20 dezembro 2011

Leonid Brezhnev

Eu conheço, de vista, um tipo que é a versão revista e aumentada do Leonid Brezhnev – e pronto, não estabeleço apenas relações com gente ligada à música e abro o leque também a políticos. E logo internacionais. E logo dos tempos da guerra fria. Dum tempo em que havia a URSS, a RDA, a PGA e o IVA – esperem lá, que este ainda existe e está a ser reforçado. Devo assinalar que a expressão “ganda Brezhnev!”, para enfatizar o frio que se sente, origina deste líder russo, já que sabemos que na Rússia faz frio e o Brezhnev protagonizou alguns dos momentos mais frios da fria Rússia durante a guerra fria – mas não posso garantir a veracidade desta afirmação. Daqui a uns meses ou anos, virão as referências aos actores, aos jogadores (mas talvez não de futebol, que para isso reservo-me para outros fóruns), aos escritores e, quem sabe, até aos objectos inanimados ou ficcionais. Por exemplo, há um tipo que é o corpo (e a cara, mas só um bocadinho) do Bibendum da Michelin e algumas gajas que parecem botas da tropa. A seu tempo.
O gajo nem sequer é da minha terra, mas vejo-o amiúde. E porquê Leonid Brezhnev? Porque o gajo é um comunista do caraças e cultiva um evidente culto da (sua) personalidade, envergando uma camisola vermelha com a sua própria cara deveras estilizada sobre uma foice e martelo amarelos. E está sempre a trautear “A Internacional” no metro. Mentira. O tipo tem é duas sobrancelhas descomunais.
Palavra. Duas gigantescas e farfalhudas sobrancelhas, quase animalescas. Percorrem toda aquela fronte, da esquerda para a direita, de cima para baixo. Duas sobrancelhas que assustam e que, no entanto, possuem aquela subtileza de não se tocarem – há claramente um espaçozito ali de brancura entre ambos os tufos de cabelo. Se ele corresse os 100 metros, talvez ganhasse no photo finish se se esticasse todo junto à meta para ganhar por um pêlo de sobrancelha. Aquilo é garantia absoluta que nenhum pingo de suor atravessará aquela selva, descendo da testa até aos olhos. O Brezhnev original, embora esforçado, não poderia competir com duas sobrancelhas assim – nem ele quereria, porque isso da competição não é coisa para comunistas. As sobrancelhas do Brezhnev parecem filhos menores e esquálidos daquelas sobrancelhas, como se tivessem penado num gulag siberiano qualquer. Mas estas sobrancelhas são vigorosas, kremlinianas, a fazer jus à monumentalidade do império russo, estendendo-se de lés a lés por dois continentes e abraçando alguns oceanos no processo. São mesmo sobrancelhas colossais, frondosas como uma Amazónia em tempos imemoriais, assertivas como um Tony Ramos elevado à enésima potência, assustadoras como um Rasputin cruzado com um lobisomem. Não tenho muito mais adjectivos. É mesmo daquelas coisas que só vistas.
Não tenho igualmente muito mais para partilhar, é pena. Não conheço a personagem. É um tipo magrinho e talvez quarentão, já denota alguma falta de cabelo que poderia ser facilmente resolvida com um implante das suas pilosidades supra-oculares que fazem Sansão esverdear com inveja e tem um comprimento nasal também acima da média – mas nada que se compare à dimensão das suas sobrancelhas. Podia especular acerca da sua personalidade, mas não quero fazê-lo – seria retirar importância à sua imagem de marca e não estou para grandes invenções. Prefiro apenas assinalar a sua existência e imaginar que, diariamente, nutre aquelas sobrancelhas com loções anti-queda e anti-caspa e que penteia-as religiosamente antes de deitar e ao levantar, num ritual de aproximadamente dez minutos. E vocês dirão, “ah, mas eu também conheço um gajo assim, de grandes sobrancelhas”: NÃO PODEM (a não ser que estejamos a falar da mesma pessoa)! Aquelas sobrancelhas são irrepetíveis e olhem que eu já vi muitas pelos inúmeros sítios que já visitei na minha vida, como a Margem Sul, Santarém e até Pevidém, sem contar que uma vez já dormi em Ayamonte. Não tentem sequer equiparar a este caso.
Pobre Brezhnev… para a História ficou como “o comunista das grandes sobrancelhas”, mas mal sabiam eles que ele é apenas uma proxy; este tipo é que deveria dominar toda a História mundial das sobrancelhas.

