21 dezembro 2016

Os Elders

Dizem que um mal nunca vem só. Que quando ainda estamos a tentar perceber a dimensão da adversidade, logo surge a cabecinha do demónio por detrás da ponta do iceberg, pronto a infernizar-nos mais a vida. “Infernizar” é coisa que os demónios fazem reconhecidamente bem. E, acreditem, o iceberg é bem maior do que aquilo que conseguimos depreender à primeira vista. Perguntem ao Di Caprio e aos outros desgraçados do Titanic. Ao contrário das coisas boas, cuja utilidade percebida parece decrescer com a repetição, as coisas más tendem a aumentar o seu nível de desconforto à medida que se sucedem. O mal tem destas coisas maléficas. E a cabecinha do demónio demonstra uma capacidade indiscutível para engendrar maldades. Algum sentido empreendedor, também: reconhecendo o potencial sinergético, estabeleceu um protocolo com o Murphy da Lei de Murphy; esta parceria tem produzido sumptuosos frutos de pessimismo, traduzidos em sabores tão diversificados como o azar, a desilusão, a dor e a tristeza, que só valorizam ambos. Senão, atente-se: quantas vezes receámos que as coisas corressem mal e elas correram mesmo? E quantas vezes, depois de comprovarmos o mal que se nos abateu, tememos que pudesse ser pior… e acaba mesmo por ser?

Estás indignado porque os impostos voltaram a subir? Então prepara-te porque vão criar uma sobretaxa adicional qualquer, precisamente a pensar em ti. Estás chateado porque o carro não pega e vais chegar atrasado? Então ainda hás-de ficar pior quando vires que a conta do mecânico inclui outras coisas que nem suspeitavas que o carro tinha. Estás piurso porque o chefe agendou uma reunião para o final da tarde, quando tinhas previsto sair mais cedo? Então ficarás de rastos quando souberes que ele está a prever deportar-te para Angola. Estás inconsolável porque a tua equipa perdeu injustamente contra o rival, depois de uma arbitragem tendenciosa? Então fica a saber que o teu melhor jogador contraiu uma lesão que o vai arredar durante o resto da temporada. Estás deprimido porque a tua namorada te rejeita sexo e parece andar a ignorar-te? Então até vais ficar petrificado quando descobrires que ela anda a fornicar com o instrutor do ginásio na tua própria cama. Bolas, não podíamos ficar apenas com um simples mal, que já é mau que baste, porque é que as circunstâncias insistem em punir-nos com redobrada malvadez? O mal vem, no mínimo, aos pares; não é como as cerejas, luvas, sapatos, mamas ou colhões, que vêm aos pares e, salvo algum fenómeno, não se estendem para além da dupla; não é como o bem, que às vezes só vem parcelado em pequeninas coisas boas, meros fogachos de algo que se desejava inteiro e na sua plenitude; não, o mal entra de rompante e tem uma força própria que te ataca rapidamente em mais que um nervo.

Não sei se é por compreender esta facilidade de desdobramento do mal que esta religião dos Santos dos Últimos Dias (LDS, na sua sigla inglesa – e eu durante muito tempo julguei ler LSD e nem estranhei) emprega rapazinhos aos pares e manda-os missionar por aí. Eu até gosto mais do termo “missionalizar”, mas o corrector diz-me que essa palavra não existe. Estes rapazinhos são os Elders. Como o meu primo, mas o meu primo tem a sorte de ter um “H” adicional que o distingue. E nunca anda com uma plaquinha negra com o seu apelido visível no peito. Certamente que já todos viram Elders a deambular por aí. Aos pares, evidentemente. Creio que seja para combater melhor o mal multicéfalo que se lhes depara. Nunca se vê um Elder solitário. Nunca. Até ao WC os gajos devem ir juntos. E, verdade seja dita, nunca os vi a missionalizar (perdoem-me, mas gosto mais de escrever “missionalizar”). Sempre que os vi, estavam calados e algo circunspectos. O que é ser missionário para estes gajos, afinal? Basta andar por aí com a camisinha branca, a gravatinha e a placa explícita ao peito para fazerem o trabalho deles, que é basicamente passear, durante um exílio de um par de anos? É isso? Bem, é chato, mas exequível. Trabalhar num call center por um mês será bem pior. Ainda por cima, os Elders é que decidem quem abordar, se abordarem, enquanto os coitados dos call centers levam com toda a raiva acumulada dos outros, sem escolha. Lá está, o mal dos empregados dos call centers não se esgota numa só vertente.

Deve haver certamente mais qualquer coisa nos Elders do que andar a passear com o seu compadre durante meses e meses no estrangeiro. Até parece um enredo algo homoerótico, ter dois rapazinhos americanos, com tromba chapada de americano, com aquela pele fininha de quem vem do midwest das pickups e da posse de arma generalizada, o queixo quadrado e um sotaque presumivelmente gorduroso que nem um hambúrguer, ainda imberbes, numa espécie de uniforme, a partilharem todas as experiências do quotidiano num local remoto, envoltos numa mudez crónica e em jogos de troca de olhares, sem grande espaço para a privacidade. Uma espécie de Brokeback Mountain de cariz supostamente religioso. Para além dalguma missionamentalização (adoro este neologismo que acabei de inventar) invisível, suspeito que seja tudo uma preparação para poderem ser mórmons a sério. Ouvi dizer que os mórmons são polígamos e talvez tenham de passar este tempo de privação para poderem desfrutar a sua poligamia a valer. Eu de religião percebo muito pouco, nem quero saber que ideia é essa dos “Santos dos Últimos Dias” e acredito que não tenha a ver com os últimos dias dos saldos ou Black Fridays, mas simpatizo com a ideia da poligamia. Pelo menos, é teoricamente interessante; na prática, deve terminar com um grupo de gajas aos gritos a disputar a primazia sobre o cartão de crédito para irem ao cabeleireiro e às compras e isso não é assim tão divertido. Desconfio é que, para os Elders, a única posição que conhecem é a de missionário e por isso a poligamia não será devidamente apreciada. Eu sei, é uma piada fácil e que já estava prevista desde o início. Mesmo que eu considere que, efectivamente, a posição de missionário é a melhor de todas, pese o seu classicismo pouco kama-sutriano. É uma opinião legítima e discordo em termos genéricos da afirmação “face down, ass up, that’s the way we like to fuck”, da autoria d’ Os Lunáticos e constante do seu único hit “Estou Na Lua”, que recolheu grandes simpatias nos idos de 1995. A partir daqui, já não há mais nada de relevante para ler neste texto. Mas como já começaste a ler, agora vais até ao fim e ficas ainda mais desiludida. Vais perder o teu tempo e, pior, perdes o teu tempo com coisas desinteressantes. Eu bem que alertei no início, o povo bem que avisou através dos seus epigramas, os Elders bem que se defendem aos pares, que o mal nunca se fica pela unidade e aprecia a companhia doutros males. Os sacanas.


