21 dezembro 2016

Os Elders

Dizem que um mal nunca vem só. Que quando ainda estamos a tentar perceber a dimensão da adversidade, logo surge a cabecinha do demónio por detrás da ponta do iceberg, pronto a infernizar-nos mais a vida. “Infernizar” é coisa que os demónios fazem reconhecidamente bem. E, acreditem, o iceberg é bem maior do que aquilo que conseguimos depreender à primeira vista. Perguntem ao Di Caprio e aos outros desgraçados do Titanic. Ao contrário das coisas boas, cuja utilidade percebida parece decrescer com a repetição, as coisas más tendem a aumentar o seu nível de desconforto à medida que se sucedem. O mal tem destas coisas maléficas. E a cabecinha do demónio demonstra uma capacidade indiscutível para engendrar maldades. Algum sentido empreendedor, também: reconhecendo o potencial sinergético, estabeleceu um protocolo com o Murphy da Lei de Murphy; esta parceria tem produzido sumptuosos frutos de pessimismo, traduzidos em sabores tão diversificados como o azar, a desilusão, a dor e a tristeza, que só valorizam ambos. Senão, atente-se: quantas vezes receámos que as coisas corressem mal e elas correram mesmo? E quantas vezes, depois de comprovarmos o mal que se nos abateu, tememos que pudesse ser pior… e acaba mesmo por ser?

Estás indignado porque os impostos voltaram a subir? Então prepara-te porque vão criar uma sobretaxa adicional qualquer, precisamente a pensar em ti. Estás chateado porque o carro não pega e vais chegar atrasado? Então ainda hás-de ficar pior quando vires que a conta do mecânico inclui outras coisas que nem suspeitavas que o carro tinha. Estás piurso porque o chefe agendou uma reunião para o final da tarde, quando tinhas previsto sair mais cedo? Então ficarás de rastos quando souberes que ele está a prever deportar-te para Angola. Estás inconsolável porque a tua equipa perdeu injustamente contra o rival, depois de uma arbitragem tendenciosa? Então fica a saber que o teu melhor jogador contraiu uma lesão que o vai arredar durante o resto da temporada. Estás deprimido porque a tua namorada te rejeita sexo e parece andar a ignorar-te? Então até vais ficar petrificado quando descobrires que ela anda a fornicar com o instrutor do ginásio na tua própria cama. Bolas, não podíamos ficar apenas com um simples mal, que já é mau que baste, porque é que as circunstâncias insistem em punir-nos com redobrada malvadez? O mal vem, no mínimo, aos pares; não é como as cerejas, luvas, sapatos, mamas ou colhões, que vêm aos pares e, salvo algum fenómeno, não se estendem para além da dupla; não é como o bem, que às vezes só vem parcelado em pequeninas coisas boas, meros fogachos de algo que se desejava inteiro e na sua plenitude; não, o mal entra de rompante e tem uma força própria que te ataca rapidamente em mais que um nervo.

Não sei se é por compreender esta facilidade de desdobramento do mal que esta religião dos Santos dos Últimos Dias (LDS, na sua sigla inglesa – e eu durante muito tempo julguei ler LSD e nem estranhei) emprega rapazinhos aos pares e manda-os missionar por aí. Eu até gosto mais do termo “missionalizar”, mas o corrector diz-me que essa palavra não existe. Estes rapazinhos são os Elders. Como o meu primo, mas o meu primo tem a sorte de ter um “H” adicional que o distingue. E nunca anda com uma plaquinha negra com o seu apelido visível no peito. Certamente que já todos viram Elders a deambular por aí. Aos pares, evidentemente. Creio que seja para combater melhor o mal multicéfalo que se lhes depara. Nunca se vê um Elder solitário. Nunca. Até ao WC os gajos devem ir juntos. E, verdade seja dita, nunca os vi a missionalizar (perdoem-me, mas gosto mais de escrever “missionalizar”). Sempre que os vi, estavam calados e algo circunspectos. O que é ser missionário para estes gajos, afinal? Basta andar por aí com a camisinha branca, a gravatinha e a placa explícita ao peito para fazerem o trabalho deles, que é basicamente passear, durante um exílio de um par de anos? É isso? Bem, é chato, mas exequível. Trabalhar num call center por um mês será bem pior. Ainda por cima, os Elders é que decidem quem abordar, se abordarem, enquanto os coitados dos call centers levam com toda a raiva acumulada dos outros, sem escolha. Lá está, o mal dos empregados dos call centers não se esgota numa só vertente.

