31 julho 2013

A Crise

Há realidades que não são exclusivamente nossas mas que tomamos como tal. Porque há uma identificação tão forte, como uma metáfora perfeitamente esgalhada por uma entidade abstracta, que não resistimos a dizer que aquilo, que não é somente nosso, só pode ser nosso. Pode ser feitio. Pode ser defeito. Pode ser a idade a avançar e é a acumulação de experiências que nos leva instintivamente a declarar “isto aqui é a minha cara, já me aconteceu exactamente isso”. Ou só porque sim. É como aquelas letras de canções que nós pensamos que foram escritas para nós. E agora consigo jurar que o Billy Corgan e, pasme-se, o David Fonseca escreveram letras a pensar em mim. Mas houve um tempo em que tudo era belo e puro e em que eu não dava por nada. O Dentão dizia que tinha uma máquina que fazia fatos do He-Man e o Raposo dizia que tinha um carro que subia paredes “na boa” e que possuía um botão que, uma vez pressionado, fazia com que o carro crescesse sem parar, sendo impossível travar o seu crescimento e o carro nunca mais voltaria ao normal. É claro que o Dentão recebeu montes de encomendas de fatos que jamais concretizou e o Raposo nunca ousou carregar nesse botão, que nem era bem um botão, e também nunca demonstrou que o carro subia as paredes. Uma vez ainda experimentou mostrar a versatilidade do seu veículo, mas aquilo foi contra o rodapé e só levantou ligeiramente as rodas da frente. “É das pilhas, que estão fracas”, desculpou-se. Depois vingou-se e teve um Nikko telecomandado. A vida corria bem. Havia lojas abertas por toda a terra, sabíamos onde comprar saquetas de cromos “que dão prémios”, onde estavam os Bollycaos que eram fofinhos e cremosos e não os duros e oleosos donde coleccionávamos os “Tous”, jogávamos ao quarto-escuro sem falsas intenções e todos os velhos que conhecíamos pareciam que tinham sido sempre velhos e nunca iriam passar daí. Havia o bêbado Vaidoso e toxicodependente Acúrsio, a Fininha e a avó do Bispo e toda a gente dizia olá uns aos outros. Éramos gente importante e estávamos destinados a grandes feitos.

As coisas foram sendo mais ou menos assim, até mesmo quando descobrimos que já nos conseguíamos ejacular como nos filmes, pinguinhas de sémen muito aguado após visionamento de VHSs com nomes tão sugestivos como “Rampa de Bicicletas” ou mesmo outras só com uma etiqueta marada que praticamente denunciava que aquilo era “filme de foda”. Constituímos alguns punhetódromos, Ron Jeremy passou a ser um “household name” entre nós, começámos a apalpar gajas e houve quem fumasse o primeiro Surf 18 ou Golden American, autênticas zurrapas de tabaco. As lojas continuavam a bombar e foi nesses espaços comerciais que começaram a cair os primeiros gadgets, que naquela altura não eram mais que um Spectrum. Os 128k, já com leitor de cassetes incorporado, não façam confusão. Era o topo. O Dentão aprimorara uma técnica infalível para carregar os jogos utilizando uma chave de fendas no parafuso por baixo do leitor de cassetes. O Raposo deu um novo significado intemporal aos jogos “Decathlon” e “WEC Le Mans”, que não vale a pena explicar textualmente, e demorou a perceber que carregar no Space durante o carregamento de jogos abortava esse mesmo carregamento e conduzia a muita frustração, directamente proporcional ao tempo dispendido. O Securas comprou um aparelho com teclas em espanhol e foi gozado por isso, mas não fazia muita diferença: todos esperávamos horas a fio para que um jogo carregasse naquele festival psicadélico de cores e ruído que hoje até parece estar na moda e passar muito na Cidade FM, quer teclássemos em “Enter” ou “Cargar”. O Varetas e o Rajã já tinham um computador “a sério”, um Windows qualquer-coisa com monitor VGA, que eu não sabia o que era, mas que só podia ser coisa boa, porque tinha MS-DOS, cursores muito tecnológicos e as coisas vinham em disquetes, que era qualquer objecto apenas ao alcance do pessoal com mais dinheiro. Eu até pensava que eles conseguiam entrar dentro de ficheiros do FBI, CIA e etc. e poderiam salvar o mundo desde que decifrassem um código e se esquivassem a mensagens tipo “Abort, Retry or Ignore?”. Mas desde que a gente jogasse Arkanoid ou F1 Manager estava tudo OK. Não havia cá invejas. Depois vieram as Mega Drives e o Securas, sempre um passo distante dos demais, optou erradamente pela Master System e, embora defendesse que o Alex Kidd era “altamente”, o certo é que passava horas a jogar Mortal Kombat e Fifa na casa do Dentão. O desprendimento era tal que o Dentão teve um casaco da “Rébuk” que vendeu ao Securas e o Ceras comprou outro igual. Tudo perfeitamente normal. O café do pai do Daninhas continuava lá ao pé da esquina, muito pequenino e tresandando a fritos, mas com uma afluência incrível e malta muito certinha que fazia o totobola. Muita gente trabalhava nas fábricas, nas lojas e nos cafés da terra. Havia já muitos carros por todo o lado, o que não nos impedia de jogar à bola, de cautchu, quando as havia, na rua, no alcatrão, em terra batida e conhecíamos sempre os tipos que se aproximavam para reclamar um “desafio”, embora as coisas pudessem tornar-se complicadas sempre que traziam o irmão mais velho, que já tinha namorada “a valer” e que sabia o que era foder – como nos filmes. “Uau”, pensávamos, “um dia quero ser como tu, bate-chapas e sem dois dentes”. Tempos bonitos. Lá fechou aquele restaurante ao qual só fomos uma vez e até dissemos que “sim senhor, aqui come-se bem”, mas nunca lá voltámos. Desconfiávamos que aquilo não seria grande espingarda por estar sempre vazio, porém ficámos agradavelmente surpreendidos por ser porreiro. O certo é que não voltámos. E quando esse restaurante fechou, reabriu com nova gerência e voltou a fechar e a reabrir com muito mais celeridade. Ou então era só o tempo a passar mais depressa.