Se o facto de os Elders andarem aos pares os torna mais efectivos na luta contra o mal? Será que com eles o mal pelo menos só vem isolado de cada vez, tira a senha e fica à espera na fila que o seu numerozinho apareça a piscar no mostrador para então, ordeiramente, espetar-nos golpes avulsos de má sorte? Não creio. Senão, éramos todos simpatizantes da LDS, mas continuamos mais adeptos de LSD. Ou então tínhamos Elders a entrar no Dragonball para acabar logo com aquilo, porque era para cima de 10-0 sobre o Mal. O mundo está na mesma, com muita porcaria, eles não mudam nada, mas acham que sim com a sua abordagem diferenciada. É um erro natural das religiões. A porcaria já vem de longe, assim como a mistificação da religião. Já tem uns belos milhares de anos. Hoje apenas está mais exposta para todos e qualquer um pode acreditar em muitas outras coisas. Há até uma igreja do bacon na América e parece-me tão válida como qualquer outra, apenas não envia leitões aos pares para serem comidos ao domicílio. Qualquer idiota já pode ter uma voz mais ou menos pública e o que assistimos é à proliferação de idiotices pegadas. Sejam explicitamente religiosas ou não. Mas este nem é o mal pior. O pior é que somos nós mesmos que caucionamos as idiotices com “likes”, “shares” e “views”, que valorizam o mínimo denominador comum e guindam estes parvalhões a um patamar de poder e influência que dantes não passaria do perímetro dum quarto e que agora pode preencher toda uma nação, toda uma geração, quiçá o próprio planeta. Como se pudesse haver uma só maldade a atormentar-nos solitariamente neste mundo e as respostas fossem simples. Não são, nunca foram e nunca serão. Como os Elders nunca serão vistos a vaguear sozinhos na tua ou na minha terra.

15 novembro 2016

As Desmaiadas

Não sei como isto começou. Nunca me apercebera que despertava atenções subliminarmente poderosas no mulherio. Quero acreditar que foi tudo uma combinação de genes de qualidade superior e cuidado com a estética, que pressupõe manter uma pose e um discurso articulados e coerentes entre si. Mas a verdade é que não faço ideia e mil espelhos não me afinam a opinião. Nunca fui propenso a auto-avaliações razoáveis. Não sei se tenho aspecto de bad boy, nem de criancinha, nem de nerd, nem de maluco, nem de yuppie, nem de tipo do bairro, nem de gajo que não é baixo ou de gajo não é tão alto assim, se possuo uma elegância notável ou se revelo uma banhita simpática conquanto flácida, se me visto como a vanguarda ou se mantenho um estilo acidentalmente retro. O que interessa é que elas caem-me aos pés.

Para ser rigoroso, eu não sei como tudo começou, mas sei quando tudo começou. Foi ali, no autocarro, numa segunda-feira pela manhã. Estava empacotado, como é costume. Aos homens jovens quase que lhes são vedados os lugares sentados, porque a recriminação da senhora coxa, do homem com bengala, da mãe atarefada ou até de outros jovens com aparentes debilidades mentais é directa e muito reivindicativa. Sim, já vi atrasados mentais a terem ataques de pânico em plena hora de ponta e vai duma gritaria que se assemelha à matança do porco, o que atrapalha a audição da minha playlist, à contemplação aborrecida de aves canoras que se penduram nas paragens, o que talvez me permita continuar a ouvir o meu som, embora não deixe de ser irritante ter o atrasado a exortar-nos para “olhar para o passarinho” com aquela expressão, digamos, amalucada. É preferível agarrarmo-nos ao corrimão e esperar, com boa vontade, que as vizinhas sejam mulheres jeitosas e bem perfumadas, do que apanhar com os maus fígados dum desgraçado qualquer. Ela estava ali bem perto de mim, quase colados. E de repente, ao aproximar-se uma paragem, ela começa a descair. A pender. A cair para trás sobre os joelhos dobrados. E estava com um olhar petrificado, olhos bem abertos que supus que não estavam a ver nada. Seria maluca? Não parecia, mas os malucos enganam e alguns até chegam a presidente dos EUA. Conheceria a pessoa sobre quem estava a desfalecer? Provavelmente não e não seria essa a abordagem mais ortodoxa para cumprimentar um conhecido. Se calhar, ela estava mesmo com um problema qualquer. Ouvi um pouco desse espírito reivindicativo do pessoal não tão afortunado quanto eu, “ajudem a rapariga!”. Tive de fazer qualquer coisa. Parecia mal deixá-la ali moribunda à minha frente, prostrada num chão imundo e com a cabeça junto aos pés duma cabo-verdiana que misturava crioulo com pretoguês. Ela estava ali, tombada, perfeitamente vulnerável. O sonho de qualquer violador. Mas eu não sou assim: agarrei-lhe na parte de trás do pescoço e ergui-a ligeiramente. Foi um agarrar firme, mas ao mesmo tempo delicado. Senti o veludo dos cabelos alourados dela e olhei-lhe nos olhos, que continuavam escancarados mas sem grandes sinais de vitalidade. Ela estava especada. Parecia um príncipe pronto a beijar a Bela Adormecida. Que não era assim tão bela, nem estava bem adormecida, mas que valia a pena para o simples encontro sexual. Quem é que disse que em tempo de guerra todo o buraco é trincheira? Pois, alguém com algum nível de clarividência mesmo numa situação de desespero. Ela seria uma trincheira bem arranjadinha, decorada com pedaços de veludo como o seu cabelo. Pus-lhe a mão no pescoço, vi nos filmes que é possível sentir a pulsação da gente dessa forma, para saber se o coração dela ainda batia ou se ela tinha basicamente quinado à minha frente. Não dei com a pulsação, mas senti que a pele dela era suave e lavadinha e que ela, embora não se manifestasse, pelo menos ainda ouvia. Foi um gesto muito carinhoso. Perguntei-lhe algumas coisas e ela lá reagiu com tímidos acenos com a cabeça, tentando mesmo pronunciar algumas palavras por entre uma ténue abertura dos seus lábios pintados de rosa – acho que foi uma má escolha, mas isso sou eu. Na minha cabeça, equacionava fazer-lhe uma respiração boca-a-boca, ou apalpá-la bem ou mesmo desabotoá-la. Isto tendo em mente um superior interesse pseudo-médico para o exterior e um latente desejo sexual interior. Como acontece nestas coisas, perdi a oportunidade de praticar qualquer uma destas acções ao pensar muito no que havia exactamente de fazer. Quando dei por mim, já a maioria dos utentes tinha saído apressada do autocarro e apenas uma outra mulher se disponibilizou para ajudar a gaja fenecida, emprestando-lhe uma toalhita com a qual limpou-lhe a fronte. E ambos ajudámo-la a sentar num lugar desocupado. Diagnóstico final dum leigo: uma súbita e breve quebra de tensão, que nem deu para empalidecer ou cobrir-se de suores.

Eu ficara com um certo bichinho a moer-me cá por dentro; caraças, atrasei-me e fui um primor de cavalheirismo para com esta gaja, iria regressar à minha vidinha com um mero “obrigado”? Está na hora de fazer o bem olhando a quem, que isto do altruísmo nunca satisfez totalmente as minhas aspirações. “Obrigada!..”, foi precisamente isso que ela me disse. Mas eu tive um momento de desassombro.

- Precisas de ser acompanhada… fiquei preocupado contigo, pensei que me ias morrer nos braços. Posso ficar com o teu contacto, só para ir sabendo como vais?

