Até queria ter a vontade de meter
a cruz nestes. Mas não consigo. Mesmo que os outros possuam o odor
persistente a compadrio, debaixo dos holofotes e da conversa redonda, que me
enfastia de sobremaneira. O tom e timbre do discurso carrega inflexões e
cadências delicodoces, o nós tão bom e o eles tão mau, aquele paternalismo meloso da incumbência, com os olhos a acompanharem
cada recanto da sala, percorrendo-a num ritmo de encantador de serpentes que me
deixa mais que indiferente, deixa-me a quilómetros de distância. Eu não quero
ser visto por esses olhos falsos. Afasto-me. Eles não podem ser o menos mau e não podemos ir apenas pela contenção de perdas. Ainda assim, nestes não consigo. Talvez
se incluísse outra gente, esta não. Esta gente traz a memória de tempos sombrios,
que só não tomaram proporções maiores e mais graves porque ainda estamos todos
meio anestesiados de anos de complacência. Noutro século, as coisas teriam
descambado para eventos mais tumultuosos. É percorrer a história para perceber
que nem sempre fomos tão aparentemente brandos. E para além desta incapacidade
em revoltar-se, que se tenta explicar pelo passado, neste século de vigilância
social toda a gente tem medo de dar um passo mais brusco que a comprometa. Esta gente tem um cunho sinistro que impede qualquer sustento de empatia. Ficou
associada indelevelmente a momentos de instabilidade. Há ali individualidades
que assustam com o seu sorriso e fazem tremer com a sua simples presença, não
propriamente pelos melhores motivos. Não foi boa ideia recuperá-los, não foram bons tempos. Os anteriores já
não tinham sido e, muito provavelmente, é aqui que se encontra a raiz deste
desgosto. Também aqui houve culpados, como antes e outrora a aqueloutros, se
formos mesmo até ao fim somos capazes de desembocar no Afonso Henriques. Enfim,
se formos minimamente justos, haverá um limite para o qual a desculpa já não é
admissível. Portanto, aqueles que começaram de forma mais evidente este caminho
de desleixo institucional generalizado e estes que supostamente vieram corrigir
com a destreza dum elefante num nenúfar são ambos co-responsáveis por uma
página amarela numa história com algumas nódoas. Foi uma década inteira jogada
ao lixo. Fomos depauperados nos bolsos e na alma. Acordei muitas vezes durante
a noite com o teu sorriso falso cravado na minha cabeça. Demasiadas vezes numa
inquietude que não resolvo. E eles estavam lá nesse tempo em que a distância
cresceu e os ventos tornaram-se hostis. Estiveram mal na pior altura. Eles são aquelas fotografias que nos
deixam um gosto acre na boca, uma fina azia no estômago, uma bofetada na nossa
boa-disposição quando visitamos o álbum no baú e que nos relembram de quão cruel
e trágica pode ser a nostalgia. A nostalgia nem sempre é assim tão doce como
propagandeiam. É mais uma sereia que nos abocanha à laia duma fêmea
louva-a-deus, aliás. O pó da nostalgia é viciante como o pó da cocaína e
fere-nos o âmago como o pó dos asbestos. Distorce-nos completamente as
percepções da realidade, faz-nos viver num sonho irreal, de desejar o
irrepetível, de nos deter em contemplações espúrias. Entretanto o presente esfuma-se e o futuro, essa abstracção que é o sorvedouro das nossas esperanças, desfaz-se pela torrente natural do tempo. O que já foi não volta a
ser, nunca da mesma forma. O que vale para o país vale para o indivíduo. Que se
lixe o fado. Que porcaria de som, sempre a finalizar no mesmo acorde, sempre a bosta
da saudade, a patetice de glorificar a perda, a resignação como uma virtude. Não
vamos a lado nenhum. Venha quem vier. O que se quer é mais uma justificação
para a nossa incompetência, incapacidade e infelicidade. É sempre tão mais fácil
varrer os nossos verdadeiros problemas respondendo a perguntas com mais
perguntas, fingindo um espírito crítico que nunca se aplica quando e onde se deve, ou
seguir a manada sem referências que se uniformiza numa cultura mcdonaldizada. Não
sei quem se seguirá. Parece tudo plausível. Até pode ser alguém gerado
por inteligência artificial. É candidata à palavra do ano, artificial. Dou por
mim a pensar que isto pode ser um filme e posso ter tomado a cápsula errada.
Dobro o papel tal e qual ele me foi entregue e dissolvo a minha voz numa caixa
escura que não me ouve. Estendo as metáforas no sentido de conferir alguma razão ao meu sentir. Sinto-me civicamente completo, mas individualmente
incompleto como no dia anterior. É uma
pequeníssima vitória moral.
2 comentários:
❤️
Espero que esteja tudo bem contigo 😘🤘
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