24 agosto 2017

A Tua Mãe (Não Se Queixou)

O Dentão dizia a toda a gente “a tua mãe não se queixou”. Também a raparigas e a tipos sem mãe, ele não se acanhava. Estás a ver o género, não estás? Quando o proclamava, falava com tom de afronta, como resposta a alguma provocação. O mais normal era alguém pôr em causa a sua masculinidade; aquelas coisas corriqueiras do “és um paneleiro!”, e ele, tumba!, “pois sou, mas… a tua mãe não se queixou!”. Com um sorriso e, calhando, até um piscar de olho maroto. A expressão era, no início, uma espécie de bomba atómica do insulto. Se puseste em causa a minha sexualidade, eu devasto a idoneidade da tua mãe. Era comer e calar com esse vil ataque à reputação da progenitora. Não se conseguia combater aquilo. Ou se retorquia com um estéril e infantil “a tua também não”, o que, convenhamos, deixava muito a desejar em termos de espirituosidade, ou se saía com outra tirada ainda mais graciosa, o que não era fácil na altura, pois não éramos muito vividos – ou “streetwise”, como está na moda. Aquela boca era do mais “streetwisest” que podíamos ter. Vivíamos num mundo em que a informação passava lentamente, onde as repetições do boi Bocas ainda faziam crescer água na boca… e o “Água na Boca” era o máximo de mamas que podíamos ver livremente. Tu não sabes o que era estar ansioso por ver mamas ao léu em canal aberto, agora que elas te surgem em forma de spam quando tentas ver um jogo por streaming. E ainda por cima, são gajas que estão sempre solitárias, carentes e a rebolar-se numa cama cheias de comichão lá para os lados da Amadora. Ou Moscavide. Esses sítios onde existem esse tipo de gajas que só atrapalham, onde os lençóis estão todos sobrelotados de pulgas e para onde os IP’s convergem. Não tínhamos simplesmente as alternativas que hoje se conhecem, não havia memes com mensagens extremamente engraçadas e actuais para partilhar, todos uniformizados pelo mesmo tipo de letra e imagem. Acho que já está na hora de diversificar, diz-me tu se ainda prestas alguma atenção ao “keep calm and…” ou ao Grumpy Cat. Ainda? Bolas… Não tens explorado muito a internet, pois não?

“A tua mãe não se queixou” pode ter advindo duma coisa qualquer que se ouviu na festa da terrinha Atrás-do-Sol-Posto e que alguém transplantou para o nosso meio. E se calhar essa expressão já estaria em franco desuso até em Atrás-do-Sol-Posto, algo extraordinário, porque se há coisa que as festinhas de Atrás-do-Sol-Posto não são conhecidas é por deixar cair coisas na obsolescência – e daí estarmos sempre a ouvir a mesma valsa programada, “O Pai da Criança” e ruídos de eternas Zundapps junto ao bar onde se encontra sempre o coração do festejo. Pode ser difícil tu imaginares, mas a verdade é que sobrevivemos todos. Mesmo depois de termos ouvido amiúde “a tua mãe não se queixou”. Obviamente, a expressão foi banalizada. É como a tal guerra nuclear, depois de Nagasaki já ninguém se impressiona com cogumelos de fumo lá longe e oferecem-se bombas por tudo e por nada. Todos nós já estávamos tão acostumados e tínhamos trivializado tanto que aquilo já não afectava ninguém. Era como aquelas pessoas que usam e abusam do “portanto” ou “ou seja” nas suas expressões, nem se dava conta, proferíamos “a tua mãe não se queixou” de forma muito coloquial, à laia daquele piri-piri que dá outro gostinho à comida.

