18 março 2016

Crazy Cat Lady

Sebastiões são como os chapéus, há muitos. E houve mesmo um gajo chamado Sebastião, um bêbado, falhado na vida, reles e desprezível, mas que destilava um adorável estilo de rebelde sem causa e fornicava à bruta com primor. Detinha uns ares de Cristo e até lhe cravou umas chagas de paixão intensa no corpo. Ele picava sem necessitar da coroa de espinhos, que fantástica era a sua habilidade em magoar. Contudo, esse não lhe salvou. Pior, deixou-lhe um lastro de desilusão, ressentimento e falsa esperança que ainda hoje persiste no convés da sua perturbada existência. O seu navio de emoções encalhou-se em águas baixas, estagnadas, nos sedimentos arenosos de uma vida de decepções, perto da margem da indigência sentimental onde este Sebastião a fundeara. Agora, esse navio é fustigado por vagas e tempestades que se originam em terramotos distantes e é corroído por motins internos duma ansiosa tripulação em permanente desacordo, encontrando-se desamparado pela ausência duma bússola que lhe indique o norte com rigor. Estas tempestuosidades moem-no até ser impossível sair do prolongado definhar com rumo a destinos mais prestigiantes sem auxílio; quando experimenta içar as velas, ventos desconhecidos lançam-no numa agoniante deriva que o faz sentir saudades dos bancos de areia que o prendem. Nestas indecisões, ele fica ali meio entre o mar e a terra. O mais certo é quedar-se num pântano onde se afogará lentamente e sem dor, qual lagosta cozinhando ao lume.

Ela queria o Sebastião, o ser mitológico que lhe iria resgatar dos longos serões solitários, o único ente com quem poderia socializar sem constrangimentos, uma versão sensual e não-homossexual do Sebastião original. Esse Sebastião. O seu Sebastião. Talvez seja pedir muito, afinal Portugal espera há quatrocentos e picos anos por Sebastião, o original, e é um país perfeitamente formado há uns oitocentos e tal. Isto é, cerca de metade da sua existência. E está como está, ao fim deste tempo todo. Não é uma perspectiva reconfortante.

Ela acha que a sua prima Celeste, uma quarentona obesa da província que vive a cuidar dos pais inválidos e do irmão deficiente, uma matrona sem ambições que todos acreditam tender para santa, enfiada nas suas roupas cor-de-rosa compradas na feira e que talvez nunca tenha compreendido o que é a depilação ao certo, não é a referência que quer para a sua vida. Ninguém quer ser uma excelente pessoa, se isso implicar viver miseravelmente, sem nenhuma faísca de paixão, nenhum assomo libidinoso, isenta de qualquer visão dum futuro com um mínimo de glamour. Ela não foi feita para conventos, embora os conventos estejam cheios de gente como ela, apenas mais resignada. Aliás, está longe de se considerar a si mesma um modelo do que quer que seja, muito menos de santidade; pelo contrário, admite sem reservas que está longe de corresponder aos cânones cristãos ou de qualquer outra religião. Que tem pensamentos ousados, obscenos até, e voluntariedade para as coisas marotas. Mas isso também não lhe trouxe grandes proveitos. Já Celeste é excelente, à sua maneira: pela sua responsabilidade social e por estabelecer-se num nível moderno tão rasteiro que lhe permite sair a ganhar nas comparações. Vale o que vale e uma vitória de Pirro não deixa de ser uma vitória, nestes tempos de míngua. Que, afinal, foram todos.

