18 outubro 2012

O Menino Chorão

Em bom rigor, o menino que chora não é da minha terra. Isto é, se entendermos a “minha terra” apenas como o meu local de nascimento ou zona de residência. E também não é bem um menino. No fundo, “o menino que chora” é todo um conceito transversal bem arreigado na morfologia psico-social desta nação. O que quer que isso signifique – os sociólogos e psicólogos saberão dar bom uso a esta expressão e louvá-la como uma verdade quase dogmática.
O menino que chora merece toda a nossa atenção. A nossa compaixão. A nossa empatia. Soltaremos um suspirante e comovido “coitado…” sempre que nos referirmos a ele. Será um exemplo, uma metáfora perfeita da vida, a imagem que valerá por ene palavras. Se algum dia sofrermos, que soframos com a dignidade humana do menino que chora. Se algum dia nos revoltarmos, que nos revoltemos com a placidez pacífica do menino que chora. Se algum dia o nosso próprio menino chorar, que chore tão fotogenicamente e num contexto tão apropriado como o menino original que chora.
O menino que chora faz parte do nosso imaginário kitsch. Refiro-me ao quadro que está ali no canto superior esquerdo deste post. De autor desconhecido, é bem provável que um nosso familiar mais velho o tenha em estima semelhante a uma tapeçaria da última ceia de Jesus lá numa parede da sua casa. É, quiçá, o maior exemplo da usurpação da propriedade intelectual – nunca ninguém reconheceu o seu autor, assim como ninguém sabe quem cantarolou o “quem atirou o pau ao gato” pela primeira vez, e nunca ninguém se importou com isso, contrafazendo-o aos montes durante décadas e décadas. Há apenas rumores quanto à proveniência do autor; há quem diga que era um nórdico, há quem diga que era italiano, mas, apesar da apropriação massiva que os lusitanos fizeram da sua obra-prima, não será português. E bem que poderia ter sido. Para fechar este parágrafo, na minha opinião, esse autor – ou a sua família – estará como o próprio menino: a chorar pelos eventuais copyrights perdidos.
Mas os meninos que choram são mais que muitos e, três-meia-volta, lá aparece um e nós enternecemo-nos e usamos essas lágrimas como cimento de uma união passageira entre sentimentalões afectados pela desgraça que se lhes, ou se nos, impendeu. Sim, porque acabamos por tornar aquela tristeza como nossa, como verdadeiros invejosos que não podem ver ninguém a chorar sem que arranjemos em nós mesmos um motivo para chorarmos também. Não há cá reguladores nem entidades governamentais para a liberalização da amargura, mas nós sabemos bem como acabar com o monopólio da angústia.
Vou só elencar situações desportivas a título de exemplo, deixando para o lado as lágrimas dos fados da Amália ou as do Jorge Sampaio, verdadeiros chorões da alma lusitana, bem como todos os programas do Daniel Oliveira.
Comecemos pelo Eusébio: em 1966, foi vê-lo num pranto no Mundial de Inglaterra após a eliminação nas meias-finais. Ele já era um grande jogador, segundo consta; após o choro, tornou-se num ídolo mundial – sim, porque os portugueses também não podem ter a veleidade de possuírem a exclusividade da lamechice, por muito que tentem. E oh se tentam. Depois vieram os anos 70, alguma euforia e rebeldia, a seguir os anos 80, com a felicidade estúpida que os caracterizou, a Europa e os sintetizadores e mais não sei o quê, até que chegámos aos anos 90, da geração rasca e do nascimento de uma certa insatisfação generalizada, bem propícia a cenas trágicas.
