26 junho 2018

Christy Turlington


Se te perguntarem porque ficaste com o olho assim, diz que foi a cair das escadas. É o que se costuma dizer. Ninguém vai levantar mais questões. É muito natural, uma mulher a cair nas escadas. É por causa dos sacos e das malas, atrapalham e desequilibram. Já todos sabemos o que isso é e na azáfama metropolitana os riscos adensam-se. E depois as mulheres ainda têm o handicap dos saltos. Basta um pequeno toque por um miúdo mais arisco e pumba, lá vai a mulher pelas escadas abaixo. Mais um lamentável acidente, coisas que acontecem. As compras todas espalhadas. Os talões todos a esvoaçar. As chaves com os cartõezinhos de descontos a resvalarem para a sarjeta. As velhotas que ficam paradas de boca aberta e o resto da gente que te ajuda a levantar, mais a cigana que ia a passar e que te levou as calças pretas da Guess e o estojo de beleza. Desta vez para consumo próprio. O telemóvel super-slim que só não partiu o ecrã agora porque já estava partido. Noutra queda parecida. Agora vai surgir apenas mais uma mancha esbranquiçada num dos cantos e a tampa traseira já não fechará bem. Mas ainda funciona. Menos mal.

É como viver num T1 na zona chique. Podia ser melhor. Podias não ter de estender roupa no teu próprio quarto. Nem ter a bicicleta em cima do armário da louça, ali a tapar a televisão, que por sua vez ainda toca no sofá. E o raio do cão stressa com laivos de claustrofobia, rasga os cortinados, destrói os tapetes, desarruma tudo o que encontra. Pensa que depois um focinho alegre e uma cauda oscilante com que te recebe é tudo o necessário para uma festinha, um pratinho de Friskies e uma voltinha ao quarteirão. Mas vai ter o castigo de te ter posto a casa de pantanas e de te deixado uma poça de mijo junto ao frigorífico. Não há voltinhas hoje. Fica para aí a destruir o resto, a largar o pêlo para cima da cesta de fruta ao lado do chaveiro, a roer o comando da televisão, a destratar qualquer calçado que apanhes. A Bimby está segura, ali aconchegada sob o edredão por cima da máquina de lavar roupa. A essa o cão não deita o dente, está demasiado gordo para saltar tão alto. Mas podia ser pior. Ainda podias estar nos arrabaldes e perderes mais de uma hora para chegares ao trabalho em estradas cheias de buracos e tampinhas de esgoto e sabes lá que mais, enquadrada na romaria duma multidão indistinta, cinzenta e abúlica. Aqui não; há arruamentos ajardinados, gente fluorescente a fazer running pela manhã e jovens urbanos inseparáveis dos seus gadgets. A luz aqui brilha com outra intensidade e o vento pede licença antes de soprar nos cabelos. E ainda vês muita gente interessante nas imediações. Como aquela que entrava na telenovela e que fazia de má. Vai sempre ao mesmo café pela manhã e pede um descafeinado e uma torrada de pão integral com geleia em vez de manteiga. Quem diria, é uma jóia de pessoa. O Sr. Joaquim já nem precisa de ouvir nada, vê a senhora, sorri e passados uns momentos vai servi-la diligentemente. Ou seria a gaja do telejornal da tarde? Não sei, são todas iguais e saem todas na mesma revista. Até o ex-marido é o mesmo.

