22 junho 2016

Príncipe William

Esta é a minha coroa de glória no que à captação de semelhanças concerne, ou não fosse esta uma figura da realeza. E porquê, no meio de tantas geniais parecenças que costumo detectar? Porque, qual prospector de talentos que descobre um precoce Ronaldo a jogar no descampado da esquina, este foi oficialmente (note-se o sublinhado) reconhecido por uma esdrúxula sociedade de avaliação de sósias com ramificações obscuras em Portugal como “o sósia mais perfeito do Príncipe William”.

É óbvio, porém, que actualmente ninguém descobre Ronaldos no descampado da esquina. Para começar, já ninguém joga em descampados. Houve um tempo em que sim, jogava-se em descampados, baldios com belas poias animais salpicando o chão irregular, pedreiras, arrecadações, patamares, garagens e na própria estrada, nesses ilustres relvados de betuminoso áspero, com a roupa de sempre, utilizando pedras, árvores, mochilas ou outra merda qualquer a formar balizas, mas isso é tão século XX que até dói. Hoje, os putos que ainda vão jogando à bola querem primeiro as chuteiras coloridas, o equipamento de marca, um corte de cabelo o mais aparvalhado possível e uma tatuagem vistosa daquelas que saem com álcool e que dantes eram oferecidas no pacotes de batatas-fritas. O objectivo é tirarem selfies que colocam no Facebook ou Instagram, para com isso receberem comentários da Miga Tuxa cheios de coraçõezinhos, que não de Satã, e do Tigas K a dizer “boa mano ixo ta forte mm” e ainda muitos emojis avulsos e likes do ppl todo, tantos likes que até o Ronaldo original teria inveja. Isto é, o estilo é que é primordial, a bola é apenas um pretexto banal. Para além disso, os putos e os próprios paizinhos preferem a segurança modernaça dum belo jogo de consola e, a haver esforço físico, terá de ser desenvolvido numa dispendiosa, mas certificada, escola duma coisa qualquer com equipamento topo de gama, sem material tóxico ou abrasivo nem esquinas capazes de vazar as vistas dos frágeis meninos enquanto o Diabo esfrega o olho. Pois é, se jogar em descampados é “démodé”, então ainda mais inapropriado é que esse descampado esteja situado numa esquina. “Esquina” remete muito para o imaginário de actividades ilícitas. E nem as putas que se querem putas a sério se encontram agora nas esquinas – a não ser nas esquinas das vielas mais recônditas dum Badoo qualquer desta Internet maravilhosa.