A urbanidade desconsola-a. Mas, ao mesmo tempo, necessita dela. Pelo menos, dá-lhe muitas opções para matar o seu inútil tempo, algo que Celeste desconhece, porque prefere ficar a olhar para a formação das nuvens nos seus parcos tempos livres. Permanece o mistério de como Celeste mantém a sua boa disposição sem sequer estar inscrita numa única rede social. Ela precisa da civilização moderna para pesquisar por almas gémeas outrora inacessíveis, entrar em pequenas guerrinhas de egos e as suas costas largas servem na perfeição para expurgar as suas frustrações. Que são muitas. São tantas que ultrapassam as maratonas dos livros e de Star Wars, por larga margem, se explicitadas pormenorizadamente ao longo do tempo. O desencanto começa logo quando acorda, dorida por não conseguir conservar um aspecto de diva ao espelho, prolonga-se pela dieta que lhe priva dos prazeres do paladar e nem por isso lhe adelgaça a linha, estende-se pelas fracassadas tentativas em interagir com putativos Sebastiões e desagua numa noite de sonhos extraviados, em almofadas pejadas de migalhas dos aperitivos que consumiu desenfreadamente para colmatar o seu pesar crónico. O ciclo recomeça no novo dia, mais forte, mais impermeável, cada vez mais invicto.

Como seria ser bom ser lésbica. Uma fufona orgulhosa das suas cãs, dos seus jeans, camisas e after-shave. Andar por aí à nora de cabelo curto, mochila às costas e Birkenstocks, com a sua namorada-tipo-fotocópia mesmo ao lado, de mapa na mão, invariavelmente perdida nas suas férias. Uma fufona com dois ovos estrelados no lugar das mamas, um sex-appeal que rivaliza com o nadir da Dina. Elas não se importam, chegam ao fim do dia e dão umas tesouradas, arrebitam o berbigão e estão prontas para receber as próximas rugas de consciência tranquila. Mas, azar dos azares, ela gosta de pau e o pau não parece gostar muito dela ou então está simplesmente distante demais, incomunicável e ausente. Teve de gostar de pau; não é sequer aquela coisa de “ah, o sexo a mim não me diz nada”. Não; diz, e diz alto e em bom som, “menina, tens aqui um poço fecundo e húmido que deseja ser penetrado em oscilações vigorosas” e ela não tem como fugir destes desejos. É só mais um percalço iniludível da sua vida. Já teve inúmeras oportunidades para se enrolar com as amigas que se despiram à sua frente, mas não consegue simplesmente achar graça às banhas e curvas das outras; em todas elas falta a rudeza e brutalidade dum homem com um aroma corporal forte. Possui, obviamente, o seu dildo preferido sempre à mão, o seu pequeno/médio/grande tesourinho que lhe torna a vida menos deprimente. E, por vezes, sente que é tudo do que precisa, basta aquele pedaço hirto de látex, com veias pungentes a moldar-lhe a superfície, a intrometer-se nas suas partes pudibundas. Mas a mente feminina é assaz problemática e não se conforma com respostas simples. Tudo é complexo e o objecto que tanto prazer lhe dá num momento é desnecessário no momento seguinte. Por vezes chora. Por vezes zanga-se. Por vezes remete-se à catatonia.

Não ser caso único não lhe anima. A verdade é que há muita mulher como ela por aí. A começar pelas suas melhores amigas. Às vezes reúnem-se umas quantas no mesmo prédio. Todas sucumbindo a esse enervante desespero de nada ter para oferecer ou receber da vida. E todas elas exibindo o derradeiro sinal de agonia social: a imensa devoção aos felinos domésticos. Vulgo gato.

O gato adquiriu um estatuto de semi-divindade para as solteironas contemporâneas, algo que este quadrúpede talvez já não atingisse desde os tempos do Antigo Egipto. E para os solteirões também, embora estes tendam a ocultar mais esta devoção ao gato por receios de “manifestação de bichanice exagerada”. Ao longo do tempo, sempre se reconheceram aos bichanos qualidades muito próprias, como o facto de ajudar a conter pestes devido ao seu jeito para caçar ratos. Hoje em dia, porém, esses utilitarismos mais activos já não lhes são requisitados: ao gato basta-lhe estar e ser fofinho. A fofice do gatinho grassa por todo o lado, proliferando em todos os formatos. É comum haver programas do género do “Isto Só Vídeo” exclusivamente composto pelas tropelias dos gatinhos. E são muito giros, como certamente saberão.