É claro que a banalização não era consensual. Havia sempre uns tipos que desconheciam a leviandade com que insultávamos e levavam as coisas muito a sério. Um desses gajos era o Rabicó. Nem de propósito, foi o Dentão que lhe colocou a alcunha. Isto depois de termos passado junto ao território deles, incarnado no prédio onde morava o Otário, as escadinhas contíguas e talvez os dois prédios mais abaixo, meio anónimos e que até poderiam ser território não reclamado. O grupo do Rabicó estava lá e mandou umas bocas quando nós passámos. Deviam estar a comentar os jeans Soviet estrategicamente rasgados do Raposa ou os Stan Smith novinhos do Dentão. O Dentão era um gajo sempre de olho num bom bate-boca e, já no topo das escadinhas, responde bem sonoramente “…MAS A TUA MÃE NÃO SE QUEIXOU!” e todos nós sorrimos por termos adivinhado precisamente o que se sucedera. Na boa, íamos a seguir caminho para fumar um Marlboro no campo de ténis, onde o Macieira iria criar uma piscina de cuspo, um lago de pequenas escarradelas que mandava mecanicamente após uma baforada. Toda a gente sabia onde o Macieira tinha fumado o seu cigarro secreto: era olhar para o chão e vê-lo alagado por uma substância viscosa, meio esbranquiçada, talvez ainda com algumas borbulhinhas. Porque o fazia, não sei; talvez fosse catarro industrial ou mero exercício de estilo. O que sei é que o Rabos também deu largas à sua arte cuspideira durante a cigarrada por algum tempo e que o Coratinni, um puto que nem sequer fumava, era ainda pior e mais sonoro nesse métier. Mas o Rabicó sentiu-se ofendido. Perdeu subitamente a loquacidade, galgou as escadas a correr num desvario e encarou o Dentão de peito feito, “olha lá, o que é que DISSESTES sobre a minha mãe?” – mesmo assim, que o pessoal na vida real fala mal (e se fosse para ter colocado aquilo por escrito, aposto que teria escrito “disses-tes”). Houve algum burburinho, testas encostadas, pessoal a tentar separar, troca de argumentos salpicados por mais insultos, mas aquilo lá foi apaziguado sem marcas de maior. O Rabicó e o seu grupo é que nunca mais caíram nas nossas graças. Nós éramos tipos não-alinhados e heterogéneos. O gajo era todo do punk consciente, com as correntezinhas dependuradas nas presilhas das calças e tudo, possuíam um hino anti-caçadores com uma relativa notoriedade e organizavam uma fanzine da cena, mas isso agora já deve ter passado e o gajo se calhar trabalha numa firma que vende talheres, está careca e pálido de tanta soja que teve de comer e até já não sabe onde param os álbuns originais dos Bad Religion. É o que costuma acontecer a estes gajos com a idade, vão do straight-edge para o straight-into-conformity. São as vicissitudes da vida, como deves perceber. A namorada dele na altura era um gaja com fama de “foder bem” e cuja virgindade já tinha sido perdida antes dos 16, segundo reza a lenda. São famas que perduram e que a tornavam atipicamente popular entre a mole masculina demasiado necessitada duma relação sexual propriamente dita. Atipicamente, porque a gaja não era nada de especial. Nada de especial mesmo, até para um adolescente carente… esquece, não há limites para um adolescente carente; a gaja era muito míope e fustigada por uma acne ténue, mas visível, e nem isso nos impedia de querer ficar junto dela nas visitas de estudo. “Fodia bem”, dizia-se à boca cheia, elevando as férteis fantasias pubescentes a patamares estratosféricos, e ela anuía, entre risinhos que apoucavam ainda mais os olhinhos dela atrás dos óculos, não enjeitando essa popularidade. A de “foder bem”, não a da miopia, bem entendido. No fundo, seria a vingança dela perante as outras gajas mais bonitas mas não tão afoitas. O problema é que ela começou a dizer que tinha estabilizado, sentindo uma maturidade precoce por volta dos 17 anos, num aparente momento de clarividência que muitas groupies não chegam a conhecer por uma vez na vida. Não queria forrobodó com mais ninguém que não aquele lingrinhas movido a vegetais. Então que se fodesse. Sabes como é, um gajo naquela altura não está para ficar à espera. Ademais, a acne só tinha tendência para piorar e ninguém tinha orçamento para o Clearasil. E ela foi sendo relegada à medida que novos valores despontaram na área. Acho que os vinte-e-poucos anos lhe devem ter batido forte, quando se apercebeu, qual Limp Bizkit, que a linha que separa o estrelato instantâneo do anonimato é quase imperceptível. Se hoje não está casada com um nerd com um bom emprego e com filhos míopes todos saídos a ela, então que me caia um piano em cima. Um Steinway & Sons, que é para ser esmagado com classe. Ao contrário dela e do estúpido do Rabicó.