Este sósia não fez luz à minha frente num descampado, surgiu-me num transporte público, que costuma ser um local bem mais apinhado que um descampado e que, portanto, prestigia o meu poder de análise. E sempre é uma ocorrência mais plausível do que aparecer em cima duma azinheira, se bem que isso só está reservado às divindades. A semelhança era tão óbvia que ninguém sabe ao certo se a foto que coloquei ali acima é dele ou do William himself. Em abono da verdade, desconfio que o William não ande pelos nossos transportes públicos, mesmo que haja por aí algumas acções de marketing onde os VIPs se mascaram e se misturam na multidão, para estupefacção geral. Numa de brincar aos pobrezinhos e para desentorpecer as pernas, combatendo assim o enorme tédio do seu fausto. Convém é depois tomar banho com aquelas soluções antissépticas e pedir à massagista ucraniana para esfregar bem esfregado. O próprio Ronaldo já andou a dar toques na bola, disfarçado numa praça em Madrid. O Jorge Palma também andava por aí aos caídos no metro das grandes cidades, sem disfarce algum, parecia um bêbado como os outros e ninguém lhe ligava. Hoje o pessoal já lhe liga mais, seja pela resistência que demonstra ou por mera pena. Mas já não anda de metro. Diz que faz mal à saúde, aquele ar dos túneis carregadinho de mofo e de bactérias que só se encontram na escuridão, um horror, faz um mal danado às vias respiratórias. O William, por seu turno, nem na terra dele anda de metro. Isso é demasiado working class e eles lá no país deles sabem bem delimitar as classes e qual o espaço destinado a cada um, apenas pelo sotaque e a pose. Também há por aqui uns tipos muito práfrentex que jamais ousariam entrar numa carruagem do nosso metro e chocar de frente com gente vinda da Reboleira, Chelas ou Ameixoeira, livrai-lhes Senhor dessa aflição sociológica, mas que em Londres são capazes de andar em loop na Circle Line e dizer que é uma experiência inebriante, um símbolo de urbanidade. São geralmente gente demasiado bronzeada, que estaciona em 2ª fila e que come atum em lata durante semanas a fio para compensar a vez que foram jantar ao Gambrinus. E depois metem no perfil do LinkedIn que são “General Managers” com uma Pós-Graduação em Leadership and Interpersonal Skills, partilham posts com mensagens redondinhas e extremamente irritantes retiradas de tipos supostamente CEOs de grandes empresas que dão cursos de “como ser melhor?”, “como ser mais eficiente?” e outras merdas próprias de quem gosta de se sentir importante debitando frivolidades, frequentam vários workshops e palestras onde há sempre espaço para uma conversa animada junto ao croquete e ao sumo de laranja natural, mas que nem um vlookup conseguem fazer no Excel sem a ajuda da estagiária com ar colegial que anda sempre de saias de Março a Outubro. A estagiária pensa que está a ganhar confiança dele, sem suspeitar que ele não manda nada naquela bosta de empresa e que, de qualquer forma, jamais irá mexer um dedo por alguma coisa que não seja o seu bem particular, sendo o seu intento embebedá-la numa 6ªfeira à tarde após o trabalho para comê-la no aperto do seu Porsche que o pai lhe deu, a ela e às amigas todas boas que ela tem, se possível em simultâneo, e que ela vai para a rua mal acabe o estágio. Mas deixá-los acreditar na beleza desta vida.

Para mim, foi sempre claro que ele era o Príncipe William chapado e até me pareceu irónico tê-lo encontrado no metro, que é um túnel subterrâneo, uma espécie de “reenactment” do local onde a sua mãe fenecera. “Sua”, do William verdadeiro, claro. Guardei esta evidência comigo até ao dia em que vejo na TV, com incontida perplexidade, que tinha sido aquele o tipo escolhido como o representante português num concurso internacional de sósias. Por muito absurdo que possa parecer, é mesmo verdade, o que me levou a concluir que a realidade supera muitas vezes a ficção. Não me recordo se era um concurso apenas aberto aos sósias reais ou aos sósias em geral, mas isso não interessa muito. Sem margem para dúvidas: era ele. Um português very middle-class, cópia da soon-to-be majesty. Convenhamos que não será assim tão fantástico: o William podia muito bem passar por um daqueles bifes que fritam sob o sol de Albufeira até se parecerem com um camarão embriagado. Não há nele nenhum indício físico que o distinga dum hooligan qualquer a cantar de braços esticados em frente a um pub. Nem nenhuma realeza se distingue fisicamente dum comum mortal, para sermos justos. A Branca de Neve, que era muito mais bonita que tudo ao seu redor, não conta. Apesar de tudo, senti-me bastante validado na minha perspicácia e pensei “que raio de sociedade é esta que avalia sósias?”, e não me refiro à “sociedade” no geral nem a nenhuma conspiração cósmica, mas àquela misteriosa organização que o indicou como representante português. Eu gostava de pertencer a tão nobre instituição. Julgo que poderia ser uma mais-valia. E que poderia receber algum respeito dos meus pares, o que é óptimo para o ego. Porém, como encontrá-la? Quem é esta gente? E se forem uma derivação da maçonaria? Maçonaria: gente de gabarito social incontestável, muito ensimesmada e com grandes planos no papel para mudar a sociedade, a sociedade em geral e não esta organização em particular. Tenho asco para com esses tipos. Os pedreiros são credores do meu respeito profissional, agora quando se arrogam em pedreiros-livres, vestem aventais, reúnem-se em lojas e andam lá com compassos e rituais de iniciação e nunca saem do armário onde gostam de se confinar, então já os reprovo. Repudio seitas de toda a espécie e quanto mais arrogantes, maior o meu desdém. Que se fodam os maçons. Andam a foder isto tudo há anos e anos só para manterem intocável o seu estatuto e o dos amigos, mas há-de chegar a vez deles serem encavados sem misericórdia, espero que com um massivo lastro de consanguinidade ou qualquer outra coisa que os faça parecer super-mongolóides. Perpetuam o amiguismo aparentemente secreto, o compadrio de grandes proporções e definem-se a si mesmos como seres superiores aos demais, reservando o direito de admissão. São perigosos e influentes, uma espécie de lobby gay mais antigo e ainda mais apaneleirado nos seus tiques. Por isso não, se esta organização for assim, dispenso e prefiro ficar aqui com um bloguezito que ninguém lê.