Ela ficou um pouco embasbacada, atarantada até – um semblante ainda assim suficientemente distinto da fraqueza que ela experimentara –, mas com algum nervosismo visível na forma como se ruborizou quase instantaneamente, o que não deixa de ser estranho para quem acabou de sair dum desmaio, lá mo deu. E a partir daí fez-se história. Começou tudo com uma mensagenzinha de texto muito educada, “Olá! Tudo bem? Como vais andando?”, que ela só respondeu passadas algumas horas com abreviaturas e “que”’s transformados em “k”, mas tudo bem, para uma foda e para se ser GNR não é preciso ter escolaridade superior. Depois da mensagem de texto ocasional, veio a mensagem de texto corriqueira, que ela já ia respondendo com mais e mais rapidez; depois passámos para o Whatsapp, acabámos a partilhar links do Facebook e amigámo-nos naturalmente, até estávamos quase a entrar no LinkedIn, se não se desse o caso de ela ainda estar a estudar uma inutilidade qualquer numa universidade manhosa e eu não querer estar associado a ela para efeitos de networking profissional; já estávamos a partilhar músicas, vídeos do YouTube muito engraçados, memes levados da breca com gatinhos e até já tínhamos um código emoji para descrever “lasanha de espinafres” – porquê isto, já não sei, mas as grandes ideias surgem do nada. Foi um namoro a sério e é muito engraçado olhar em retrospectiva e perceber a evolução ao longo dos tempos, como a linguagem e a proximidade foi crescendo entre nós com muita paciência e ponderação, tão características deste tempo: tinham passado 4 dias. No Sábado não podia falhar e sugeri um encontro. E ela, não contendo o seu entusiasmo, disse que sim com um polegar enorme em menos de 40 segundos. Pressenti que ia foder a utente que calhou ter uma síncope qualquer à minha frente e, sejamos claros, a perspectiva agradava-me bastante.

Combinámos um café na zona e ela lá veio toda lampeira, muito mais bem-disposta do que a imagem que conservara dela. Passados 20 minutos já estávamos em casa. Não havia intenção de prolongar a conversa de chacha durante muito mais tempo, ambos sabíamos disso. Eu nem sequer gosto de café. Quase que vislumbrei aqueles olhos estarrecidos quando a penetrei bem fundo. Tinha uma ratinha apertada, não fazia depilação total e tinha ali uma gordurinha gostosa e umas mamas leiteiras, sobre as quais ela possuía um inexplicável pudor. Eu fiz-lhe notar que não tinha nada ali para se envergonhar através de umas chupadelas bem dadas. Gemia bem e sei que se veio. Nem lhe perguntei, mas eu sei destas coisas, já percebo as contorções e os tremores e, muito importante, a reacção pós-orgásmica delas, que é como o algodão. Eu também me vim, claro, e acho que foi para aí após uns três minutos de fortes basculações na rata dela. Nem deu para experimentar outra coisa para além da clássica posição de missionário. Costuma dar sempre bom resultado. E ela, quando limpava o grelo no bidé, disse-me, entre um sorriso acanhado:

- Sabes? Acho que desmaiei no autocarro só para que me pudesses agarrar. Não estava a ver outra forma. E deu resultado.

- Deu, não deu?

E poderia dar com outras? Será que…

Sim, num ápice, estavam mulheres prontas a desmaiar por mim nos autocarros. Para mim. Para se excitarem com os meus cuidados – sim, porque as gajas têm destas coisas, o gostarem destes gestos, cheiros, contextos que lhes alagam as partes baixas, por muito imperceptíveis que sejam. Vá-se lá saber. Ao princípio eram mais estudantes; depois da desmaiada original, foram mais duas. E inventavam os mais variados mal-estares para terem um pretexto para receberem os meus cuidados, não eram só quebras de tensão. Só há uma coisa na qual conseguimos ser mais inventivos do que a fugir dos impostos: para foder com alguém que se quer muito foder e não se sabe como. Uma depois apareceu lá em casa com o dossier e tudo, que a desculpa dela era a de que ia fazer um trabalho de grupo. Tinha uns óculos de nerd e fodia com grande fulgor, nunca emitindo um som e passando a maior parte do tempo a balancear-se em cima de mim com grande empenho físico. Corpinho bem esgalhado, maminhas todas direitinhas e perfeitinhas, ela disse-me que tinha 19 anos mas até podia ter só 16. Que se lixe. Depois veio a primeira madura, uma gaja que eu já tinha debaixo de olho. Não me surpreendi quando fingiu estar com uma dor de barriga lancinante e me pediu a poia. Perdão, apoio. “O meu contacto é este, mas não me digas nada a partir das sete da tarde, que eu vou estar com o meu marido e os meus filhos”. Parece que o marido já não lhe dá atenção nenhuma e passa muito tempo ao computador. Há que suprir essas debilidades afectivas, não é, minha cara? A gaja até era mais mole, cheia de sinais na pele e carregava um cheiro não muito agradável face às minhas expectativas, era afinal apenas uma tipa que sabia vestir-se e arranjar-se muito bem, mas quando me pediu “dá-me no cu, dás-me?”, toda a sua imagem surgiu-me reabilitada; achei-a mesmo muito boa, até quando gritava “Adooooooooro! Adoooooooooro!” e eu lá bem nos confins do seu intestino – e ainda bem que uso preservativo, que a minha pila ficou toda acastanhada quando saiu, porque o marido, mesmo que não lhe desse muita bola, mantém-se um grande chefe de culinária e preparara-lhe uma soberba feijoada à transmontana com estes efeitos práticos. As ciganas nunca desmaiaram à minha frente. E ainda bem. Mas queria foder uma preta, uma preta de top e não uma senegalesa desnutrida, e ansiava que alguma ficasse mal no autocarro. Houve uma que vomitou mesmo em cima dum banco e empestou o autocarro com o seu fedor, mas essa estava mesmo mal. E pela amostra, dava muito na cachupa. Finalmente, houve uma que se queixava da perna e que solicitou o meu auxílio. Mas era tão gorda e com um espaço tão grande entre os dentes que fugi mal cumpri as minhas obrigações solidárias. Nem tudo corria como o esperado, normalmente rejeitava as velhas e tipas demasiado gordas. Houve uma gorda que disse que iria levar uma amiga para fodermos os três, e eu até iria apreciar o ménage, mas a amiga dela parecia uma loura agarrada ao cavalo do bairro social já com quatro filhos menores e com a cicatriz da cesariana meio visível por entre uma tatuagem em arabesco, por isso achei por bem não arriscar. Paneleiros obviamente que eram rejeitados; havia um tipo tão abichanado que costumava apanhar o transporte que parecia que ia sempre cair com o cu em cima de mim; uma vez, atirou-se para cima de mim numa curva e pediu-me umas desculpas tão apaneleiradas que até saí três paragens antes do destino. Também não fodia gajas com rastas. Cheiram mal, têm as unhas dos pés cheias de sarro e distribuem panfletos do Bloco de Esquerda, é uma nojice pegada. Depois havia as premium, as gajas que só iam de autocarro para me ver. Normalmente, essas nem fingiam nenhuma maleita; entravam no autocarro, perscrutavam o ambiente, detectavam-me e iam logo direitas a mim para me dar o contacto. A Marisa, aquela gaja cheia de silicone e com uma tatuagem aberrante nas costas, por exemplo, perguntou-me logo se “Sábado estás aí?” e eu respondi-lhe, “acho que não, tenho a Leonor, que ontem não podia com os joanetes”. A Leonor é um nome fictício, claro; ela chamava-se Maria João. E a Maria João era diferente das outras, vinha-se só com os preliminares e fazia uns broches fenomenais, foi a primeira gaja que me fez vir a sério só com um broche. Engolia-me todo, colhões e tudo, sem nunca de engasgar, toda ela era classe e estilo. Gostava de massagens nos pés e de cubos de gelo, que lhe chamassem de puta para cima e engolia todas as minhas secreções com um olhar de perfídia insidiosa muito concreto. Eu digo mesmo todas. Ela até lambia o meu pus, caso tivesse essa oportunidade. Ela queria meter-me o dedo no cu, mas eu acho que isso é mariquice a mais e por isso pus-lhe a lamber o meu preservativo usado. E ela gostava; ela até gostava mais de provar do que eu de a ver.

