21 novembro 2019

Cipreste


Eu morri num dia de chuva. O meu funeral foi numa tarde chuvosa.



Havia quem dissesse “já fazia falta uma chuvinha assim” e havia quem, imbuído dum espírito literário, assinalasse o poético da situação. A pergunta que mais se repetia era “como ele morreu?”. Bem, eu morri a viver. Já tinha vivido muitos tempos mortos, mas isto não foi bem a mesma coisa. Desta vez eu morri mesmo. Posso morrer de várias formas. Como lançar o dado e calhar na casa do Inferno: “ena pá, morri!”, exclamei. E a gente à minha volta, “pois foi!”, olhando meio perplexa para mim. Afinal, morrera e ainda há instantes estava ali a disputar a Glória com eles. Eles, lá no fundo, ficaram muito aliviados por não terem sido eles a quem o azar bateu à porta. Nem sequer houve muita consternação. Isto não passa de um jogo, não é? Entre uma palmadinha nas minhas costas a pender para o rigor mortis, desvalorizaram a situação, “ah, a gente volta a jogar outra vez, deixa estar isso…”. “Não”, expliquei-lhes, “desta vez eu morri mesmo. Tive um azar do caraças. Isto acabou de vez”. E eles lá se aperceberam da gravidade. Houve expressões faciais algo consternadas por momentos, envoltas num silêncio encavacado. Mas depois alguém chegou finalmente à Glória e logo as atenções que estavam concentradas no meu infortúnio de súbito divergiram para nunca mais convergirem. Se a vida foi efémera, a minha recordação será ainda mais. Daqui a pouco tempo, sobrepor-se-á pó fresco sobre o meu pó e todos formaremos um monte de pó indistinguível que albergará insectos e vermes, será urinado por crianças e idosos e dissipado pelo vento, tratado como entulho e apagado duma memória com muito poucos bytes disponíveis para albergar minudências como eu.



Os bytes são preciosos, são a água que permite e alimenta a nossa existência nestes tempos em que passamos os dias com a cabeça na cloud. O que é muito diferente de andar com a cabeça nas nuvens mas por vezes parece igual. Neste sentido, também posso ter morrido duma forma modernaça. Jogando um daqueles jogos de consolas. Online, com putos e nerds não tão jovens de todo o mundo, numa rede de soldados desconhecidos sem direito a estátua. A morte veio pelo ecrã. Anunciada com um garrafal “GAME OVER” em tons vermelhos e desta vez sem direito a continuação. As vidas infinitas eram um mito. Devia ter sabido disto, não era um subscritor e fiz um download ilegal. Portanto, foi um castigo merecido pela minha veia de pirata e pela minha imperícia em manusear a arma num teatro de guerra urbana em 3D. Dizem que foi o “user39240675” a matar-me à traição, o “polarbear_345” jura que foi a “urbanWWWitch” que me surpreendeu, o “Yevgeni8SSok” escreveu no chat que “he blown his grenade”, mas a maioria nem notou. Pensavam que eu estaria lá na noite seguinte, mas eu faleci sobre o tapete da sala e não voltei a ligar-me à rede. Passaram à frente. O “no_nick_6969696969” foi alinhado para a equipa e revelou-se melhor que eu. O meu perfil, porém, eternizou-se na rede. De quando em vez, umas mensagens pingam na minha área, oferecendo serviços, apresentando novidades ou convidando-me de volta para a minha vida guerreira. Revelei-lhes, “I’m dead, folks”, mas as reacções foram díspares. Houve quem soltasse um “lol”, certamente um fã de humor negro; houve quem digitasse “wtf?” e depois muitos despejaram bonequinhos amarelos com faces diversificadas, alguns mexiam-se mas outros não, eram estáticos como eu ficara. O meu cunho ficou para sempre marcado na rede. Mesmo morto, valho bytes. Valho algum cêntimo de bitcoin para alguém ou alguma coisa. Mesmo que ninguém queira saber da minha cara, dos meus desejos ou dos meus medos, sabem que ainda ocupo o mesmo espaço dos vivos. Um espaçozinho virtual, vá, proporcionalmente mais exíguo que a campa onde fisicamente o meu corpo agora apodrece.