Não deu para perceber muito sobre o sósia do Príncipe William. Parecia gente “normal”. Não se esqueçam das aspas ali atrás. Não tem uma mulher de apelido Middleton, ela nem sequer é tão bonita quanto imaginamos que uma princesa seja, mas pelo menos ela não deve ser feita de porcelana nem tem paparazzi a devassar-lhe a vida. E se calhar passa muito a ferro, o que é um factor muito positivo numa mulher. Presumo que preserve o seu filho das más influências, inscrevendo-o numa escola de desporto para aproveitar os seus tempos cada vez menos livres, que ande de metro como afirmação dum paradigma de sustentabilidade ambiental, mas também porque é mais barato, dado que não tem estacionamento livre ao lado da empresa; que seja um quadro médio ou superior duma empresa de média ou grande dimensão, onde é tipo que fica lá pelo meio dos organigramas e sabe dalgumas coisitas giras, nada de especial, e actualiza o seu perfil nas redes sociais. Até no LinkedIn, onde escolheu para ilustrar o seu perfil uma foto sorridente, de fato de gravata, mas não num plano muito aproximado para não dar uma impressão muito imediata do seu rosto, que isto de ser sósia duma majestade também chateia e pode levar a que quem procura por um determinado perfil seja iludido pela sua aparência inacessível, com isso diminuindo a possibilidade de, quem sabe?, ser convidado para ser o responsável máximo pelo desenho duma app para Apple (ou Eipple, como dizem os plebeus) e Android de couratos e bifanas gourmet duma cadeia familiar em ascensão, onde se acumulam pontos e há espaço para deixar comentários e sugestões de melhoria e vêem-se porquinhos a dançar todos contentes, entre outras porcarias que ninguém liga e que acabam por drenar a memória do smartphone. Seria uma oportunidade única, mas nunca ninguém iria convidar um Príncipe que só a custo aprendeu a estrelar um ovo para esta fabulosa função. A sua opção faz sentido. Os sósias também têm direito à sua vida própria e a seguir os seus sonhos.