Lembro-me bem de como tudo acabou. Estava com a Ana, uma tipa que tinha começado a trabalhar numa seguradora e que tinha um aspecto muito nerd. A abordagem da Ana foi a de simular uma enxaqueca terrível, mas não fê-lo com grande atitude; basicamente, atirou-se para os meus braços e desabafou “ajuda-me, estou que nem posso”. E tinha gente mais perto para onde se deixar cair, mas acabou por atrapalhadamente tropeçar para cima de mim, perante a estranheza geral. Enfim, apesar do aspecto exterior, tinha um bronze espectacular e passava-se quando lhe davam palmadas no rabo e a rebentavam por trás. Porém, o traço mais característico dela é que gostava de role plays. Então, vesti uma bata e abri o meu consultório – porque ela tinha mesmo uma pancada por cuidados médicos e sabia o nome de demasiados medicamentos para quem trabalha com seguros. Uma hipocondríaca assumida e uma ninfomaníaca desajeitada. Estava eu a aprumar a bata, sem nada por baixo, preparando-me para a prescrição que iria salvar a Ana das suas crises interiores, quando a minha mulher apareceu em casa sem que nada o fizesse prever.

Pois é, tenho outra relação, não disse? Pois, tinha; agora já é tarde.

Depois da baba e do ranho e de tentar explicar-lhe que aquilo “não é o que estás a pensar”, concluímos que aquilo era mesmo “o que estás a pensar” e demos por finda a nossa parceria. A Ana ficou tão embaraçada que nunca mais a vi no autocarro. Nem na vida, só espero que ela se ande a dar bem na seguradora e a desempenhar bem os seus papéis sexuais - não duvido do seu talento. E, inexplicavelmente, tão rápido como principiara esta mania, deixaram de procurar os meus préstimos aparentemente desinteressados. Eu até já aprendera uns primeiros-socorros a sério, eu até já andava de olho em qualquer rapariga mais bamboleante e chegava-me perto delas para ver se se dava o clique, inscrevi-me num ginásio para ganhar arcaboiço físico que me permitisse despachar três ou quatro gajas num dia, mas debalde. O forte charme com o qual fora agraciado por obra do acaso desaparecera. Nem sequer foi um “fade-out”, não experimentei uma fase de declínio tampouco; foi um fim abrupto e sem retorno. Resignei-me perante a fatalidade: não poderia esperar facilidades daí em diante e deveria aproveitar ao máximo esses raios maravilhosos de sex-appeal, que por vezes emanam inexplicavelmente de nós e provocam efeitos inesperados nelas, nunca dantes provindos de mim. Isto é, parece que deslumbrei-me nesta espécie de Jogo da Glória, ia com tanto avanço e tão acelerado que agora caí no Purgatório e tenho de esperar que alguém me venha salvar. Uma lição para o futuro. Por outro lado, regressei à normalidade pacata dum mero utente absorvido em si mesmo a caminho dos seus destinos e reduzi drasticamente as hipóteses de contrair uma doença venérea. Estou mais tranquilo. Há quem diga que estou mais abúlico e inclusivamente taciturno, depende do ponto de vista. A verdade estará lá pelo meio.

Com isto tudo, o que sei é que ainda não fodi nenhuma preta.

22 junho 2016

Príncipe William

Esta é a minha coroa de glória no que à captação de semelhanças concerne, ou não fosse esta uma figura da realeza. E porquê, no meio de tantas geniais parecenças que costumo detectar? Porque, qual prospector de talentos que descobre um precoce Ronaldo a jogar no descampado da esquina, este foi oficialmente (note-se o sublinhado) reconhecido por uma esdrúxula sociedade de avaliação de sósias com ramificações obscuras em Portugal como “o sósia mais perfeito do Príncipe William”.

É óbvio, porém, que actualmente ninguém descobre Ronaldos no descampado da esquina. Para começar, já ninguém joga em descampados. Houve um tempo em que sim, jogava-se em descampados, baldios com belas poias animais salpicando o chão irregular, pedreiras, arrecadações, patamares, garagens e na própria estrada, nesses ilustres relvados de betuminoso áspero, com a roupa de sempre, utilizando pedras, árvores, mochilas ou outra merda qualquer a formar balizas, mas isso é tão século XX que até dói. Hoje, os putos que ainda vão jogando à bola querem primeiro as chuteiras coloridas, o equipamento de marca, um corte de cabelo o mais aparvalhado possível e uma tatuagem vistosa daquelas que saem com álcool e que dantes eram oferecidas no pacotes de batatas-fritas. O objectivo é tirarem selfies que colocam no Facebook ou Instagram, para com isso receberem comentários da Miga Tuxa cheios de coraçõezinhos, que não de Satã, e do Tigas K a dizer “boa mano ixo ta forte mm” e ainda muitos emojis avulsos e likes do ppl todo, tantos likes que até o Ronaldo original teria inveja. Isto é, o estilo é que é primordial, a bola é apenas um pretexto banal. Para além disso, os putos e os próprios paizinhos preferem a segurança modernaça dum belo jogo de consola e, a haver esforço físico, terá de ser desenvolvido numa dispendiosa, mas certificada, escola duma coisa qualquer com equipamento topo de gama, sem material tóxico ou abrasivo nem esquinas capazes de vazar as vistas dos frágeis meninos enquanto o Diabo esfrega o olho. Pois é, se jogar em descampados é “démodé”, então ainda mais inapropriado é que esse descampado esteja situado numa esquina. “Esquina” remete muito para o imaginário de actividades ilícitas. E nem as putas que se querem putas a sério se encontram agora nas esquinas – a não ser nas esquinas das vielas mais recônditas dum Badoo qualquer desta Internet maravilhosa.

Este sósia não fez luz à minha frente num descampado, surgiu-me num transporte público, que costuma ser um local bem mais apinhado que um descampado e que, portanto, prestigia o meu poder de análise. E sempre é uma ocorrência mais plausível do que aparecer em cima duma azinheira, se bem que isso só está reservado às divindades. A semelhança era tão óbvia que ninguém sabe ao certo se a foto que coloquei ali acima é dele ou do William himself. Em abono da verdade, desconfio que o William não ande pelos nossos transportes públicos, mesmo que haja por aí algumas acções de marketing onde os VIPs se mascaram e se misturam na multidão, para estupefacção geral. Numa de brincar aos pobrezinhos e para desentorpecer as pernas, combatendo assim o enorme tédio do seu fausto. Convém é depois tomar banho com aquelas soluções antissépticas e pedir à massagista ucraniana para esfregar bem esfregado. O próprio Ronaldo já andou a dar toques na bola, disfarçado numa praça em Madrid. O Jorge Palma também andava por aí aos caídos no metro das grandes cidades, sem disfarce algum, parecia um bêbado como os outros e ninguém lhe ligava. Hoje o pessoal já lhe liga mais, seja pela resistência que demonstra ou por mera pena. Mas já não anda de metro. Diz que faz mal à saúde, aquele ar dos túneis carregadinho de mofo e de bactérias que só se encontram na escuridão, um horror, faz um mal danado às vias respiratórias. O William, por seu turno, nem na terra dele anda de metro. Isso é demasiado working class e eles lá no país deles sabem bem delimitar as classes e qual o espaço destinado a cada um, apenas pelo sotaque e a pose. Também há por aqui uns tipos muito práfrentex que jamais ousariam entrar numa carruagem do nosso metro e chocar de frente com gente vinda da Reboleira, Chelas ou Ameixoeira, livrai-lhes Senhor dessa aflição sociológica, mas que em Londres são capazes de andar em loop na Circle Line e dizer que é uma experiência inebriante, um símbolo de urbanidade. São geralmente gente demasiado bronzeada, que estaciona em 2ª fila e que come atum em lata durante semanas a fio para compensar a vez que foram jantar ao Gambrinus. E depois metem no perfil do LinkedIn que são “General Managers” com uma Pós-Graduação em Leadership and Interpersonal Skills, partilham posts com mensagens redondinhas e extremamente irritantes retiradas de tipos supostamente CEOs de grandes empresas que dão cursos de “como ser melhor?”, “como ser mais eficiente?” e outras merdas próprias de quem gosta de se sentir importante debitando frivolidades, frequentam vários workshops e palestras onde há sempre espaço para uma conversa animada junto ao croquete e ao sumo de laranja natural, mas que nem um vlookup conseguem fazer no Excel sem a ajuda da estagiária com ar colegial que anda sempre de saias de Março a Outubro. A estagiária pensa que está a ganhar confiança dele, sem suspeitar que ele não manda nada naquela bosta de empresa e que, de qualquer forma, jamais irá mexer um dedo por alguma coisa que não seja o seu bem particular, sendo o seu intento embebedá-la numa 6ªfeira à tarde após o trabalho para comê-la no aperto do seu Porsche que o pai lhe deu, a ela e às amigas todas boas que ela tem, se possível em simultâneo, e que ela vai para a rua mal acabe o estágio. Mas deixá-los acreditar na beleza desta vida.