Mas sabes o que me inquieta agora, miúdo? É não poder dizer, com propriedade, “a tua mãe não se queixou”. A tua mãe. Mesmo. Isto porque ainda não tive a oportunidade de deixar-lhe satisfeita. E eu acho que a tua mãe não se importava de se satisfazer comigo, caso nos desinibíssemos a valer. Isto é, ela não se deveria queixar. Talvez não percebas nem te interesses por isso, não faz mal, eu provavelmente estou a precipitar as minhas conclusões, mas alguns dos teus amigos já devem ter comentado a forma física dela: a teimosia que ela demonstra em envergar vestes muito leves e arejadas no Verão, donde espreitará a cabecinha dum soutien cai-cai; se calhar, nem traz soutien, que quando um tipo não vislumbra as alças do soutien pelos ombros ou costas começa logo a magicar; a maneira como cruza aquelas pernas carnudas e bronzeadas, onde não há sinal de varizes nem de celulite, aquelas cuecas que se percebem estar a perder-se rabo adentro e os sorrisos e toques que dá quando se despede com dois beijinhos bem dados. Não, ela não encosta só a cara e faz barulho como aquela gente que parece ter um certo asco ao intercâmbio de germes faciais, ela move os lábios para beijar e consuma o acto. É toda uma insinuante simpatia que se materializa. Todo um outro nível. Certamente que algum deles já bateu valentes punhetas a pensar nela, que a fantasiou angelical numa cama de pétalas ou apertada em vinil negro qual pantera de boca escarlate, a abrir delicadamente as pernas revestidas por uma pele aveludada para revelar o que vinha na mala do Pulp Fiction, ou demasiado arrojada nas palavras enquanto improvisa um lento strip-tease, envolvida pelo fumo absoluto duma cigarrilha de aroma perverso que preenche o quarto a meia-luz. A nossa mente estica-se até longínquos horizontes de intensa carnalidade, movida por estímulos que abrangem todos os sentidos. A tua mãe é da estirpe que fomenta a nossa imaginação, a que possui o mapa preciso para alcançarmos esses tais horizontes de luxúria. Sentimo-la diferente das outras; por ser experiente mas conservada; por irradiar sensualidade sem se render ao vulgar; por ser um fruto proibido que transparece uma dose adequada de malícia. Fisicamente, ela até parece uma versão revista e aumentada da Lisa Kudrow. Mas não ousaria comparar a tua mãe com uma gaja que apareceu numa sitcom enjoativa. Tudo o que mete a Jennifer Anniston é deveras entediante, independentemente do que se passe à volta. E se pensares que esse é o ponto alto duma carreira, actuar numa série que nunca mais acaba, onde os episódios parecem todos iguais e com plot-twists cada vez mais absurdos, só para esticar mais uma temporada e dar de comer aos que ressacam de entretenimento apropriado a um Domingo à tarde, então estás a perceber o que quero dizer e que eu jamais diminuiria a tua mãe dessa forma. E jamais escreverei dias da semana e meses com letra minúscula, quer as séries se chamem “Friends” ou “How I Met – voilà! – YOUR MOTHER”. A tua mãe – a palavra-chave aqui: a tua mãe é uma mulher em cheio e é uma pena que, naturalmente, não consigas reconhecê-lo sem pareceres um tarado qualquer. Em resumo, em vez do complexo de Édipo, tens o dilema do Stiffler.