09 junho 2016

Actriz Francesa

Tenho de reparar em quem está a bafejar atrás de mim. Estou preso num transporte lotado e há alguém que me exala um bafo aquecido pela retaguarda. Até me levanta os cabelos da nuca. Faz-me impressão. Os calores não requisitados dos outros acicatam os meus próprios calores. Costuma ser gente suja e de entranhas apodrecidas, com doenças respiratórias contraídas através de vidas miseráveis e com o auxílio de genes de qualidade inferior. É sempre assim. A gente gira não resfolega, é subtil na filtragem do ar. E, ainda por cima, toca-me várias vezes, meio de raspão, à laia de quem está no Jamaica só a curtir o som. Nesse contexto ainda passa, mas desta vez, como estou sóbrio, é simplesmente repugnante. Os outros utentes estão sempre imundos, sei lá por onde andaram. Pessimista como sempre, imagino um ogre repulsivo a roçar-se em mim, com ares de estuprador. Os velhos? Do mais nojento que há. As gajas? As novas e bonitas? As únicas que se escapam. A minha única esperança. Tenho de confirmar quem é esse ser arfante. Mas a lotaria nunca sai e não se confirmou esse caso, como suspeitava. Não era nenhuma gaja nova e bonita, era um ser masculino e feio, como os outros todos. Um ogrezito anónimo, vá lá. Tal como eu, porém numa versão ainda mais decadente. Contive o meu asco até o espaço finalmente clarear. Não era ela, numa rara oportunidade de estar perto dela e poder culpar as circunstâncias desse acaso. Uma lástima.

Acho que ela nunca recuperou dum grande desgosto. Calculo que amoroso. Tudo nela transpira dolência. Desde os cabelos que pendem melancólicos pelos ombros, passando pelo olhar misterioso que tanto explode radiante duma euforia momentânea como se distancia num silêncio inquebrantável, passando pelos movimentos delicados que quase pedem licença ao cérebro. Umas unhas de manicura, uma pele lisa com um aroma limpo que lhe perpassa os poros, sugando as atenções para ela à sua passagem. E depois toda aquela aura de tragédia consumada suspensa sobre ela, como um halo invisível de decepção a brilhar por sobre aquele corpo bonito, maneirinho, torneado apenas o quanto baste. Possui um charme natural que julgo que não desconfia possuir. Das poucas vezes que a vi sorrir, gostei. Era um sorriso lavado, sincero, com os dentes alinhados e cuidados. Fazia todo o rosto sorrir ao mesmo tempo. Dava gosto. É pena ela não sorrir mais. Talvez não dê para mais, talvez ninguém perceba o seu sentido de humor. Não sei de nada. Apenas suponho. Não me chego muito perto. Penso que poderia perturbar o seu sossego maldito. Não tenho tanto despudor. Problema meu.

Ela faz-me lembrar uma actriz francesa. Não a Amèlie Poulain, nem aquelas frou-frous com franjas irritantes que incandescem o feminismo. Isso é tudo treta. Só mesmo as gajas para lhes acharem modelos de virtude, naquele cinismo tão feminino: eu gosto dela apenas por ela ser mais frustrada que eu ou por me ser absolutamente distante. É assim que elas funcionam, não passam sem elogios desmedidos que fedem a falsidade e são genericamente motivadas por intenções mais ou menos subliminares. As gajas até podem admitir que admiram uma modelo invejada pelo mundo, mas lá no fundo invejam-nas ainda mais que o mundo. Ela faz-me lembrar é aquelas tipas que entram em filmes obscuros e que têm uma grande propensão para se despir e fazer sexo, mesmo, e especialmente, nas situações mais inesperadas. Como se a presumida dor que lhes consome a alma apenas pudesse ser combatida sem roupa. Como se a roupa, mesmo a mais larga, funcionasse como um colete-de-forças do espírito. Despem-se porque se querem libertar, porque querem provocar, porque sim, porque lhes sabe bem. A nudez é uma arte, uma casualidade trivial, nunca uma obscenidade para esta gente. Está-lhes no sangue. E se ela me parece francesa é porque associo as francesas a esse comportamento tão desprendido e simultaneamente impregnado de libido, sem nunca descurar a classe que separa o bom gosto da rameirice. As nórdicas também parecem ser muito lestas a despir-se, são louras e muito abertas em vários sentidos, mas há um “je ne sais quoi” nas francesas que se auto-explica, porque “je ne sais quoi” é uma expressão francesa. É certamente preconceito, mas ela parece que ouve “Je t’aime… Moi Non Plus” em loop e, claro, nua, na sua ampla cadeira de verga e com os cortinados alvos a esvoaçar na brisa estival que entra pelas suas largas janelas num quarto desarrumado, polvilhado por livros de alfarrabista e fotografias artísticas a preto-e-branco espalhadas no soalho poeirento, enquanto perscruta o ambiente onde circula um ténue fumo de cigarrilha carregando uma tristeza indecifrável. Um misto de Emmanuelle, Eva Green naquele filme em que vão para o ménage numa banheira e Jane Birkin, que não era francesa mas encaixava que nem uma luva nesse imaginário tão Maio de ’68. Sim, ela devia entrar numa dessas séries de época. E sim, só os franceses descreveriam uma orgia com a subtileza fonética de “ménage”.