Não queres regressar a esses tempos sombrios que procuras libertar da tua memória. Quando tinhas os dentes todos tortos, amarelados por causa dos Chesterfield que fumavas e que te conferiam um aspecto toxicómano, ainda para mais com as companhias que andavas. Era a Lena, uma preta gorda e vesga que andava de suspensórios, e a Solange, uma loura falsa com as orelhas cravejadas de metal e um rabo que pedia meças aos amortecedores dos comboios, sempre rodeadas dos manos lá do bairro e dos seus Peugeots 306 de vidros fumados, qual deles com o cap mais estiloso. Eram a Naomi Campbell e a Linda Evangelista de Marvila. E tu a Christy Turlington, com essa cremalheira toda saída e um nariz esguio sobre lábios que pareciam inchados, corpo de extraterrestre com um olhar avermelhado, porém sereno. Ou apenas ganzado. Quando te rias à gargalhada, os teus dentes sobressaíam como vidro sob sol estival e parecia que se queriam atirar ao rio desde aquelas ruelas empedradas e empoeiradas que desciam a pique nas traseiras dos armazéns abandonados. A tua mãe já sabia que estavas a chegar a casa quando percebia o reflexo da tua dentição desde a janela, ainda vinhas tu a chegar ao Poço do Bispo pelo mesmo trajecto do 28. A tua mãe sempre te esperava à janela, sempre de bibe florido, sempre com o desalento enterrado nos sulcos da sua cara desgastada, sempre suspirando a sua esperança com a cabeça apoiada nas mãos, sempre com o vetusto estendal com as mesmas camisas negras e toalhas de renda branca a balouçarem sob o parapeito, sempre com o cabelo grisalho apanhado num totó e um bigode cada vez mais indisfarçável. A velha nunca teve outra cara, outra postura. A velha nasceu velha. “Ai Cristina, olha para esse estado…”, queixava-se ela, com os olhos muito engelhados a humedecerem-se, mal mexendo as suas pernas pejadas de monstruosas varizes e com meias de descanso, em velhos chinelos oferecidos pelo Júlio Isidro no seu programa do Natal de 1987; depois, sentava-se num banquinho mocho muito tosco e amargurava-se sozinha, muito dobrada sobre a mesa, enquanto tu ias fumar a ganza que o Leandro te enrolara para o teu quarto. Era uma divisão simples, estreita mas com um pé direito enorme, com o estuque praticamente todo destituído das paredes e uma janela de madeira de vidros meio baços que dava para a rua principal, para outro prédio semelhante, desbotado e sujo. Ficavas a ver o fumo a acumular-se junto ao tecto, por onde se escapava por uma fenda. E depois punhas a Rádio Cidade a tocar no velho rádio-despertador com um fio de plástico a servir de antena, que atavas na bolinha da cabeceira da tua guinchante cama de ferro. Metias a brasileirada no volume máximo só para não teres de aturar o pranto da velha.

Se calhar as coisas poderiam ter sido diferentes se o teu pai tivesse sido uma figura presente. Nem sabes ao certo o nome dele. Começava por “A”. Tanto podia ser Abel como Abrenúncio. A tua mãe nunca falou muito dele. Dele conservaste uma velha boneca que ele supostamente te ofereceu e que jazia numa velha cadeira lá no canto dum quarto abandonado, subjugada ao pó e ao mofo. Nunca gostaste muito de bonecas mas também nunca quiseste livrar-te definitivamente dela. Talvez por ser o único brinquedo que resistiu à tua infância, mesmo que tal só tenha sucedido porque não gostavas de brincar com ela. Estranha nostalgia. Havia uma velha foto dele de cores muito fugidias em cima do aparador, por cima dum naperon muito rendilhado, dum branco muito fosco, quase amarelo. Dava-lhe um aspecto tétrico, mesmo considerando o sorriso pacato dele e o comb-over na cabeça típico dum homem não muito dotado pela Natureza e em clara negação de meia-idade. Parecia respeitável, embora sinistro, como um fantasma anónimo em forma de bibelot. Um dia, por desleixo, tirou-se o naperon e a moldura veio atrás, estilhaçando-se no chão. O sorriso dele ficou cheio de pequenos vidros em cima e a tua mãe decidiu nesse momento retirar aquela fotografia de circulação. Nunca mais o viste nem sabes onde a tua mãe guardou a foto. Se é que a guardou. Ela disse-te que ele já morreu há tempos. Já to dizia há anos. Quase que parece que ele faleceu imediatamente a seguir a fecundar a tua mãe. Imaginas ele a acabar de se vir e a tombar morto sobre ela, que a custo o mandou junto com os restos de comida para os gatos pela porta fora. Não há nada de muito relevante a contar dele. Não sabes o que fazia. Não sabes o que não fazia. Somente que ele bebia muito. O teu irmão herdou esses hábitos. Esses e outros. Quando te vi pela primeira vez, estavas a chorar quando a polícia foi à tua casa levar o teu irmão algemado. A tua mãe reagiu com a corriqueira tristeza de quem já vira a mesma situação várias vezes. E foi aqui que me prendeste a atenção. Tinhas um choro muito bonito. Eras muito bonita quando sofrias. Quando as lágrimas desciam as maçãs salientes do teu rosto como um glaciar salgado de melancolia e ficavas ali, indefesa, impotente, frágil como os teus próprios braços.