Deve haver certamente mais qualquer coisa nos Elders do que andar a passear com o seu compadre durante meses e meses no estrangeiro. Até parece um enredo algo homoerótico, ter dois rapazinhos americanos, com tromba chapada de americano, com aquela pele fininha de quem vem do midwest das pickups e da posse de arma generalizada, o queixo quadrado e um sotaque presumivelmente gorduroso que nem um hambúrguer, ainda imberbes, numa espécie de uniforme, a partilharem todas as experiências do quotidiano num local remoto, envoltos numa mudez crónica e em jogos de troca de olhares, sem grande espaço para a privacidade. Uma espécie de Brokeback Mountain de cariz supostamente religioso. Para além dalguma missionamentalização (adoro este neologismo que acabei de inventar) invisível, suspeito que seja tudo uma preparação para poderem ser mórmons a sério. Ouvi dizer que os mórmons são polígamos e talvez tenham de passar este tempo de privação para poderem desfrutar a sua poligamia a valer. Eu de religião percebo muito pouco, nem quero saber que ideia é essa dos “Santos dos Últimos Dias” e acredito que não tenha a ver com os últimos dias dos saldos ou Black Fridays, mas simpatizo com a ideia da poligamia. Pelo menos, é teoricamente interessante; na prática, deve terminar com um grupo de gajas aos gritos a disputar a primazia sobre o cartão de crédito para irem ao cabeleireiro e às compras e isso não é assim tão divertido. Desconfio é que, para os Elders, a única posição que conhecem é a de missionário e por isso a poligamia não será devidamente apreciada. Eu sei, é uma piada fácil e que já estava prevista desde o início. Mesmo que eu considere que, efectivamente, a posição de missionário é a melhor de todas, pese o seu classicismo pouco kama-sutriano. É uma opinião legítima e discordo em termos genéricos da afirmação “face down, ass up, that’s the way we like to fuck”, da autoria d’ Os Lunáticos e constante do seu único hit “Estou Na Lua”, que recolheu grandes simpatias nos idos de 1995. A partir daqui, já não há mais nada de relevante para ler neste texto. Mas como já começaste a ler, agora vais até ao fim e ficas ainda mais desiludida. Vais perder o teu tempo e, pior, perdes o teu tempo com coisas desinteressantes. Eu bem que alertei no início, o povo bem que avisou através dos seus epigramas, os Elders bem que se defendem aos pares, que o mal nunca se fica pela unidade e aprecia a companhia doutros males. Os sacanas.


Se o facto de os Elders andarem aos pares os torna mais efectivos na luta contra o mal? Será que com eles o mal pelo menos só vem isolado de cada vez, tira a senha e fica à espera na fila que o seu numerozinho apareça a piscar no mostrador para então, ordeiramente, espetar-nos golpes avulsos de má sorte? Não creio. Senão, éramos todos simpatizantes da LDS, mas continuamos mais adeptos de LSD. Ou então tínhamos Elders a entrar no Dragonball para acabar logo com aquilo, porque era para cima de 10-0 sobre o Mal. O mundo está na mesma, com muita porcaria, eles não mudam nada, mas acham que sim com a sua abordagem diferenciada. É um erro natural das religiões. A porcaria já vem de longe, assim como a mistificação da religião. Já tem uns belos milhares de anos. Hoje apenas está mais exposta para todos e qualquer um pode acreditar em muitas outras coisas. Há até uma igreja do bacon na América e parece-me tão válida como qualquer outra, apenas não envia leitões aos pares para serem comidos ao domicílio. Qualquer idiota já pode ter uma voz mais ou menos pública e o que assistimos é à proliferação de idiotices pegadas. Sejam explicitamente religiosas ou não. Mas este nem é o mal pior. O pior é que somos nós mesmos que caucionamos as idiotices com “likes”, “shares” e “views”, que valorizam o mínimo denominador comum e guindam estes parvalhões a um patamar de poder e influência que dantes não passaria do perímetro dum quarto e que agora pode preencher toda uma nação, toda uma geração, quiçá o próprio planeta. Como se pudesse haver uma só maldade a atormentar-nos solitariamente neste mundo e as respostas fossem simples. Não são, nunca foram e nunca serão. Como os Elders nunca serão vistos a vaguear sozinhos na tua ou na minha terra.