O gato de hoje é preguiçoso, indolente, tem o tamanho certo para caber numa mala e não precisa de ser passeado. Dispensa atenção excessiva, não chora, não precisa que lhe mudem as fraldas, lava-se a si mesmo e mesmo assim preserva a sua fofice, o que é óptimo nestes tempos em que não queremos ter de nos preocupar muito por muito tempo nem dispensar grandes cuidados de manutenção. E, como espécie de bónus quando está para aí virado, ronrona de satisfação quando lhe mexem ou enrola-se dolente em torno das nossas pernas. Costuma ser o único ser vivo a quem ela consegue extrair uma reacção semelhante e só isso a faz agarrar-se ao gato como se fosse o salvador do seu mundo. O seu Messias. O seu Sebastião.

Este agarrar ao gato não é somente metafórico, é mesmo real: não raras vezes, todas as fotos que despeja nas redes sociais envolvem um meme dum gato, a fábula dum bichano ou a descrição das tropelias do felino. É o seu único amigo, que só não é amante porque… bem, porque a pila do gato é invisível e a bestialidade tem limites. A devoção roça a obsessão. É a cama do gato, o brinquedo do gato, a tosse do gato, o gato é o namorado que nunca tiveram, por nunca se queixar e gostar dos seus miminhos, o gato é o filho que aspiram a ter, por concentrar em si todas as suas atenções. E depois vem mais um gato. E outro, só porque estava a miar choroso e perdido junto ao caixote de lixo. E depois afinal o gato era gata e está mais uma ninhada à porta, à qual não se irá torcer o pescoço ou atirar-se ao rio. A casa está infestada de pêlo e há um cheiro pertinente a urina junto da caixinha de areia, as cortinas e sofás estão rasgados e há vários pertences espalhados pelo chão, livros despedaçados e comandos desaparecidos, mas ela não se importa, porque nessa altura ela já se rendeu aos encantos do Deus-gato e a suas lacunas sociais resvalaram para uma semi-loucura que ninguém tem coragem para lhe apontar. Se é que alguém se importa, afinal. É que, entretanto, já todos se aperceberam dos sinais de alerta que emanam duma gaja demasiado agarrada aos gatos: sim, há ali muito recalcamento e sexualidade reprimida e o bicho canaliza em si todo esse esgoto emocional. E nem mesmo os trabalhadores das águas gostam de inalar o aroma das ETARs. Alguns dirão “bem-feito”: são os que desconfiam da impassibilidade dos gatos e preferem a simplicidade canina, ou aqueles que nem sequer gostam de animais de estimação.


Qualquer gato serve. Porque à noite, dizem, todos os gatos são pardos. Qualquer um, com o seu pêlo fofo e olhos penetrantes, cumpre bem a sua missão actual: amparar emocionalmente gente com pouca fé numa humanidade egoísta e muita crença nas capacidades reabilitativas dos animais. Que não falam, mas é como falassem, porque os donos imaginam todo o processo comunicativo do seu gato duma forma que nunca conseguiram estabelecer com os humanos. Todos os vaidosos donos de animais falam com eles como se pedissem pareceres a doutos consultores e aquiescerão que ao seu animal “só lhe falta falar”. E como falam estes gatinhos sem dominar a língua, segundo o dono, o único que consegue decifrar o que significa o miado mais longo, ou o arrebitar dos bigodes ou mesmo as pequenas torções das orelhitas. Os donos rendem-se perante tanta evidência adorável. E assumem “o meu gato é que manda em mim”. Imaginam ela a dizer, “o meu marido, o Sebastião, manda em mim e eu adoro-o”? Não, pois não? Seria ridículo uma mulher moderna ser dominada por um homem, mas ser dominada por um gato é aceite e até divulgado com um estranho orgulho. Este gatinho nem se chama Sebastião, mas podia. Porque já lhe salvou muitos futuros ao servir de único e superior conforto nesta vida. E um dia, por entre o nevoeiro, haverá de chegar o redentor. O famoso desejado que teima em não sair da bruma, para juntos construírem uma frutífera união entre mulher, homem e gato. Assim espera. Vai esperando, enquanto o Bolinhas lambe as suas próprias bolas, num gesto tão indecoroso quanto natural, mas sempre charmoso, como só os gatos sabem. Não é, Bolinhas?