Estou consciente de que poderás estar perplexo. Afinal, é comum nós sentirmos as nossas mães como entes castos e assexuados. O último reduto da decência. Somos todos parentes de Cristo no sentido em que, nas nossas mentes, fomos plantados lá no útero dela sem nenhuma obscenidade envolvida, tal como Cristo na sua épica narrativa. Queremos acreditar que somos divinos à nossa maneira. Não visualizamos a nossa mãe de quatro a pedir por mais e mais. Não. Nunca houve ninguém que chocasse os seus testículos inestéticos e felpudos contra a sua vulva, imbuído por um espírito de devassa, a chamar-lhe nomes e a puxar-lhe os cabelos para gáudio da pobre mãezinha. Qual gáudio. Nem pensar. Só pode ter sofrido muito e estar profundamente envergonhada, caso isso tivesse acontecido. Ah, ela queixar-se-ia, e muito! Ultrapassa-nos a ideia de a nossa mãe possuir desejos sexuais. A não ser que a nossa mãe se chamasse Carolina Patrocínio, mas também aí não teríamos de nos preocupar muito porque já estaríamos com um melanoma fatal. Espero que a Carolina imploda na próxima selfie e que se queixe que foi devido à falta de ginásio. Ela tem toda a cara de quem leva com saraivadas de esperma do seu marido-cavalo nas fuças, sémen esse que depois descai por aqueles ossos abaixo até se anichar naquela cova que tem entre as pseudo-mamas para aí ressequir em paz, num longo processo de maturação que a levará a raspar a casca daí resultante com uma unha devidamente envernizada e utilizar esse produto como topping dum dos seus batidos extremamente saudáveis. Mas ela talvez não se queixe de nada, aquilo é tudo sorrisos e eventos maravilhosos, desde as praias das Caraíbas com aquela gente muito pitoresca que vende bugigangas nas praias, gente tão pobre e tão adorável, aos abdominais pavorosos que faz questão de debitar no Instagram. É pouco crível que ela se queixe. Como a tua mãe, por motivos diferentes. É engraçado constatar que “como” na frase anterior tanto pode ser uma conjunção ou uma forma verbal.

17 maio 2017

Jon Bon Jovi

Não há muitas coisas que sejam tão consensuais como o prestígio do Jon Bom Jovi junto das mulheres. Foi o corrector automático que tornou o “Bon” ali de trás em “Bom”. Cá está, até o próprio corrector automático parece duma forma muito irónica concordar comigo, ou até mesmo extrapolar a minha observação, porque o sacana do corrector automático, segundo creio, é assexuado. E eu, com muito fair-play, concedi uma hipótese ímpar para o corrector automático brilhar. Ele, coitado, que tem as costas tão largas e recebe as culpas todas quando alguém se envergonha ou encolhe os ombros numa dúvida irresolúvel a decifrar textos nossos, não é habitualmente credor de grandes encómios. O corrector automático é como aquele parente meio distante que um dia destes feneceu: só nos chateava com os seus moralismos e receios de velho, que é como quem diz, “não escrevas isso, jovem, que há demasiada discordância entre sujeito e predicado, ou falta aí uma vírgula algures ou esse neologismo é desadequado”, mas depois até sentimos falta da sua rezinguice e, quiçá, das belas notas embrulhadas dentro dum envelope por alturas do Natal, ou por outra forma, das vezes em que por qualquer motivo se desactivou e nos deixou sem rede para escrever aquele mail em que dava mesmo jeito não produzir erros. Portanto, deixemos o corrector automático saborear a sua quota de crédito pelas parvoíces que vamos teclando e reconhecer-lhe o mérito enquanto ele não stressa com palavras como “pilinha”. É verdade, ele não stressa com pilinha. Mesmo assim, sem aspas nem capitalização, que às vezes o corrector poderia supor que Pilinha era o nome próprio da filha da Cinha Jardim e aceitava, à laia de benemérito. Não, essa era a Pipinha. Pipinha, Pilinha, enfim, lembro-me é que a Pipinha tinha umas mamas jeitosas que agradavam à pilinha – mnemónica para o futuro. A versão que eu tenho do Office é muito práfrentex, não fica aos risinhos quando ouve destas coisas meio pueris, e até “práfrentex” reconhece. Ah, valente.