O tempo passava, com efeito, mais depressa. Começaram a vir chineses, indianos, brasileiros, os cabo-verdianos passaram a ser a maioria nas escolas que já não eram as minhas e o pessoal começou a andar de carro. Já não se jogava à bola. Começaram a proliferar a TV Cabo e as Playstations. O grupo tinha perdido a sua consistência inicial e entraram novas personagens, como naquelas séries que começam a perder audiência e a dar espaço a tipos que nunca foram destinados para ser os principais, mas que tinham os seus bons episódios de quando em vez. Teimávamos em ser felizes, mesmo com algum sentimento miserabilista tão pós-grunge a acossar-me aqui e ali. É que, assim em termos gerais, toda a gente vivia bem, mesmo que não se soubesse bem como. E ainda não tinha visto nada, mas julgava que podia ter qualquer coisa para me angustiar, nem que fosse o tédio. Era assim para o “fixe”. Esse grande “cool” que era o Kurt Cobain já se tinha matado mas tinha deixado sementes e um grande merchandising. Formámos uma tertúlia de devassa num café próximo e tornámo-lo no nosso território. O dono, o Tio Queiroz, barafustava e coisa e tal, mas éramos nós que lhe enchíamos os bolsos com as minis e os cariocas de limão. Foi a fase do delírio puro, do hedonismo, da desbunda pela desbunda, como se quiséssemos sorver, sem limites, os últimos raios de adolescência que nos faltavam. Lá vinha o Tio Queiroz com “vocês são escumalha!... o que é que querem para beber?” e as coisas foram-se passando, às vezes chegando ao vómito, às vezes conseguindo evitá-lo. As histórias são tantas que torna-se difícil enumerá-las. Era a abundância, o fabuloso mundo dos jovens proto-digitais. A evolução continuava inexorável, porém, e veio o novo milénio, com a internet e a fantástica possibilidade de obter álbuns que não tivéramos possibilidade de comprar ou de pedir emprestado, ainda que, ao princípio, a velocidade de download fosse tão rápida quanto a velhota do anúncio do Obikwelu. Curiosamente, nada aconteceu aos sistemas no ano 2000, a não ser ao sistema do Dentão, que quase se apagou no ano novo, de uma forma menos espectacular que o meu apagão de 1999 – em que, mesmo assim, recuperei heróico para ver o sol nascer no horizonte enquanto os outros todos já dormiam ébrios e vencidos pelo cansaço. Vieram as namoradas, posteriormente convertidas em digníssimas esposas, depois os filhos dos irmãos mais velhos, depois os filhos de nós mesmos. O grupo desintegrou-se. O café do pai do Daninhas começou a ser frequentado por outra gente. Pelo menos, parecia-me – eu próprio já não reparava bem, já não passava por lá amiúde. Disseram-me que já nem sequer era o pai do Daninhas o dono do estabelecimento. Mas não fiz caso, estava a jogar FM e a sacar cenas pela internet. Não reconhecer a gente tornara-se trivial. A terra começou a definhar, as lojas fechavam, a fábrica deu espaço a uma urbanização de luxo e eu pensava “que sa foda”, porque estava bem, embrenhado em sonhos de realidade e cada vez mais cínico, mesmo que achasse que podia estar melhor. Veio a acomodação e o desinteresse. Os primeiros velhos começaram a morrer, mas aquilo nada me dizia. Nunca fui bom a interpretar sinais pouco explícitos. Arranjei trabalho, o dinheiro começou a cair e, mesmo que tudo à volta começasse a parecer-se pouco com o que tinha sido, achei que estava no caminho certo, não reparando que o isolamento ia crescendo. Eles é que estavam mal, fossem quem “eles” fossem. Acabei por sair da terra e iniciar um novo ciclo. Pouco confiante, como sempre. Aquilo que me confortava era saber que havia outros piores e, valha a verdade, havia apenas um ou outro dia mau, mas o comboio continuava sobre os carris.