Ou simplesmente morri porque assim teve de ser. Por causa de alguma anomalia física, um acidente infeliz ou porque assim quis. Na verdade, morremos todos os dias um bocadinho. Eu simplesmente adiantei etapas ou apenas deixei o prazo expirar até algum órgão vital falhar. Agora parecem-me exagerados os muitos momentos em que desejei que este dia viesse, consumido pelas angústias e desilusões dos muitos dias em que chafurdei no meu próprio desespero. Se calhar não valia a pena a preocupação. Provavelmente, não aproveitei o que devia. Havia sempre tempo a mais e agora já não há tempo para mais. Não foi por falta de aviso, mas havia sempre aquela esperança parva no amanhã. Um amanhã radioso que tardava a aparecer. Agora não há mais dados para girar ou créditos suplementares. Nem sequer há a hipótese de me arrepender do desperdício, de me libertar dos pequenos ódios que me depauperaram as energias, de cumprir com velhas promessas ou de realizar os inevitáveis sonhos adiados. Já não se pode adiar mais. É fisicamente impossível e não me passa nada pela cabeça, nem sequer um leve zumbido indicando que a transmissão acabou. Entre mim e uma pedra tosca não há grandes diferenças. Daqui a pouco, a decomposição trará um forte odor. Eu tenho de ser despachado e enclausurado num lugar longe da vista para sempre. E longe da vista é longe do coração. Vou desvanecer das memórias de toda a gente.



Perguntam-me, “e como é a morte?”. É como entrar num sono eterno. Nem damos conta. Sabem aquelas coisas dos anjos ? É treta. Quando fechas os olhos vês uma luz forte que te encandeia de tal forma que tudo fica escuro. Só isso. É tudo vazio. É a definição do vazio. E eu que tanto queria revisitar os meus adorados animais de estimação no além, de novo joviais a pularem com alegria de nuvem em nuvem perante a bonomia de Gabriel e Deus, de sentir a frescura terna do seu olhar, que queria abraçar os meus pais de novo, roído de saudades e com eles reviver a nostalgia dos bons velhos tempos, de me levarem ao colo e de me protegerem enquanto crescia, acolher os meus amigos que ficaram mais uns tempos na vida terrena e depois rir-me à gargalhada num espírito de união e camaradagem que só com eles atingi, mas aqui não há vida. Não há nada. Não há ninguém. Venderam-me uma ideia errada. Não sei para onde eles foram. Quando eles foram, foram para outro lado qualquer. O além é um buraco negro, um vácuo perfeito. Não há céu nem inferno, tampouco purgatório ou paraíso, nada. Nem prémios para os bons ou castigos para os maus. É tudo assim-assim, de forma severa. Livre de quaisquer amarras e ao mesmo tempo preso num lugar inóspito, de tão desolado. Sem doenças mas também sem paixões. Não sentes nada, não vês nada, cessas de ser. Tão só isto. Não há nada de formidável nem miraculoso.



Eu sei, é uma desilusão. As pessoas esperavam mais. Os árabes esperavam virgens, coitados. Os cristãos esperavam a redenção, pobrezitos. Os hindus esperariam o quê?, uma ovelha mágica de 8 patas e quatro braços? E os budistas, um mar de incenso e silêncio? Bem, estes se calhar não irão estranhar muito as coisas. Enquanto o meu caixão descia para uma cova enlameada, uma ligeira brisa apagou as trémulas velas e dobrou as flores murchas e as de plástico, mas os ciprestes permaneceram estáticos na sua frondosidade elegante. Fotos envelhecidas observavam das campas contíguas e bolorentas o seu novo companheiro. O coveiro foi tão profissional quanto podia ser, indiferente a tudo. Umas últimas lágrimas caíram das faces dos poucos presentes e um raminho de crisântemos foi atirado para cima de mim, com uma dedicatória para “descansar em paz”. Como se pudesse ser doutra forma. “Ainda tão novo...”. De facto, sou um cadáver enxuto. Os organismos sob a terra irão deliciar-se comigo, até com o fato que me vestiram. Era uma pena cremarem um defunto assim tão belo. E também era mais caro. Admito que tenham usado um fato velho para entrar decentemente nesta etapa, senão seria um gasto totalmente inútil. Seria literalmente dinheiro atirado para um poço sem fundo. A gente não diz que a morte chega tarde. Passamos a vida atrasados para tudo e depois a morte chega sempre mais cedo. E este horário não pode ser ignorado.



Qual o sentido disto tudo, afinal? Viver serve para quê, afinal?  Não sei, ninguém sabe, ninguém pode saber e de qualquer forma isto já não é para mim. Estas perguntas são aborrecidas e as respostas nunca convencem. A minha viagem termina aqui. Obrigado por tudo e desculpem qualquer coisinha. Se vos fiz alguma coisa mal foi por pensar que de alguma forma isso seria bom para a minha vida. Acontece a todos. Mas já não dou mais para o peditório das chatices. Fica para vocês que estão aí à chuva e que esperam que o sol venha em breve. A dúvida é agora um exclusivo vosso.