia ao certo o que fazer ou dava um passo em frente, esperançados que o outro, que pensava igual, tomasse a iniciativa, qual “mexican standoff” dos filmes do Tarantino. A não ser no Facebook. Aí toda a gente é gira e inovadora. O Facebook é um cancro, o maior deles, que nos consome sob a aparência de felicidade; é a droga da ilusão com que tentamos mascarar enormes buracos negros sentimentais que nos sugam a vida. E depois há os reality shows patéticos, absurdos, estupidificantes, mas que vendem. Vendemos a alma à tecnologia e a quem nos garanta que é possível ficar na mesma quando tudo à volta se desmorona e não temos como pagá-la de volta. Foram anos a abusar. A sustentabilidade era uma coisa de totós para totós e que, mais a mais, nunca saiu do papel. Vi gente a rir-se por tudo e por nada, das parvoíces mais inanes. Vi imbecis com poder a mais para as suas incapacidades. E agora tenho o meu coração feito numa autêntica passa. Estou mirrado. Assaltam-me memórias de tempos que me parecem extremamente felizes a esta distância e suspeito que estas fotografias vão-me causar ataques diabólicos de melancolia. Não queria ter de viver de recordações como o Vítor Espadinha, mas foi mesmo em Setembro que a conheci e não consigo deixar de identificar-me com ele. Choro mais nestes dias até do que quando era bebé de fralda. Como Midas-ao-contrário, tudo onde toco parece definhar. Sinto-me condenado a aguentar como puder, em longos serões solitários a olhar pela janela, e acredito, como o Sporting, que isto ainda não está suficientemente mau para que não possa ser pior. Pensei que nada ultrapassava o meu Bettencourt até que tive o meu Godinho. A terra, essa, já não tem comércio; as lojas encheram-se de graffittis e tags manhosas e toda a gente sabe que nos hipermercados é onde se compra a qualidade de vida, preferencialmente na época dos saldos. A terra morreu e ainda não sabe. Ninguém lhe disse e ninguém lhe vai dizer. Talvez alguém desconfie, quando houver uma mega-explosão ou aquilo tornar-se numa espécie de subúrbio de Joanesburgo, ou toda a gente que conhecer estiver definitivamente morta ou for encontrada morta no sofá da sala em elevado estado de decomposição. Estou abandonado. Estão todos demasiado ocupados a mandar mensagens instantâneas e a escrever mal, mas ninguém se importa, ninguém é suficientemente audaz para corrigir. “fdx tives te a fzer 1 q c a t dama lol” – é uma espécie de pintura rupestre dos novos tempos. Ninguém sabe se isto é uma pergunta ou uma afirmação. Pode ser uma nota de suicídio, talvez, quem sabe.