Para mim, foi sempre claro que ele era o Príncipe William chapado e até me pareceu irónico tê-lo encontrado no metro, que é um túnel subterrâneo, uma espécie de “reenactment” do local onde a sua mãe fenecera. “Sua”, do William verdadeiro, claro. Guardei esta evidência comigo até ao dia em que vejo na TV, com incontida perplexidade, que tinha sido aquele o tipo escolhido como o representante português num concurso internacional de sósias. Por muito absurdo que possa parecer, é mesmo verdade, o que me levou a concluir que a realidade supera muitas vezes a ficção. Não me recordo se era um concurso apenas aberto aos sósias reais ou aos sósias em geral, mas isso não interessa muito. Sem margem para dúvidas: era ele. Um português very middle-class, cópia da soon-to-be majesty. Convenhamos que não será assim tão fantástico: o William podia muito bem passar por um daqueles bifes que fritam sob o sol de Albufeira até se parecerem com um camarão embriagado. Não há nele nenhum indício físico que o distinga dum hooligan qualquer a cantar de braços esticados em frente a um pub. Nem nenhuma realeza se distingue fisicamente dum comum mortal, para sermos justos. A Branca de Neve, que era muito mais bonita que tudo ao seu redor, não conta. Apesar de tudo, senti-me bastante validado na minha perspicácia e pensei “que raio de sociedade é esta que avalia sósias?”, e não me refiro à “sociedade” no geral nem a nenhuma conspiração cósmica, mas àquela misteriosa organização que o indicou como representante português. Eu gostava de pertencer a tão nobre instituição. Julgo que poderia ser uma mais-valia. E que poderia receber algum respeito dos meus pares, o que é óptimo para o ego. Porém, como encontrá-la? Quem é esta gente? E se forem uma derivação da maçonaria? Maçonaria: gente de gabarito social incontestável, muito ensimesmada e com grandes planos no papel para mudar a sociedade, a sociedade em geral e não esta organização em particular. Tenho asco para com esses tipos. Os pedreiros são credores do meu respeito profissional, agora quando se arrogam em pedreiros-livres, vestem aventais, reúnem-se em lojas e andam lá com compassos e rituais de iniciação e nunca saem do armário onde gostam de se confinar, então já os reprovo. Repudio seitas de toda a espécie e quanto mais arrogantes, maior o meu desdém. Que se fodam os maçons. Andam a foder isto tudo há anos e anos só para manterem intocável o seu estatuto e o dos amigos, mas há-de chegar a vez deles serem encavados sem misericórdia, espero que com um massivo lastro de consanguinidade ou qualquer outra coisa que os faça parecer super-mongolóides. Perpetuam o amiguismo aparentemente secreto, o compadrio de grandes proporções e definem-se a si mesmos como seres superiores aos demais, reservando o direito de admissão. São perigosos e influentes, uma espécie de lobby gay mais antigo e ainda mais apaneleirado nos seus tiques. Por isso não, se esta organização for assim, dispenso e prefiro ficar aqui com um bloguezito que ninguém lê.

Não deu para perceber muito sobre o sósia do Príncipe William. Parecia gente “normal”. Não se esqueçam das aspas ali atrás. Não tem uma mulher de apelido Middleton, ela nem sequer é tão bonita quanto imaginamos que uma princesa seja, mas pelo menos ela não deve ser feita de porcelana nem tem paparazzi a devassar-lhe a vida. E se calhar passa muito a ferro, o que é um factor muito positivo numa mulher. Presumo que preserve o seu filho das más influências, inscrevendo-o numa escola de desporto para aproveitar os seus tempos cada vez menos livres, que ande de metro como afirmação dum paradigma de sustentabilidade ambiental, mas também porque é mais barato, dado que não tem estacionamento livre ao lado da empresa; que seja um quadro médio ou superior duma empresa de média ou grande dimensão, onde é tipo que fica lá pelo meio dos organigramas e sabe dalgumas coisitas giras, nada de especial, e actualiza o seu perfil nas redes sociais. Até no LinkedIn, onde escolheu para ilustrar o seu perfil uma foto sorridente, de fato de gravata, mas não num plano muito aproximado para não dar uma impressão muito imediata do seu rosto, que isto de ser sósia duma majestade também chateia e pode levar a que quem procura por um determinado perfil seja iludido pela sua aparência inacessível, com isso diminuindo a possibilidade de, quem sabe?, ser convidado para ser o responsável máximo pelo desenho duma app para Apple (ou Eipple, como dizem os plebeus) e Android de couratos e bifanas gourmet duma cadeia familiar em ascensão, onde se acumulam pontos e há espaço para deixar comentários e sugestões de melhoria e vêem-se porquinhos a dançar todos contentes, entre outras porcarias que ninguém liga e que acabam por drenar a memória do smartphone. Seria uma oportunidade única, mas nunca ninguém iria convidar um Príncipe que só a custo aprendeu a estrelar um ovo para esta fabulosa função. A sua opção faz sentido. Os sósias também têm direito à sua vida própria e a seguir os seus sonhos.

09 junho 2016

Actriz Francesa

Tenho de reparar em quem está a bafejar atrás de mim. Estou preso num transporte lotado e há alguém que me exala um bafo aquecido pela retaguarda. Até me levanta os cabelos da nuca. Faz-me impressão. Os calores não requisitados dos outros acicatam os meus próprios calores. Costuma ser gente suja e de entranhas apodrecidas, com doenças respiratórias contraídas através de vidas miseráveis e com o auxílio de genes de qualidade inferior. É sempre assim. A gente gira não resfolega, é subtil na filtragem do ar. E, ainda por cima, toca-me várias vezes, meio de raspão, à laia de quem está no Jamaica só a curtir o som. Nesse contexto ainda passa, mas desta vez, como estou sóbrio, é simplesmente repugnante. Os outros utentes estão sempre imundos, sei lá por onde andaram. Pessimista como sempre, imagino um ogre repulsivo a roçar-se em mim, com ares de estuprador. Os velhos? Do mais nojento que há. As gajas? As novas e bonitas? As únicas que se escapam. A minha única esperança. Tenho de confirmar quem é esse ser arfante. Mas a lotaria nunca sai e não se confirmou esse caso, como suspeitava. Não era nenhuma gaja nova e bonita, era um ser masculino e feio, como os outros todos. Um ogrezito anónimo, vá lá. Tal como eu, porém numa versão ainda mais decadente. Contive o meu asco até o espaço finalmente clarear. Não era ela, numa rara oportunidade de estar perto dela e poder culpar as circunstâncias desse acaso. Uma lástima.