É curioso ser o corrector automático a mandar uma ironia bem gizada e inadvertida, logo o corrector automático, esse Jekyll e Hyde do pessoal que não sabe escrever, ente sisudo e irascível na detecção de acentos em falta. Normalmente, é deste tipo de gente “no nonsense” que esperamos as tiradas mais imprevisíveis e certeiras. Não é como aqueles que julgam que têm graça e que juntam a este desditoso defeito o pecado de serem lampiões. Agora não se calam por terem ganho uma coisa qualquer, vêem todos os jogos e programas pré e pós-jogo, sabem de tudo sobre transferências e rumores e o diabo a quatro. Tenho um desses espécimes à minha frente e esta abécula sente tanta necessidade em mostrar a sua típica bazófia em open-space, onde serei o único não-lampião (e já estou vacinado contra essa doença, felizmente), que até fala para mim mesmo quando tenho os phones colocados no volume máximo e se percebe na copa que estou a ouvir música. É mais forte do que eles, é mais forte do que uma Cicciolina numa praia de nudistas e com comichão nas mamas, está-lhes no sangue: têm de ser fanfarrões dê por onde der. “Lá vem merda”, penso eu, sem sequer olhar directamente para aquela boquinha torpe donde sai um arrazoado já regurgitado por mais não sei quantos da manada e repetido ad nauseam. Latim, lampiões. O Jorge Mendes vende-vos aulas disto por 15 milhões. Claro que “lá vem merda”, aliás, o lampionismo presta-se muito a isto e a tipos que exclamam amiúde “mai’nada!”, “era pô-los todos a arder com um barrote pelo cu acima!” e “uma seven-épe aqui para o meu mai piqueno!”. Não, destes gajos só podemos esperar que fiquem calados durante muito tempo. Nunca sairá dali nada de génio, mas apenas trivialidades que cultivam uma semente de irritabilidade que vai crescendo e dar uns suculentos frutos de enjôo lá mais para o final do Verão. A antítese do Jon Bon Jovi, cuja aura de perfeição entre o mulherio perpassa épocas e é tão poderosa que o peido que mandou em 1986 e ficou guardado para envelhecer entre cascas de carvalho numa cave húmida durante este tempo todo cheira agora a Chanel para as admiradoras. Que são, no fundo, todas as mulheres do planeta excepto a Dina, as amigas da Dina e a Joana Amaral Dias, que detesta toda a gente e emprega o seu pior sotaque de esquerda-caviar para demonstrar o desprezo que sente do mundo que lhe é tão inferior. Um dia perceber-se-á que a má-disposição da Joana advém do facto de as suas mamas, embora volumosas, estarem aquém da dimensão das suas orelhas – quando ela finalmente perder o pudor em mostrar as orelhas.