Ninguém sabe ao certo quando foi o primeiro dia do resto da sua vida. O momento da viragem. Especulamos que dantes ela seria uma fonte de alegria, por causa das feições jovens e da força do seu raro sorriso, que hoje foi transformada num poço de angústia. Deve ter sido forte, muito forte. É o que nos diz o mutismo arrastado do seu olhar. E as pessoas à volta, que tanto se confundem com amigos, gracejam, brincam, actuam com a normalidade possível para lhe arrancar das trevas onde se afundou. E ela esforça-se um pouco, sorri com uma notável condescendência, mas é temporário. A amargura não tarda em reclamá-la de volta e ela, prestimosa, entrega-se com uma beleza cruel aos seus braços. A tristeza é muito bonita para quem está sentado numa poltrona a contemplá-la. A dor dos outros, quando bem esgalhada, pode ser das melhores coisas a que temos o prazer sórdido de assistir. Quase que queremos ser assim, tão estilisticamente abatidos. No caso dela, é mesmo um espectáculo digno de ovação prolongada. E ela sempre a olhar para um ponto não identificado no horizonte, suspirando resignação, olhos como os daqueles cãezinhos fofos que parecem ter nascido tristes, chega a ser comovente. Ela nunca mais se refez. Hoje ela apenas tolera. Nunca demonstra um entusiasmo sustentado, todos sabemos que ela apenas vem à tona por breves instantes antes da maré da taciturnidade a levar de volta. Hoje ela já não acredita nem se apaixona; já não derrama lágrimas nem sente raiva. Ela talvez já não sinta de todo. Apagaram-lhe a chama do coração com um feroz extintor de desilusão. Onde dantes poderiam brotar pujantes emoções, hoje é um baldio corrido a herbicida. Alguém lhe matou o calor e a ilusão. Hoje ela é praticamente um autómato. Um lindo robot de pele e osso, tendões e sangue, mas um ser que já não irá sentir uma emoção maior do que a frustração que um dia lhe vassourou de cima a baixo.

Talvez ela nem se dê ao trabalho de perceber que, apesar de tudo, ela move gente à sua volta. Gente incauta que, na sua flagrante ingenuidade, convence-se que será a gente certa para lhe retornar o viço que lhe deixaram roubar prematuramente. Eles bem tentam, os tolos, com os seus truques, prendas, piadas, partilhas nas redes sociais e selfies patetas, mas está tudo plasmado naqueles olhos ausentes e na sua expressão moribunda, por muito belo que seja o cenário: quem lhe destruiu deixou cicatrizes tão profundas que existem poucas hipóteses de restituição. Não há volta a dar nas fatalidades. É mesmo como aquelas francesas dos filmes que fazem as maravilhas dos críticos que estão num estado de permanente inquietação e desespero. “Femmes fatales” que vêm em pacotes giríssimos que ninguém sabe ao certo como abrir. Gajas impenetráveis na sua essência, autênticas felinas nas suas oscilações humorísticas, por muito que se dêem ao sexo. O sexo é apenas um exercício automático. Um orgasmo é sempre um orgasmo, mas isso não quer dizer nada para além do momento do clímax. Ela até pode gemer, mas será apenas uma reacção física, sem correspondência espiritual. Porque até no mais firme acto sexual ela terá a cabeça nas nuvens, naquela cadeira de verga soprada pelo vento na sala vazia, talvez suspirando por aquele velho livro de folhas amareladas que acumula poeira na penumbra do soalho, revisitando mentalmente um passado que jamais regressará e coleccionando presentes insossos, esquecíveis, para consumo imediato. O futuro nem se pensa. Nunca está com quem quer, como quer e, se algum dia estiver, estará tão vacinada pela tristeza que não irá perceber essa fortuna. Ela tornou-se triste, distante, por querer ter paz. Foi a sua defesa. Percorre um longo caminho com sonhos idílicos tornados pesadelos, que lhe formam um corredor estreito donde não consegue escapar e que lhe tentam pregar rasteiras e dar-lhe com as trombas na dura realidade. Agora só quer mesmo paz, fugir sem saber como da viela por onde a sua vida se enfiou. Isso já não é coisa pouca.