Acho que ela nunca recuperou dum grande desgosto. Calculo que amoroso. Tudo nela transpira dolência. Desde os cabelos que pendem melancólicos pelos ombros, passando pelo olhar misterioso que tanto explode radiante duma euforia momentânea como se distancia num silêncio inquebrantável, passando pelos movimentos delicados que quase pedem licença ao cérebro. Umas unhas de manicura, uma pele lisa com um aroma limpo que lhe perpassa os poros, sugando as atenções para ela à sua passagem. E depois toda aquela aura de tragédia consumada suspensa sobre ela, como um halo invisível de decepção a brilhar por sobre aquele corpo bonito, maneirinho, torneado apenas o quanto baste. Possui um charme natural que julgo que não desconfia possuir. Das poucas vezes que a vi sorrir, gostei. Era um sorriso lavado, sincero, com os dentes alinhados e cuidados. Fazia todo o rosto sorrir ao mesmo tempo. Dava gosto. É pena ela não sorrir mais. Talvez não dê para mais, talvez ninguém perceba o seu sentido de humor. Não sei de nada. Apenas suponho. Não me chego muito perto. Penso que poderia perturbar o seu sossego maldito. Não tenho tanto despudor. Problema meu.

Ela faz-me lembrar uma actriz francesa. Não a Amèlie Poulain, nem aquelas frou-frous com franjas irritantes que incandescem o feminismo. Isso é tudo treta. Só mesmo as gajas para lhes acharem modelos de virtude, naquele cinismo tão feminino: eu gosto dela apenas por ela ser mais frustrada que eu ou por me ser absolutamente distante. É assim que elas funcionam, não passam sem elogios desmedidos que fedem a falsidade e são genericamente motivadas por intenções mais ou menos subliminares. As gajas até podem admitir que admiram uma modelo invejada pelo mundo, mas lá no fundo invejam-nas ainda mais que o mundo. Ela faz-me lembrar é aquelas tipas que entram em filmes obscuros e que têm uma grande propensão para se despir e fazer sexo, mesmo, e especialmente, nas situações mais inesperadas. Como se a presumida dor que lhes consome a alma apenas pudesse ser combatida sem roupa. Como se a roupa, mesmo a mais larga, funcionasse como um colete-de-forças do espírito. Despem-se porque se querem libertar, porque querem provocar, porque sim, porque lhes sabe bem. A nudez é uma arte, uma casualidade trivial, nunca uma obscenidade para esta gente. Está-lhes no sangue. E se ela me parece francesa é porque associo as francesas a esse comportamento tão desprendido e simultaneamente impregnado de libido, sem nunca descurar a classe que separa o bom gosto da rameirice. As nórdicas também parecem ser muito lestas a despir-se, são louras e muito abertas em vários sentidos, mas há um “je ne sais quoi” nas francesas que se auto-explica, porque “je ne sais quoi” é uma expressão francesa. É certamente preconceito, mas ela parece que ouve “Je t’aime… Moi Non Plus” em loop e, claro, nua, na sua ampla cadeira de verga e com os cortinados alvos a esvoaçar na brisa estival que entra pelas suas largas janelas num quarto desarrumado, polvilhado por livros de alfarrabista e fotografias artísticas a preto-e-branco espalhadas no soalho poeirento, enquanto perscruta o ambiente onde circula um ténue fumo de cigarrilha carregando uma tristeza indecifrável. Um misto de Emmanuelle, Eva Green naquele filme em que vão para o ménage numa banheira e Jane Birkin, que não era francesa mas encaixava que nem uma luva nesse imaginário tão Maio de ’68. Sim, ela devia entrar numa dessas séries de época. E sim, só os franceses descreveriam uma orgia com a subtileza fonética de “ménage”.

Ninguém sabe ao certo quando foi o primeiro dia do resto da sua vida. O momento da viragem. Especulamos que dantes ela seria uma fonte de alegria, por causa das feições jovens e da força do seu raro sorriso, que hoje foi transformada num poço de angústia. Deve ter sido forte, muito forte. É o que nos diz o mutismo arrastado do seu olhar. E as pessoas à volta, que tanto se confundem com amigos, gracejam, brincam, actuam com a normalidade possível para lhe arrancar das trevas onde se afundou. E ela esforça-se um pouco, sorri com uma notável condescendência, mas é temporário. A amargura não tarda em reclamá-la de volta e ela, prestimosa, entrega-se com uma beleza cruel aos seus braços. A tristeza é muito bonita para quem está sentado numa poltrona a contemplá-la. A dor dos outros, quando bem esgalhada, pode ser das melhores coisas a que temos o prazer sórdido de assistir. Quase que queremos ser assim, tão estilisticamente abatidos. No caso dela, é mesmo um espectáculo digno de ovação prolongada. E ela sempre a olhar para um ponto não identificado no horizonte, suspirando resignação, olhos como os daqueles cãezinhos fofos que parecem ter nascido tristes, chega a ser comovente. Ela nunca mais se refez. Hoje ela apenas tolera. Nunca demonstra um entusiasmo sustentado, todos sabemos que ela apenas vem à tona por breves instantes antes da maré da taciturnidade a levar de volta. Hoje ela já não acredita nem se apaixona; já não derrama lágrimas nem sente raiva. Ela talvez já não sinta de todo. Apagaram-lhe a chama do coração com um feroz extintor de desilusão. Onde dantes poderiam brotar pujantes emoções, hoje é um baldio corrido a herbicida. Alguém lhe matou o calor e a ilusão. Hoje ela é praticamente um autómato. Um lindo robot de pele e osso, tendões e sangue, mas um ser que já não irá sentir uma emoção maior do que a frustração que um dia lhe vassourou de cima a baixo.

Talvez ela nem se dê ao trabalho de perceber que, apesar de tudo, ela move gente à sua volta. Gente incauta que, na sua flagrante ingenuidade, convence-se que será a gente certa para lhe retornar o viço que lhe deixaram roubar prematuramente. Eles bem tentam, os tolos, com os seus truques, prendas, piadas, partilhas nas redes sociais e selfies patetas, mas está tudo plasmado naqueles olhos ausentes e na sua expressão moribunda, por muito belo que seja o cenário: quem lhe destruiu deixou cicatrizes tão profundas que existem poucas hipóteses de restituição. Não há volta a dar nas fatalidades. É mesmo como aquelas francesas dos filmes que fazem as maravilhas dos críticos que estão num estado de permanente inquietação e desespero. “Femmes fatales” que vêm em pacotes giríssimos que ninguém sabe ao certo como abrir. Gajas impenetráveis na sua essência, autênticas felinas nas suas oscilações humorísticas, por muito que se dêem ao sexo. O sexo é apenas um exercício automático. Um orgasmo é sempre um orgasmo, mas isso não quer dizer nada para além do momento do clímax. Ela até pode gemer, mas será apenas uma reacção física, sem correspondência espiritual. Porque até no mais firme acto sexual ela terá a cabeça nas nuvens, naquela cadeira de verga soprada pelo vento na sala vazia, talvez suspirando por aquele velho livro de folhas amareladas que acumula poeira na penumbra do soalho, revisitando mentalmente um passado que jamais regressará e coleccionando presentes insossos, esquecíveis, para consumo imediato. O futuro nem se pensa. Nunca está com quem quer, como quer e, se algum dia estiver, estará tão vacinada pela tristeza que não irá perceber essa fortuna. Ela tornou-se triste, distante, por querer ter paz. Foi a sua defesa. Percorre um longo caminho com sonhos idílicos tornados pesadelos, que lhe formam um corredor estreito donde não consegue escapar e que lhe tentam pregar rasteiras e dar-lhe com as trombas na dura realidade. Agora só quer mesmo paz, fugir sem saber como da viela por onde a sua vida se enfiou. Isso já não é coisa pouca.