Não foi propriamente difícil convencer-te. Diria até que os putos de hoje em dia estão bem avisados e que já não entrariam no meu carro com tanta facilidade. Mas o meu carro era um BM. Logo vi que não irias resistir. Levei-te pelo IC19 fora, ficaste encantada com uma via rápida de 3 faixas, as placas reflectoras para Massamá e Rio de Mouro, esses nomes tão exóticos que desconhecias, a quantidade de prédios a fazerem cócegas uns aos outros, maravilha, pensaste tu, que paredes tão direitinhas, que urbanismo tão fervoroso, tanto betão robusto que contrastava com a fraca alvenaria da tua casa, admirável mundo novo aqui tão perto. Via-se a tua felicidade a léguas e não era só pelo reflexo das tuas enormes favolas saídas, era mesmo algo genuíno que exalava de ti. Mas tu nunca foste muito boa a lidar com a felicidade. Tens de recebê-la em doses moderadas. Doutra forma ficas parva, deslumbrada, com uma expressão imbecil, tornas-te francamente exasperante. Até confrangedora. O teu gargalhar parece o barulho de gralhas roucas. Quando esticas os cantos da tua enorme boca, crias uma vaga de rugas na tua tromba que te torna dez anos mais velha. Pareces patética quando os teus ossos se abanam durante os teus espasmos de alegria. Cadavérica e torpe. Percebi logo isso e como tal fiquei com o resto do pacote das queijadas compradas em Sintra, só para que não atingisses uma espécie de onanismo gustativo e me fizesses passar vergonhas. Só me apetecia que chafurdasses no saco da merda dos cavalos estacionados junto ao palácio para ver se perdias aquele ar de gente feliz. Gente declaradamente feliz é deveras irritante e tu ainda mais que os outros.

Agora pareces alguém. O teu ar de freak até é uma vantagem nos dias que correm. Dantes serias uma esquisitóide, uma pseudo-agarrada marginal, uma Maria-rapaz destinada a servir-nos refeições de fast-food para a posteridade, com o óleo a escorrer das pontas dos cabelos e das pontas das unhas postiças para cima dos tabuleiros encardidos e o olhar perdido na mecânica da rotina, contando os tostões todos os meses para comprar um tablet novo lá para a Black Friday, nem que para isso começasses a fumar tabaco de enrolar como forma de travar custos. Mas agora estás bonita, aprumada, uma mulher moderna, elegante, levemente andrógina, quase que pensam que és do mundo das passerelles quando desfilas pela rua com a tua roupa que tresanda a sofisticação. Pudera, com todas as horas passadas em salões de estética, com todos os catálogos que folheias freneticamente e com todos os cremes milionários que esfregas nessas fuças é bem bom que os resultados se notem. Até tens um creme que parece sémen e que espalhas avidamente pela cara. Não pode ser sémen, julgo que a L’Oréal prima pelos seus padrões de qualidade e aquilo até cheira a aloe vera, ou a stevia, ou a qualquer planta da moda. Mas raios me partam se aquilo não parece mesmo esporra. E ainda por cima contigo tão compenetrada, de olhos cerrados, com uma expressão de gosto, a barrares aquela meita na tua tromba. Quase que me lembra quando to espeto nessa bocarra, te puxo os cabelos e te faço sentir a nulidade que sempre foste, ali mesmo no chão frio do WC e com o cão a assistir. Detesto que me arranhes com esses dentes salientes. Mas mesmo após tanta chapada ainda não conseguiste apanhar o jeito. Essas dentolas dão-me mesmo vontade de tas meter para dentro com um soco certeiro, especialmente quando chego chateado do trabalho e tu nem a porcaria duma pizza foste capaz de pensar para o jantar. Mereces todos os correctivos que te aplico. Porque lá no fundo até acho que não passas sem eles, sem a mão pesada da disciplina a controlar os teus devaneios, e definitivamente que as nódoas, arranhões e essa cara triste te atribuem o ar nobre que nunca possuíste por ti mesma. Servem para te fazer lembrar de quem és e da tua inexpressão, das tuas medonhas limitações e do teu papel de servir bem quem te tirou da rua, sua rafeira. És uma cadela e é bom que sejas uma cadela agradecida. Que isto de passar o dia a pensar no spa em que se vai no fim-de-semana é bonito, mas a tua mãe ainda está à tua espera na velha janela de sempre e está mais perto do que a ilusão do conforto te sugere. Pensa bem nisto, pensa pelo menos desta vez. Ou ainda acabas com um braço ligado num destes dias.