16 dezembro 2011

Mão Morta

Havia um velhote lá na terra que era o Mão Morta. Assim mesmo, no singular. Não era remotamente parecido com o Adolfo Luxúria Canibal. Não tinha uma voz espectacularmente grossa. Não tinha sonhos sórdidos, ou pelo menos não aparentava ter. Tinha somente uma mão deficiente, acho que a direita, completamente inútil, totalmente virada para baixo de dedos cerrados, fazendo uma espécie de um ângulo de 90º com o seu antebraço.
Por isso era “o” Mão Morta. Quando passávamos por ele, dizíamos: “então, tudo a rock n’ rollar”? Que nível de chalaça. Cruel, mas com muito nível, a denotar uma sensibilidade excepcional para com o pop/rock português alternativo do dealbar dos anos 90. O velhote, com o seu costumeiro casacão à agricultor alentejano, bengala e boina, boca sem dentes e nariz abatatado e avermelhado pelo álcool, com um certo cuidado estético apesar de tudo, resmungava. Tinha acessos de fúria, o Mão Morta. Por vezes, demorava-se numa amena cavaqueira com o seu amigo imaginário junto à paragem do autocarro, dando-lhe palmadas e sorrindo-lhe cúmplice, mas, três-meia-volta, chateava-se com ele e mandava-o dar uma curva com gestos bruscos – com a mão ainda boa, claro. Não é claro que todo aquele braço onde desembocava a mão deficiente se mexesse de todo. Ninguém sabia ao certo. O certo é que “Braço Morto” não resultava tão bem como “Mão Morta” em termos de alcunha e o Mão Morta nunca foi visto de manga curta, como os velhotes costumam andar, mesmo no pino do Verão – bem abotoadinhos até ao fim e, de preferência, sempre com a mesma camisa.
Charro aqui, charro ali não seria bem a onda dele, mas vodka atestada fazia mais o seu género. Não tanto pela vodka, mas pelo vinho. Vinho a martelo. O Mão Morta tinha o perfil de um consumidor ávido de pacotes de vinho comprados em mercearias impregnadas de ranço e bolor. Ou então bebia fiado na tasca do costume. Aquilo devia ser sempre a bombar, sempre a abrir a noite toda. E tardes e manhãs também; o Mão Morta devia ser dos primeiros clientes matinais daquela tasca na esquina. A tasca era velha, portas de madeiras escarafunchadas abertas de par em par e com a tinta toda lascada, o edifício praticamente em ruínas, a emanar um cheiro a fritos e a adega que nauseava quem por lá passava às oito da manhã. E já com alguns clientes habituais sentados em velhos banquinhos de madeira com o buraquinho no meio – os chamados “mochos” –, com o radiozinho a pilhas em cima do balcão a debitar qualquer coisa em AM e os calendários de gajas louras e mamalhudas com alguns meses ou anos de atraso a sobressair na parede atrás. Depois de picar o ponto na tasca, o Mão Morta deambulava pela terra em monólogos balbuciados e carregados de interjeições imperceptíveis. De humores rápidos, o Mão Morta tanto podia ser um simples velho deficiente e abandonado, penando em silêncio e muito respeitador das liberdades individuais dos outros, como um tipo que se ria sozinho no meio do passeio ou até, como referi acima, extravasando alguns laivos de intempestividade. Neste aspecto, o Vaidoso era muito mais extremista – o Vaidoso era outro bêbado da terra.
O Vaidoso e o Mão Morta competiam em surdina para saber quem era o mais “wasted geezer” da terra. Não me lembro de os ver juntos. Mas enquanto o Mão Morta ainda podia despertar alguma compaixão e tinha os seus momentos de clarividência aparente, o Vaidoso era simplesmente um bêbado profissional e sem nenhuma deficiência física com a qual pudéssemos sentir comiseração. O Vaidoso era todo ele soberba alcoólica, sem pudor nem cura. Era um bêbado comme il faut, com a barba por fazer e andrajoso como os bêbados clássicos são. Andava sempre aos caídos, nunca pronunciou mais que monossílabos, nunca conseguiu abrir totalmente os olhos e passava largas temporadas sem tomar banho. O Vaidoso era um sidekick perfeito e não se ressentia com isso, até porque não devia perceber bem o que se estava a passar à sua volta ou, se percebia, não se importava; mas o Mão Morta tinha sentimentos e revoltava-se. Uma vez convidámo-lo para jogar basquetebol connosco, já que a sua mão indiciava uma técnica ímpar no drible que seria uma mais-valia para a nossa equipa, caso jogássemos basket, claro, e vimos o lado mais irascível do Mão Morta, com recurso à agitação da sua bengala e tudo, tão irascível que passámos umas boas semanas sem passarmos no mesmo lado do passeio, não fosse o diabo tecê-las.
Quando o Vaidoso morreu, toda a gente soube. Era uma parte do folclore da terra que tinha morrido também. Se não se soube logo, depreendeu-se passado pouco tempo, porque deixáramos de o ver nas imediações. As pessoas comentaram, “o Vaidoso já não mora aqui”. O Vaidoso era assim, famoso pela sua desgraça, impossível de passar despercebido. Já quando o Mão Morta esticou o pernil, a reacção não foi tão imediata. Ele abandonou-nos gradualmente. Apenas desconfiámos que alguma coisa teria ocorrido, já que deixámos de o ver nos sítios do costume durante algum tempo, até que alguém nos confirmou que “o Mão Morta já morreu há bué”. Mas nós ainda conservámos alguma esperança. Debalde. Nunca mais o vimos. Nunca soubemos ao certo o que provocara aquela maleita na sua mão, se um acidente de guerra, ou outro acidente qualquer, ou simplesmente malformação; nunca percebemos se houve um outro Mão Morta, limpo e são, antes deste Mão Morta; nunca conheceremos o que fez em concreto na sua passagem por este mundo antes de ser aquele velho errante levemente esquizofrénico. Agora, os restos do Mão Morta devem estar lá para uma campa rasa sem placa de mármore e sem flores no cemitério da terra. A própria tasca já fechou sob o peso da ASAE e com ela a promessa de uma nova fornada de bêbados clássicos na nossa terra. Ficaram apenas as memórias, que é melhor que conseguimos arranjar de graça nesta altura e que não fazem mal ao fígado.