Não era ela no transporte, mas havia lá uma mulher que é a versão envelhecida da Karen Lancaume (existem outras versões do seu nome). Isto é, significativamente mais preenchida a nível corporal, com uns lábios notoriamente mais finos, olhares perceptivelmente menos lascivos e defendidos por uns óculos de hastes coloridas, no global bem menos sensual, mas há lá uns traços evidentes de semelhança e, quem sabe?, com menos uns 20 anos até seria “bem boa” – há sempre este “wishful thinking” para com as mulheres mais velhas. A Karen Lancaume é a tipa da foto e é uma ex-actriz pornográfica. Francesa, obviamente, e com uma existência trágica. Google it. O certo é que ela também é uma actriz francesa, embora menos dada a crónicas majestosas dos críticos de cinema nas publicações sofisticadas, que não costumam poupar encómios à cinematografia francesa mas não a esta indústria em particular… pelo menos em público. Porém, Karen não deixou de ser uma actriz com muitos méritos. Vi algumas cenas e ela ajeitava-se bem dentro do género. Dos movimentos mais emblemáticos, registe-se a forma como dava o cu, como as francesas costumam dar, em cavalgadas multipessoais que deram boas cenas à história do cinema pornográfico, com lingerie cuidada, cenários luxuosos e os característicos “nham-nham-nhams” balbuciados em gaulês, que soam bem mais provocantes que o rude “fuck me in the ass, baby” proferido em tom de ameaça redneck americana numa roulotte. A Karen possuía, lá está, um “je-ne-sais-quoi” que as outras não tinham. Não sei se pela tez da pele, pelos olhares insidiosos, pelo nariz afiado ou pelos lábios polposos, o certo é que a Karen costumava roubar as cenas de sexo onde participava. Não tinha implantes ou tatuagens, o que era comum nos anos 90, e transparecia uma naturalidade excitante que não abundava. Parecia mesmo que gostava do que fazia; chama-se a isto profissionalismo, que é tanto melhor quanto menos dermos por ele. Tinha o seu exotismo, sim, e a sua elegância, também, o que não era fácil de conseguir, mesmo para uma francesa. Os franceses estão convencidos que são mais sensuais que o resto do mundo, quase por decreto histórico. Recordemo-nos que os franceses, até quando fazem revoluções, escolhem a imagem duma mulher de mamas ao léu para liderar a turba. E a Karen deu o seu contributo como pôde. Eu estou-lhe reconhecido. Já esta sua sósia madura é apenas mais uma utente que faz o que pode para passar o seu tempo durante a viagem e uma pessoa que não fará a mínima ideia de quem me faz lembrar. Melhor assim, suponho, que também deveria ser embaraçoso explicar-lhe. Mesmo naqueles minutos que se assemelham a horas de tédio enlatado e em que qualquer distracção, até a mais absurda, é bem-vinda.

18 março 2016

Crazy Cat Lady

Sebastiões são como os chapéus, há muitos. E houve mesmo um gajo chamado Sebastião, um bêbado, falhado na vida, reles e desprezível, mas que destilava um adorável estilo de rebelde sem causa e fornicava à bruta com primor. Detinha uns ares de Cristo e até lhe cravou umas chagas de paixão intensa no corpo. Ele picava sem necessitar da coroa de espinhos, que fantástica era a sua habilidade em magoar. Contudo, esse não lhe salvou. Pior, deixou-lhe um lastro de desilusão, ressentimento e falsa esperança que ainda hoje persiste no convés da sua perturbada existência. O seu navio de emoções encalhou-se em águas baixas, estagnadas, nos sedimentos arenosos de uma vida de decepções, perto da margem da indigência sentimental onde este Sebastião a fundeara. Agora, esse navio é fustigado por vagas e tempestades que se originam em terramotos distantes e é corroído por motins internos duma ansiosa tripulação em permanente desacordo, encontrando-se desamparado pela ausência duma bússola que lhe indique o norte com rigor. Estas tempestuosidades moem-no até ser impossível sair do prolongado definhar com rumo a destinos mais prestigiantes sem auxílio; quando experimenta içar as velas, ventos desconhecidos lançam-no numa agoniante deriva que o faz sentir saudades dos bancos de areia que o prendem. Nestas indecisões, ele fica ali meio entre o mar e a terra. O mais certo é quedar-se num pântano onde se afogará lentamente e sem dor, qual lagosta cozinhando ao lume.

Ela queria o Sebastião, o ser mitológico que lhe iria resgatar dos longos serões solitários, o único ente com quem poderia socializar sem constrangimentos, uma versão sensual e não-homossexual do Sebastião original. Esse Sebastião. O seu Sebastião. Talvez seja pedir muito, afinal Portugal espera há quatrocentos e picos anos por Sebastião, o original, e é um país perfeitamente formado há uns oitocentos e tal. Isto é, cerca de metade da sua existência. E está como está, ao fim deste tempo todo. Não é uma perspectiva reconfortante.

Ela acha que a sua prima Celeste, uma quarentona obesa da província que vive a cuidar dos pais inválidos e do irmão deficiente, uma matrona sem ambições que todos acreditam tender para santa, enfiada nas suas roupas cor-de-rosa compradas na feira e que talvez nunca tenha compreendido o que é a depilação ao certo, não é a referência que quer para a sua vida. Ninguém quer ser uma excelente pessoa, se isso implicar viver miseravelmente, sem nenhuma faísca de paixão, nenhum assomo libidinoso, isenta de qualquer visão dum futuro com um mínimo de glamour. Ela não foi feita para conventos, embora os conventos estejam cheios de gente como ela, apenas mais resignada. Aliás, está longe de se considerar a si mesma um modelo do que quer que seja, muito menos de santidade; pelo contrário, admite sem reservas que está longe de corresponder aos cânones cristãos ou de qualquer outra religião. Que tem pensamentos ousados, obscenos até, e voluntariedade para as coisas marotas. Mas isso também não lhe trouxe grandes proveitos. Já Celeste é excelente, à sua maneira: pela sua responsabilidade social e por estabelecer-se num nível moderno tão rasteiro que lhe permite sair a ganhar nas comparações. Vale o que vale e uma vitória de Pirro não deixa de ser uma vitória, nestes tempos de míngua. Que, afinal, foram todos.

A urbanidade desconsola-a. Mas, ao mesmo tempo, necessita dela. Pelo menos, dá-lhe muitas opções para matar o seu inútil tempo, algo que Celeste desconhece, porque prefere ficar a olhar para a formação das nuvens nos seus parcos tempos livres. Permanece o mistério de como Celeste mantém a sua boa disposição sem sequer estar inscrita numa única rede social. Ela precisa da civilização moderna para pesquisar por almas gémeas outrora inacessíveis, entrar em pequenas guerrinhas de egos e as suas costas largas servem na perfeição para expurgar as suas frustrações. Que são muitas. São tantas que ultrapassam as maratonas dos livros e de Star Wars, por larga margem, se explicitadas pormenorizadamente ao longo do tempo. O desencanto começa logo quando acorda, dorida por não conseguir conservar um aspecto de diva ao espelho, prolonga-se pela dieta que lhe priva dos prazeres do paladar e nem por isso lhe adelgaça a linha, estende-se pelas fracassadas tentativas em interagir com putativos Sebastiões e desagua numa noite de sonhos extraviados, em almofadas pejadas de migalhas dos aperitivos que consumiu desenfreadamente para colmatar o seu pesar crónico. O ciclo recomeça no novo dia, mais forte, mais impermeável, cada vez mais invicto.