Com efeito, a unanimidade do Jon Bon Jovi é indiscutível. Já o era há nos anos 80, continua a sê-lo na era das redes sociais, num fenómeno de longevidade sem precedentes. O tipo até quando tiver 90 anos deverá ter gajas a saltarem-lhe para cima, literalmente, porque nessa altura o Bon Jovi já não terá capacidades para comer alguma gaja a não ser que esta gaja o coma. Não há gaja capaz de dizer mal do Bon Jovi. Perguntem a qualquer gaja acima dos 30 como é que é. Do Brad Pitt podem dizer “ah, já passou a sua fase e aquela cena com a Angelina desgastou-o”, sobre o Di Caprio argumentam que “tem cara de menino e eu gosto de homens mais brutos”, em relação ao Dwayne Johnson peroram que “é demasiado bruto e eu gosto deles mais gentis”, o Tom Cruise “meteu-se com os Cientologistas e acho que é um baixote”, o Nelson Évora “é preto”, o Robert Pattinson “parece lavado em lixívia”, o Ricky Martin “pega de empurrão, é uma pena, mas pronto, já se sabe que os melhores apaneleiram…”, o Nuno Gomes nem sequer era um homem, o filhos do Tony Carreira não prestam porque são avecs xungas, o Benedict Cumberbatch, malgrado o seu charme britânico, “parece um freak” e o Justin Bieber, esse, bem, “é uma criança”, se bem que o Bruce Willis “já é um bocado velho demais”. Mas sobre o Jon não há nada a apontar. Especialmente, os seus dotes enquanto homem, mais do que enquanto cantor. Pois, suspeito que o Bon Jovi poderia cantar uma versão do “Ai Ai Ai Minha Machadinha” e mesmo assim venderia 1 milhão de cópias desse single, sem esforço. Todas compradas por mulheres e pelos amigos do Cláudio Ramos. Bastaria apenas uma sessão fotográfica de promoção que sublinhasse a sensualidade do seu sorriso de lábios carnudos combinada com a profundidade arranca-almas do seu olhar. “Parece o Vinho do Porto”, “até de lycra e permanente tinha estilo”, “foi sempre muito fiel à mulher”, “têm pêlos no peito”, “têm alguns pêlos no peito, mas não são muitos”, “fica bem com qualquer tipo de cabelo”, enfim, alguns dos elogios mais visíveis, culminando no “esse gajo é bom todos os dias”. E não há mais ninguém assim, que congregue tamanho apoio feminino. Nem na minha terra, nem em lado algum. O Bon Jovi é único e irrepetível. É um facto deveras assinalável: consegue unir todas as gajas, mesmo as que dantes odiavam-se de morte porque uma vez houve uma que foi comprar um lenço à Bershka que era o mesmo que a outra tinha experimentado com ela no outro dia mas que não chegou a comprar porque ela tinha-lhe dito que o que lhe ficava mesmo bem eram as pulseiras que tinha visto num daqueles quiosques à entrada do shopping e a outra tinha ficado com dúvidas e acabou por ficar mesmo com as pulseiras em vez daquele lenço e agora até já perdeu as pulseiras numa mala qualquer e a outra anda aí a pavonear-se com um lenço que podia ser o dela e já não pode nunca mais ser, porque seria altamente embaraçoso ela ser vista com um lenço igual à da outra, a vaca, bem-feita o teu filho ser autista, o teu marido ser repositor no Jumbo de Alverca e teres uma pele toda cheia de sinais e pontos negros nojentos que é uma vergonha, que é para servir de castigo. Pausa para respirar. O Bon Jovi constrói pontes e sana as diferenças. Sim, até as palestinianas e as israelitas deixam de lado os seus morteiros e cintos de bombas e juntam-se todas num deleite profundo, se é o Jon Bon Jovi que está a passar lá na M80 do Médio Oriente, especialmente se for a “Always” ou a “Bed Of Roses”. “Ahhhh…”, suspira-se colectivamente em árabe e hebreu e pronto, soltam-se coraçõezinhos imaginários no ar e larga-se o cocktail molotov no chão, lá está mais um mártir mas que se lixe, quando o Jon afirmou “I wanna lay you down in a bed of roses” elas juraram que ele era o tipo mais romântico de sempre e que tudo valia a pena. O poder do Bon Jovi é imenso. É tão grande que quando ele diz “yeah, I will love you baby, always, and I'll be there, forever and a day, always” é ver as gajas a derreterem-se qual gelado ao sol e as suas partes baixas a encharcarem-se de tal forma que se fizéssemos *schlek, schlek* nos seus grandes lábios seríamos salpicados por uma onda de fluido vaginal que nos faria parecer um McNamara à deriva no Canhão da Nazaré. Isto é mais visível nas gajas que têm grandes lábios mesmo grandes, uma membrana protuberante como se fosse um molusco e onde é até possível formar uma pequena poça de água, havendo a sorte de existir uma concavidade com algum jeitinho. Há gajas assim e a maioria delas tem vergonha de possuir aquelas peles dependuradas, mas até poderiam fazer um figurão num concurso de sombras chinesas. As outras apenas molham as cuecas e, em casos extremos, encharcam o chão por onde passam, como se acometidas por uma incontinência aguda. Uma incontinência destas tem um responsável: Jon Bon Jovi.


Não conheço assim tantas mulheres, mas nunca conheci nenhuma gaja que desdenhasse o Bon Jovi. Até mesmo aquelas que fugiam a sete pés de baladonas ou de hair metal admitem, no mínimo, que o Jon é o seu “guilty pleasure” e escutam-no, não tanto pelo prazer do som, mas pelas sensações oníricas que a sua voz proporciona. Mais do que ser “um tipo que não é mau”, o Jon é, da neta à avó, da maníaco-depressiva à passiva-agressiva, da tola até à doutorada, da freira que esconde dildos à puta que lê poesia lírica setecentista, “realmente um tipo bom”. Bom em todas as vertentes que apaixonam, incluindo bricolage, estacionamento paralelo e um pénis grande e grosso, desenhado de forma ergonómica para encaixar em qualquer vagina. Bom Jovi, como este corrector automático teima em fazer-me escrever.