Não era ela no transporte, mas havia lá uma mulher que é a versão envelhecida da Karen Lancaume (existem outras versões do seu nome). Isto é, significativamente mais preenchida a nível corporal, com uns lábios notoriamente mais finos, olhares perceptivelmente menos lascivos e defendidos por uns óculos de hastes coloridas, no global bem menos sensual, mas há lá uns traços evidentes de semelhança e, quem sabe?, com menos uns 20 anos até seria “bem boa” – há sempre este “wishful thinking” para com as mulheres mais velhas. A Karen Lancaume é a tipa da foto e é uma ex-actriz pornográfica. Francesa, obviamente, e com uma existência trágica. Google it. O certo é que ela também é uma actriz francesa, embora menos dada a crónicas majestosas dos críticos de cinema nas publicações sofisticadas, que não costumam poupar encómios à cinematografia francesa mas não a esta indústria em particular… pelo menos em público. Porém, Karen não deixou de ser uma actriz com muitos méritos. Vi algumas cenas e ela ajeitava-se bem dentro do género. Dos movimentos mais emblemáticos, registe-se a forma como dava o cu, como as francesas costumam dar, em cavalgadas multipessoais que deram boas cenas à história do cinema pornográfico, com lingerie cuidada, cenários luxuosos e os característicos “nham-nham-nhams” balbuciados em gaulês, que soam bem mais provocantes que o rude “fuck me in the ass, baby” proferido em tom de ameaça redneck americana numa roulotte. A Karen possuía, lá está, um “je-ne-sais-quoi” que as outras não tinham. Não sei se pela tez da pele, pelos olhares insidiosos, pelo nariz afiado ou pelos lábios polposos, o certo é que a Karen costumava roubar as cenas de sexo onde participava. Não tinha implantes ou tatuagens, o que era comum nos anos 90, e transparecia uma naturalidade excitante que não abundava. Parecia mesmo que gostava do que fazia; chama-se a isto profissionalismo, que é tanto melhor quanto menos dermos por ele. Tinha o seu exotismo, sim, e a sua elegância, também, o que não era fácil de conseguir, mesmo para uma francesa. Os franceses estão convencidos que são mais sensuais que o resto do mundo, quase por decreto histórico. Recordemo-nos que os franceses, até quando fazem revoluções, escolhem a imagem duma mulher de mamas ao léu para liderar a turba. E a Karen deu o seu contributo como pôde. Eu estou-lhe reconhecido. Já esta sua sósia madura é apenas mais uma utente que faz o que pode para passar o seu tempo durante a viagem e uma pessoa que não fará a mínima ideia de quem me faz lembrar. Melhor assim, suponho, que também deveria ser embaraçoso explicar-lhe. Mesmo naqueles minutos que se assemelham a horas de tédio enlatado e em que qualquer distracção, até a mais absurda, é bem-vinda.