Ano após ano, tudo na mesma. Para mim. A rotina sedimentou-se de tal forma que qualquer desvio era uma dor de cabeça e eu não gosto propriamente de dores de cabeça nem do sabor do paracetamol. Fui ficando por aí, tentando evitar a chuva, passando por entre os buracos. O problema é que o mundo tinha mudado. Já nem sequer as televisões eram grandes objectos, a portabilidade instalara-se e com ela a banalização das relações. Quando dei por mim, toda a gente falava na crise. Já nem sei quando começou ao certo, mas sinto que ouço essa palavra diariamente há anos. E eu estive adormecido este tempo todo, embalado pelo “portuguese dream”. Que é um sonho tipo o americano, mas à nossa imagem: remediado, tímido, cumprindo os requisitos mínimos. Já não havia emprego. Já não havia gente conhecida. Os sítios cheiravam a mofo, tinham envelhecido como nunca pensei que envelhecessem. Os velhos iam morrendo todos os meses, sem nós nunca termos tido a oportunidade de lhes dizer adeus. E todos confirmavam “era uma grande pessoa”, como nunca reconhecida em vida. Outros, que eu ainda consegui ver agarrados à cama, mas já muito fracos para se agarrarem à vida. Morreram dias depois. “Um alívio para todos”, disseram-me os mais chegados. Comecei a sentir o círculo da morte a apertar-se mais em meu redor. Até o Tio Queiroz fenecera, soube meses depois, por acaso. Mas ainda eram os outros. Pensei que ia escapar incólume. Depois vieram as notícias inesperadas, os choques abruptos que nem trovões numa noite calma, e, finalmente, senti que a crise, qualquer que fosse a sua forma, também me tinha apanhado. “Daqui ninguém sai vivo” – não penses que és diferente. Porque a crise estava aí para democratizar a todos com o infortúnio. Fui atropelado pelo carrossel da crise, pela espuma tóxica dos dias. E estava a dormir muito bem, como se a minha muralha de esconder emoções dum Colunex se tratasse. A crise multiplicava-se em várias vertentes, fossem elas a crise económica, financeira, política, sentimental, de meia-idade, de valores, etc.. É um bicho resistente. Clamava-se por uma revolução e ninguém sabia ao certo o que fazer ou dava um passo em frente, esperançados que o outro, que pensava igual, tomasse a iniciativa, qual “mexican standoff” dos filmes do Tarantino. A não ser no Facebook. Aí toda a gente é gira e inovadora. O Facebook é um cancro, o maior deles, que nos consome sob a aparência de felicidade; é a droga da ilusão com que tentamos mascarar enormes buracos negros sentimentais que nos sugam a vida. E depois há os reality shows patéticos, absurdos, estupidificantes, mas que vendem. Vendemos a alma à tecnologia e a quem nos garanta que é possível ficar na mesma quando tudo à volta se desmorona e não temos como pagá-la de volta. Foram anos a abusar. A sustentabilidade era uma coisa de totós para totós e que, mais a mais, nunca saiu do papel. Vi gente a rir-se por tudo e por nada, das parvoíces mais inanes. Vi imbecis com poder a mais para as suas incapacidades. E agora tenho o meu coração feito numa autêntica passa. Estou mirrado. Assaltam-me memórias de tempos que me parecem extremamente felizes a esta distância e suspeito que estas fotografias vão-me causar ataques diabólicos de melancolia. Não queria ter de viver de recordações como o Vítor Espadinha, mas foi mesmo em Setembro que a conheci e não consigo deixar de identificar-me com ele. Choro mais nestes dias até do que quando era bebé de fralda. Como Midas-ao-contrário, tudo onde toco parece definhar. Sinto-me condenado a aguentar como puder, em longos serões solitários a olhar pela janela, e acredito, como o Sporting, que isto ainda não está suficientemente mau para que não possa ser pior. Pensei que nada ultrapassava o meu Bettencourt até que tive o meu Godinho. A terra, essa, já não tem comércio; as lojas encheram-se de graffittis e tags manhosas e toda a gente sabe que nos hipermercados é onde se compra a qualidade de vida, preferencialmente na época dos saldos. A terra morreu e ainda não sabe. Ninguém lhe disse e ninguém lhe vai dizer. Talvez alguém desconfie, quando houver uma mega-explosão ou aquilo tornar-se numa espécie de subúrbio de Joanesburgo, ou toda a gente que conhecer estiver definitivamente morta ou for encontrada morta no sofá da sala em elevado estado de decomposição. Estou abandonado. Estão todos demasiado ocupados a mandar mensagens instantâneas e a escrever mal, mas ninguém se importa, ninguém é suficientemente audaz para corrigir. “fdx tives te a fzer 1 q c a t dama lol” – é uma espécie de pintura rupestre dos novos tempos. Ninguém sabe se isto é uma pergunta ou uma afirmação. Pode ser uma nota de suicídio, talvez, quem sabe.