Rui Costa lacrimejou quando saiu do Benfica, chorou quando lhes marcou um golo, derramou baba e ranho que nem um perdido quando Marc Batta o expulsou na Alemanha e todos esses choros foram plenamente justificados, todas essas explosões inequívocas de sentimento içaram o Rui Costa a um patamar de humanismo sem precedentes na bola lusa, a qual o facto de ele estar umbilicalmente ligado à mega instituição lusa que é o Benfica ajudou de sobremaneira. Por isso, que ninguém ouse criticar a estatura moral desse Senhor, assim mesmo, com maiúscula, por mais oleoso que esteja o seu cabelo ou por mais difusas que sejam as suas funções actuais no seu clube de sempre. É um anjo na Terra, um Michael Landon mais jovem e atlético, um candidato à canonização.
O novo século chegou e com ele o peso da desilusão por anos de conformismo. Chorar, como quase tudo na era global, massificou-se e banalizou-se. É fácil chorar por tudo e por nada nos dias que correm, mas tudo passa, tudo se esquece em momentos. Vimos o Sá Pinto a chorar quando marcou um golo e apercebemo-nos que estava ali um ser emocional para além do agressor raivoso do seleccionador. Logo os sportinguistas, já inebriados pelo vigor com que Sá corria dentro de campo, o alcandoraram a ícone, sedentos que estavam de um ídolo ruicostiano no seu próprio clube. Mas já não estávamos na era da autenticidade, que foi um valor que perdeu valor; e Sá Pinto continuou a oscilar entre choros, acessos de fúria e momentos de dormência com a volatilidade de uma montanha-russa; quem chorou a seguir foram os próprios sportinguistas, alguns deles com francas debilidades afectivas e com bastante receio de ver cair o seu mais-que-tudo em desgraça, terrificados perante a possibilidade de ficarem órfãos de uma referência que eles próprios construíram apressadamente com uma certa leviandade, levando a que defendessem o Sá quando todos os sinais apontavam no sentido de deixá-lo cair. Um pouco como o amante traído que não consegue esquecer o fogo da paixão que o arrebatou durante breves momentos no passado e que se quer esquecer da porrada que levou de forma a manter a sua sanidade sentimental.
A selecção de rugby, essa, juntou ao choro de copiosas derrotas aos pés de neozelandeses em ritmo de treino uns dotes vocais para arranhar o hino. Apareceram todos agarrados entre si numa cenografia homoerótica que fez as delícias do povo. Pareciam os batalhões portugueses na 1ª Guerra Mundial, autêntica carne para canhão. Tornaram-se heróis. Bebemos todos daquelas lágrimas como se a derrota nos pesasse de facto, como se o rugby fosse coisa que interessasse ao comum português. Porque se eles fossem para lá calmos e serenos e perdessem na mesma queríamos lá saber. Não. Há que perder de forma trágica, há que saber ser mártir. O público valorizará assim uma causa perdida à nascença.
O último exemplo é o de Eduardo. Não o mãos de tesoura, mas o mãos de manteiga. O guarda-redes chorão do Mundial patético da África do Sul. O grau de patetice deste certame para as cores nacionais esteve inversamente correlacionado com as exibições dele – se ele foi o melhor da selecção, é porque pouco se aproveitou. Ou melhor, aproveitou-se, mas não no plano puramente futebolístico: deu para ver que Queiroz foi tramado com uma cabala a valer, daquelas que nós podemos verdadeiramente dizer “isto é uma cabala!” a plenos pulmões e nós aprendemos que o choro ainda pode trazer dividendos e guindar personagens de segundo plano a píncaros pouco expectáveis à partida. Foi o caso do Eduardo, um bom rapaz, humilde e que dispensava cebolas para largar o seu corrimento ocular. Foi logo a correr para o Benfica, o berço do sentimentalismo espúrio nacional, pois claro. Contudo, eu volto a frisar: estamos numa era incaracterística. E por isso, ao fim de pouco tempo, já as lágrimas do Eduardo tinham caído no esquecimento… e o próprio Eduardo também. O Queiroz, por outro lado, preferiu abespinhar-se em vez de chorar, ou pelo menos chorou mas sem recurso a lágrimas, retirando o lado físico da coisa, o que, parecendo que não, conta muito. Resultado: foi expatriado.