19 abril 2017

Christopher Walken

Em tempos não muito idos, havia vergonha. Não que fosse algo que suscitasse orgulho ou celeuma. A gente não tinha era muitas formas de perdê-la. Então conservava-la como um pickle envinagrado no fundo da dispensa, despojo esquecível que teimava em nunca se deitar fora, por muito fora do prazo que estivesse. A vergonha não era coisa de se perder facilmente. Não era nenhuma chave de viatura em viagem interminável pela mala duma senhora. Não era algo que saísse pelo bolso dumas calças ratadas. Nós até tentávamos que ela nos passasse despercebida, mas, teimosa, a vergonha ficava por lá, agarrada por pinças imaginárias, colada por uma Super Cola 3 absurdamente invisível e potente. Nós sabíamos que a tínhamos, lá alapada e senhorial. Ponderávamos e retraíamo-nos em consequência. E nunca a largávamos, à laia dum objecto precioso que nunca fora. Porque custava abandoná-la perante a presença efectiva de gente. Gente a sério, de carne e osso, da qual sentíamos a respiração e os esgares de espanto ou indignação, bem à nossa frente. Pelo menos, desfazermo-nos dela duma forma cabal e espalhafatosa. Perdia-se a vergonha em surdina, em pequenos actos e traquinices partilhadas em forma de air guitar num quarto, numa masturbação que pincelava os lençóis pela calada da noite, numa cumplicidade espontânea entre um par de amigos ou numa carta de amor rabiscada num cantinho lá de casa e cujo destino seria, invariavelmente, o caixote. A vergonha não aceitava ser deitada ao lixo, obrigava-nos a deitar o resto para o lixo. E vivíamos com isso, por muito que até desconfiássemos que o excesso de vergonha nos castrava de todo um eventual potencial que julgávamos possuir.

Hoje, porém, isso da vergonha é um conceito em desuso. As pessoas esqueceram-se disso. Perdem amiúde a vergonha e nem se dão conta. A única vergonha que subsiste é a vergonha de ter vergonha. Porque hoje há tantos repositórios onde deixar a vergonha à porta, como se fosse parte do código de conduta desta grande festa dos tempos ultra-modernos, que é quase tão natural como beber água. Até beber água já não é tão descomplicado como dantes: agora há vários sabores, mineralizações diversas, há quem defenda que a água da torneira é que é boa e a que evita pedras nos rins, há quem receie pelos detritos que vêm nas tubagens que podem provocar um cancro qualquer e há até quem nem beba água, declarando, ufano, que isso “é para meninos”. É também um sinal da perda da vergonha, as proclamações absolutas e, não raras vezes, desconsiderando toda a razoabilidade que dantes andava de mão dada com a vergonha. A razoabilidade também se perdeu por uma vereda sombria, coitada.

Estão a ver aquele magote de gente com o pescoço dobrado sobre o seu ecrã, mexendo os polegares? Sim, aqueles que estão juntinhos sem descolarem as suas íris brilhantes daquele magnético ecrã e verem quem está ao lado? Estão todos a perder a vergonha, silenciosamente, uns para os outros. A gente entra num mundo de total abertura e pensa que está ainda no seu cantinho, mas não, está a fazer um strip-tease da alma para muitos outros olhos. Pensa que está a brincar ao Risco, mas está a criar ondas de choque que mata gente da Síria à Coreia. Crê que é tudo muito amigável e asséptico; engraçado, quiçá, mordaz com muito estilo, talvez; mas está a desencadear sentimentos pouco nobres noutra gente que se impressiona facilmente e a levar com ricochetes desagradáveis. Pode até imaginar que ainda está no café a falar com amigos, mas está a gerar inimigos ocultos, muito irascíveis e igualmente exauridos de toda a sua vergonha, que replicam com feroz veemência. E também com uma dose de demência, que rima, e não só porque fica bem. Parecem cães que ladram muito atrás da vedação e que ficam sem saber o que fazer quando se apercebem que essa rede acabou. Já ninguém sabe o que fazer sem rede no chamado “mundo desenvolvido”. A falta de vergonha animalizou-nos, no sentido mais irracional do termo.

