27 janeiro 2014

A Bancada da Casa-de-Banho

A bancada do lavatório da casa-de-banho é um lugar mítico para as mulheres. É lá que se mede o grau de sofisticação e aprumo das donas. E é uma medição bastante quantitativa: o que conta é o número de boiões, frascos e estojos que se acumulam por cima da bancada, num festival de marcas e de cores quase sempre desalinhadas. Só elas conseguem ordenar aquele caos, discernir a utilidade daqueles produtos e artefactos e retirar um estranho prazer quando conseguem, apesar de tudo, adicionar um novo creme ou um novo spray para cima da bancada. Cabe sempre mais alguma coisa.

Podiam guardar aquilo tudo num outro compartimento? Podiam, mas não seria a mesma coisa. Primeiro, porque assim estão a dizer-nos sem palavras que toda aquela beleza pela qual nos apaixonámos não é assim tão natural e requer todo um manancial de aditivos e práticas, por vezes demoradas, para estar minimamente consumível pelos olhos masculinos; segundo, porque esses outros compartimentos já estão reservados por outras mistelas que saíram de moda (e que irão inevitavelmente regressar) ou que pura e simplesmente não servem mais. O que está em cima da bancada é o mínimo indispensável para uma adequada manutenção da fêmea. Muitas das coisas nunca deverão ter sido utilizadas sequer, mas isso não interessa porque poderão vir a ser e uma mulher não quer ser apanhada de calças na mão – isto é, se há bancada, que se preencha com tudo aquilo que fez, que faz e que poderá vir a fazer falta. E por muito que isto nos surpreenda, certas bisnagas, na sua tímida dimensão, podem comportar loções que valem mais que a platina. Tinha fortunas empatadas em cima da bancada da casa-de-banho e nem pensava muito nisto. Uma toilette feminina nunca se satisfaz com um pincel e uma caixa de maquilhagem; precisa de demãos, precisa de diversidade, precisa de um toque disto e de um toque daquilo. Uma bancada de casa-de-banho feminina é, invariavelmente, composta por uma míriade de pequenos frasquinhos e de outras coisas pequeninas e nunca por um grande frasco de after-shave ou outra coisa grande qualquer. Seguindo esta regra, é fácil acertar num “blind-test” se determinada bancada é de uma casa em que habita uma mulher ou não – é só saber se é possível ver o fundo ou, quanto muito, se os objectos que estão em cima da mesma contam-se pelos dedos das mãos.

Porque, ao invés, uma bancada da casa-de-banho é um lugar extraordinariamente limpo para um homem que não seja demasiado metrossexual. Numa bancada masculina os objectos são facilmente catalogáveis e não oscilam muito de um pente, um frasco de gel, um after-shave, um perfume e uma escova de dentes com a respectiva pasta ao lado. E é só. É de um minimalismo atroz para qualquer olho feminino, ver tanto espaço por cobrir, tanta pedra desnuda e fria a pedir aquele aconchego que só um laboratório francês qualquer consegue proporcionar por intermédio de mais um creme revigorante especial em forma de frasquinho. Elas não aguentarão tanto espaço livre e logo tratarão de colonizar a bancada. Logo o homem vê os seus pertences colocados a um canto e a sua movimentação de braços limitada naquele espaço, sob pena do seu desajeitado manusear derrubar e eventualmente quebrar aquele verniz xpto que custou os olhos da cara.

A bancada que eu conheci era feminina. Pejada de utensílios e aplicativos diversos, como se a Avon tivesse despejado o seu catálogo na minha casa-de-banho. Somente me era permitido confiar na utilidade dos mesmos e sonhar com a cor original da bancada, subjugada que esta estava perante o peso de infindáveis pedaços de vidro e plástico de várias cores. E vivia relativamente bem com isso. Mas ultimamente a minha bancada masculinizou-se. Ganhou testosterona e correu com aqueles trastes. À primeira vista, já não é a mesma bancada. Parece que cresceu, que é uma espécie de sucedânea revista e aumentada da bancada que me era familiar. Mas é tudo uma ilusão. A bancada é a mesma, o que se foi embora foi a mulher e com ela todo o exército de acessórios de beleza. Agora a bancada respira, é possível ver um pedaço de cotão ou outro, de vislumbrar um cristal a brilhar quando o foco de luz incide num ponto certo. Está uma bancada “à homem”, grande e limpa. Há eco na casa-de-banho. Já não há mais cabelos longos a entupir o lavatório. O cheiro do verniz esfumou-se. Adeus às rodelas de algodão. Os pincéis e limas foram tratar de obras de reconstrução facial para outras bancadas. É muito fácil encontrar o meu perfume agora, é tudo aquilo que está do lado direito da torneira.


Assim sendo, a bancada do lavatório da casa-de-banho é agora um objecto à imagem do seu homem: um espaço grande e arrumadinho que dispõe de espaço suficiente para acomodar um toque feminino que lhe dê uma corzinha e alguma vivacidade, desde que isso não sacrifique a sua liberdade de movimentos nem a sua funcionalidade. A bancada da casa-de-banho é agora, acima de tudo, um pedaço de pedra. Trabalhada para conter coisa nenhuma e estar sempre impecavelmente brilhante.