10 março 2024

Em Branco

 

Até queria ter a vontade de meter a cruz nestes. Mas não consigo. Mesmo que os outros possuam o odor persistente a compadrio, debaixo dos holofotes e da conversa redonda, que me enfastia de sobremaneira. O tom e timbre do discurso carrega inflexões e cadências delicodoces, o nós tão bom e o eles tão mau, aquele paternalismo meloso da incumbência, com os olhos a acompanharem cada recanto da sala, percorrendo-a num ritmo de encantador de serpentes que me deixa mais que indiferente, deixa-me a quilómetros de distância. Eu não quero ser visto por esses olhos falsos. Afasto-me. Eles não podem ser o menos mau e não podemos ir apenas pela contenção de perdas. Ainda assim, nestes não consigo. Talvez se incluísse outra gente, esta não. Esta gente traz a memória de tempos sombrios, que só não tomaram proporções maiores e mais graves porque ainda estamos todos meio anestesiados de anos de complacência. Noutro século, as coisas teriam descambado para eventos mais tumultuosos. É percorrer a história para perceber que nem sempre fomos tão aparentemente brandos. E para além desta incapacidade em revoltar-se, que se tenta explicar pelo passado, neste século de vigilância social toda a gente tem medo de dar um passo mais brusco que a comprometa. Esta gente tem um cunho sinistro que impede qualquer sustento de empatia. Ficou associada indelevelmente a momentos de instabilidade. Há ali individualidades que assustam com o seu sorriso e fazem tremer com a sua simples presença, não propriamente pelos melhores motivos. Não foi boa ideia recuperá-los, não foram bons tempos. Os anteriores já não tinham sido e, muito provavelmente, é aqui que se encontra a raiz deste desgosto. Também aqui houve culpados, como antes e outrora a aqueloutros, se formos mesmo até ao fim somos capazes de desembocar no Afonso Henriques. Enfim, se formos minimamente justos, haverá um limite para o qual a desculpa já não é admissível. Portanto, aqueles que começaram de forma mais evidente este caminho de desleixo institucional generalizado e estes que supostamente vieram corrigir com a destreza dum elefante num nenúfar são ambos co-responsáveis por uma página amarela numa história com algumas nódoas. Foi uma década inteira jogada ao lixo. Fomos depauperados nos bolsos e na alma. Acordei muitas vezes durante a noite com o teu sorriso falso cravado na minha cabeça. Demasiadas vezes numa inquietude que não resolvo. E eles estavam lá nesse tempo em que a distância cresceu e os ventos tornaram-se hostis. Estiveram mal na pior altura. Eles são aquelas fotografias que nos deixam um gosto acre na boca, uma fina azia no estômago, uma bofetada na nossa boa-disposição quando visitamos o álbum no baú e que nos relembram de quão cruel e trágica pode ser a nostalgia. A nostalgia nem sempre é assim tão doce como propagandeiam. É mais uma sereia que nos abocanha à laia duma fêmea louva-a-deus, aliás. O pó da nostalgia é viciante como o pó da cocaína e fere-nos o âmago como o pó dos asbestos. Distorce-nos completamente as percepções da realidade, faz-nos viver num sonho irreal, de desejar o irrepetível, de nos deter em contemplações espúrias. Entretanto o presente esfuma-se e o futuro, essa abstracção que é o sorvedouro das nossas esperanças, desfaz-se pela torrente natural do tempo. O que já foi não volta a ser, nunca da mesma forma. O que vale para o país vale para o indivíduo. Que se lixe o fado. Que porcaria de som, sempre a finalizar no mesmo acorde, sempre a bosta da saudade, a patetice de glorificar a perda, a resignação como uma virtude. Não vamos a lado nenhum. Venha quem vier. O que se quer é mais uma justificação para a nossa incompetência, incapacidade e infelicidade. É sempre tão mais fácil varrer os nossos verdadeiros problemas respondendo a perguntas com mais perguntas, fingindo um espírito crítico que nunca se aplica quando e onde se deve, ou seguir a manada sem referências que se uniformiza numa cultura mcdonaldizada. Não sei quem se seguirá. Parece tudo plausível. Até pode ser alguém gerado por inteligência artificial. É candidata à palavra do ano, artificial. Dou por mim a pensar que isto pode ser um filme e posso ter tomado a cápsula errada. Dobro o papel tal e qual ele me foi entregue e dissolvo a minha voz numa caixa escura que não me ouve. Estendo as metáforas no sentido de conferir alguma razão ao meu sentir. Sinto-me civicamente completo, mas individualmente incompleto como no dia anterior.  É uma pequeníssima vitória moral.

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