A ignorância agradece. Dantes, a vergonha impedia-a de se soltar. Agora, a ignorância corre por aí, à bruta, com as mamas ao léu – e, por vezes, até de forma literal. Sem a vergonha, a ignorância grassa como uma epidemia e fica ao cuidado de cada um vacinar-se como pode. Alguns não querem, alguns não sabem como, outros ignoram a ignorância. O que é ainda pior. Assim, a ignorância corta os laços mais profundos que a vergonha segurava e solta-se o insulto, o deboche, a inveja miudinha e mais e mais ignorância. Tende-se a simplificar tudo, a arranjar instruções tipo Ikea para resolver problemas, alguém há-de pensar, alguém há-de corrigir, alguém há-de fazer, alguém há-de responsabilizar-se. Alguém. A nós só nos interessa uma imagem. Um ícone qualquer. Uma fé nalguma coisa que nem sabemos bem o que é, mas é fé e a fé tem domesticado os espíritos inquietos de muita gente ao longo do tempo. Se a fé serviu dantes, servirá agora, pensa com pueril ingenuidade quem acha que a História cristalizou e é muito chata, coisa de velhos nostálgicos e que nunca se repete, neste mundo em que até podemos assassinar gente em directo e divulgar ao resto do mundo com a mesma facilidade com que escarrapachamos mais uma selfie numa aplicação qualquer, à espera de receber 346 comentários que dizem exactamente o mesmo, apenas variando na forma como abreviam e pontapeiam uma língua qualquer. Tudo porque estamos a olhar para o mundo atrás dum ecrã, no nosso cantinho, sem nos apercebermos que a linha invisível nos une a todos, mantendo-nos solitários em simultâneo, numa partilha de angústia social colectiva. Não reparamos, mas a quantidade de interacções apenas nos torna mais sozinhos, à medida que o cimento que daria para unir uns poucos serve para muitos. Vamo-nos desagregando e ruímos todo o nosso edifício sentimental, numa espectacular derrocada da qual ninguém quer saber. Se pelo menos ainda tivéssemos a vergonha, se calhar tínhamo-nos acautelado. Mas perdêmo-la pelo caminho e já não somos capazes de encontrá-la sem um GPS. E já ninguém escreve de forma perceptível para que possamos entender como reencontrá-la. Como nos reencontrarmos. Já nos perdemos a nós mesmos numa selva de redes. Emaranhámo-nos demasiado. E achámos muita graça porque pensávamos que éramos o pescador, mas éramos o peixe e fomos de arrastão. Fomos mais um peixe neste cardume sem vergonha.

E agora? Agora tens um revólver à frente com uma bala à espreita e estás cansado de andar com o relógio de outrém espetado no teu recto. Tens de largar esses fardos que te deixaram com um olhar louco e distante e com uma voz carregada de sarcasmos fotocopiados. Não há como voltar atrás. Nem saberás como. A solução é seguir em frente. Sem vergonha. Disseram-te que sem amarras algumas é que serás plenamente livre e realizado. E que o caminho da felicidade se faz sem medos. Arriscar, empreender, dar largas às frases feitas que são tão giras quanto vãs, descurar as bases que aqui te trouxeram e que tão miseravelmente te fazem comparar com os outros nesta sociedade aberta, de competição ferina, onde não há lugar para os fracos, anónimos e aborrecidos. Ninguém quer ser a nota de rodapé. Tu não queres, certamente, não ter nada para contar a quem não te quer ouvir. Está nas tuas mãos segurar o revólver com determinação e criar uma grande história.


Mas ser feliz não é, simplesmente, uma opção viável. Tu sabes bem que sim, mesmo que te esforces para convencer os outros do contrário. Ninguém quer ser convencido, de qualquer forma, apenas tranquilizado. Tu sabes bem quais são as linhas com que te coses. São iguais às dos outros todos. Somente não consegues admitir. Por vergonha?