Como seria ser bom ser lésbica. Uma fufona orgulhosa das suas cãs, dos seus jeans, camisas e after-shave. Andar por aí à nora de cabelo curto, mochila às costas e Birkenstocks, com a sua namorada-tipo-fotocópia mesmo ao lado, de mapa na mão, invariavelmente perdida nas suas férias. Uma fufona com dois ovos estrelados no lugar das mamas, um sex-appeal que rivaliza com o nadir da Dina. Elas não se importam, chegam ao fim do dia e dão umas tesouradas, arrebitam o berbigão e estão prontas para receber as próximas rugas de consciência tranquila. Mas, azar dos azares, ela gosta de pau e o pau não parece gostar muito dela ou então está simplesmente distante demais, incomunicável e ausente. Teve de gostar de pau; não é sequer aquela coisa de “ah, o sexo a mim não me diz nada”. Não; diz, e diz alto e em bom som, “menina, tens aqui um poço fecundo e húmido que deseja ser penetrado em oscilações vigorosas” e ela não tem como fugir destes desejos. É só mais um percalço iniludível da sua vida. Já teve inúmeras oportunidades para se enrolar com as amigas que se despiram à sua frente, mas não consegue simplesmente achar graça às banhas e curvas das outras; em todas elas falta a rudeza e brutalidade dum homem com um aroma corporal forte. Possui, obviamente, o seu dildo preferido sempre à mão, o seu pequeno/médio/grande tesourinho que lhe torna a vida menos deprimente. E, por vezes, sente que é tudo do que precisa, basta aquele pedaço hirto de látex, com veias pungentes a moldar-lhe a superfície, a intrometer-se nas suas partes pudibundas. Mas a mente feminina é assaz problemática e não se conforma com respostas simples. Tudo é complexo e o objecto que tanto prazer lhe dá num momento é desnecessário no momento seguinte. Por vezes chora. Por vezes zanga-se. Por vezes remete-se à catatonia.

Não ser caso único não lhe anima. A verdade é que há muita mulher como ela por aí. A começar pelas suas melhores amigas. Às vezes reúnem-se umas quantas no mesmo prédio. Todas sucumbindo a esse enervante desespero de nada ter para oferecer ou receber da vida. E todas elas exibindo o derradeiro sinal de agonia social: a imensa devoção aos felinos domésticos. Vulgo gato.

O gato adquiriu um estatuto de semi-divindade para as solteironas contemporâneas, algo que este quadrúpede talvez já não atingisse desde os tempos do Antigo Egipto. E para os solteirões também, embora estes tendam a ocultar mais esta devoção ao gato por receios de “manifestação de bichanice exagerada”. Ao longo do tempo, sempre se reconheceram aos bichanos qualidades muito próprias, como o facto de ajudar a conter pestes devido ao seu jeito para caçar ratos. Hoje em dia, porém, esses utilitarismos mais activos já não lhes são requisitados: ao gato basta-lhe estar e ser fofinho. A fofice do gatinho grassa por todo o lado, proliferando em todos os formatos. É comum haver programas do género do “Isto Só Vídeo” exclusivamente composto pelas tropelias dos gatinhos. E são muito giros, como certamente saberão.

O gato de hoje é preguiçoso, indolente, tem o tamanho certo para caber numa mala e não precisa de ser passeado. Dispensa atenção excessiva, não chora, não precisa que lhe mudem as fraldas, lava-se a si mesmo e mesmo assim preserva a sua fofice, o que é óptimo nestes tempos em que não queremos ter de nos preocupar muito por muito tempo nem dispensar grandes cuidados de manutenção. E, como espécie de bónus quando está para aí virado, ronrona de satisfação quando lhe mexem ou enrola-se dolente em torno das nossas pernas. Costuma ser o único ser vivo a quem ela consegue extrair uma reacção semelhante e só isso a faz agarrar-se ao gato como se fosse o salvador do seu mundo. O seu Messias. O seu Sebastião.

Este agarrar ao gato não é somente metafórico, é mesmo real: não raras vezes, todas as fotos que despeja nas redes sociais envolvem um meme dum gato, a fábula dum bichano ou a descrição das tropelias do felino. É o seu único amigo, que só não é amante porque… bem, porque a pila do gato é invisível e a bestialidade tem limites. A devoção roça a obsessão. É a cama do gato, o brinquedo do gato, a tosse do gato, o gato é o namorado que nunca tiveram, por nunca se queixar e gostar dos seus miminhos, o gato é o filho que aspiram a ter, por concentrar em si todas as suas atenções. E depois vem mais um gato. E outro, só porque estava a miar choroso e perdido junto ao caixote de lixo. E depois afinal o gato era gata e está mais uma ninhada à porta, à qual não se irá torcer o pescoço ou atirar-se ao rio. A casa está infestada de pêlo e há um cheiro pertinente a urina junto da caixinha de areia, as cortinas e sofás estão rasgados e há vários pertences espalhados pelo chão, livros despedaçados e comandos desaparecidos, mas ela não se importa, porque nessa altura ela já se rendeu aos encantos do Deus-gato e a suas lacunas sociais resvalaram para uma semi-loucura que ninguém tem coragem para lhe apontar. Se é que alguém se importa, afinal. É que, entretanto, já todos se aperceberam dos sinais de alerta que emanam duma gaja demasiado agarrada aos gatos: sim, há ali muito recalcamento e sexualidade reprimida e o bicho canaliza em si todo esse esgoto emocional. E nem mesmo os trabalhadores das águas gostam de inalar o aroma das ETARs. Alguns dirão “bem-feito”: são os que desconfiam da impassibilidade dos gatos e preferem a simplicidade canina, ou aqueles que nem sequer gostam de animais de estimação.


Qualquer gato serve. Porque à noite, dizem, todos os gatos são pardos. Qualquer um, com o seu pêlo fofo e olhos penetrantes, cumpre bem a sua missão actual: amparar emocionalmente gente com pouca fé numa humanidade egoísta e muita crença nas capacidades reabilitativas dos animais. Que não falam, mas é como falassem, porque os donos imaginam todo o processo comunicativo do seu gato duma forma que nunca conseguiram estabelecer com os humanos. Todos os vaidosos donos de animais falam com eles como se pedissem pareceres a doutos consultores e aquiescerão que ao seu animal “só lhe falta falar”. E como falam estes gatinhos sem dominar a língua, segundo o dono, o único que consegue decifrar o que significa o miado mais longo, ou o arrebitar dos bigodes ou mesmo as pequenas torções das orelhitas. Os donos rendem-se perante tanta evidência adorável. E assumem “o meu gato é que manda em mim”. Imaginam ela a dizer, “o meu marido, o Sebastião, manda em mim e eu adoro-o”? Não, pois não? Seria ridículo uma mulher moderna ser dominada por um homem, mas ser dominada por um gato é aceite e até divulgado com um estranho orgulho. Este gatinho nem se chama Sebastião, mas podia. Porque já lhe salvou muitos futuros ao servir de único e superior conforto nesta vida. E um dia, por entre o nevoeiro, haverá de chegar o redentor. O famoso desejado que teima em não sair da bruma, para juntos construírem uma frutífera união entre mulher, homem e gato. Assim espera. Vai esperando, enquanto o Bolinhas lambe as suas próprias bolas, num gesto tão indecoroso quanto natural, mas sempre charmoso, como só os gatos sabem. Não é, Bolinhas?