29 setembro 2012

Phil Collins

 
“O gajo é o Phil Collins”, observei. “Estás maluco?”, respondeu-me.

É normal. Poucas vezes as minhas comparações fazem sentido para a gente à minha volta. O que para mim é evidente, para os outros é um absurdo. Inimaginável. Intragável. Tão frio como Alasca no pico do inverno. Muito ao lado como um remate do Ribas. Quem é o Ribas? Nem ele sabe bem e nós não nos queremos lembrar. Isto é, partindo do pressuposto que o Ribas alguma vez rematou; para muita gente, isto é apenas mais um paradoxo. E eu compreendo-os. Mas muita gente não me compreende e a sua incompreensão é-me incompreensível. Cada vez menos, é certo, porque a habituação vai deixando-me anestesiado e indiferente.

Só a custo alguém me diz “eh pá, sim senhor, é isso mesmo”. É muito raro. Acontece quando o rei faz anos e, como todos sabemos, nós não temos rei – aquele tipo de bigode que casou com uma tipa ao saber que ela estava encalhada, provinha de boas famílias e era fértil não conta. Eu já só me contentava que me dissessem, entre algumas dúvidas e algum esforço em estabelecer uma relação, “hmm, de facto, há algumas parecenças…”. Mesmo isso não é comum. Por isso, vou denegrindo de certa forma a minha imagem. “O gajo é maluco”, devem comentar em surdina. O “gajo”, neste caso, sou eu.

O problema poderá residir no facto de eu não estar rodeado de gente que pense e sinta no mesmo comprimento de onda que o meu. "Take a look on me now": tenho manifestas dificuldades de relacionamento. Pelo feitio e pelas escolhas que fiz. Acho que estou inserido em grupos por um carácter meramente utilitário e que estou intelectual e espiritualmente desconectado desses mesmos grupos. Uso-os para satisfazer certas necessidades, mas muitas outras ficam por preencher. Por isso, sinto-me incompleto. Movi-me inconscientemente para grupos com cujos membros estabeleci ligações e com os quais até não me dou mal de todo, mas não estou emocionalmente ligado com nenhum deles. Bem feito, devia ter procurado a primazia do espiritual sobre o material, a realização exclusivamente pessoal à realização sócio-profissional, o que implicava mais riscos, mas não o fiz. Sempre tive medo de ser um “outcast, because I want to fit in; and I fitted, but I am just not in. Not in my view”.

Agora? Ou faço “reset”, que é de certa forma difícil e demasiado aventureiro para um gajo como eu, que não quer chatices, ou deixo-me ir indo, a ver o que as coisas dão, alguém alguma vez me irá compreender a valer, a cara-metade pode estar aí ao virar da esquina, quem sabe?, e se nada acontecer, então eu serei o mais esquisito do bando, dos bandos, só plenamente realizado sozinho, no quarto, com as suas cenas. Se calhar, é para ser mesmo assim. Provavelmente, serei anti-social. Não é perfeito. Mas sobrevive-se. Há coisas piores. Como consolação, tenho Galileu e gajos assim, que estavam certos quando todos à volta estavam errados. Nem sequer penso que eles eram apenas uma excepção, génios únicos, para não me desmoralizar muito.

Na verdade, o gajo não era muito parecido com o Phil Collins. Era somente careca e baixinho. Mas uma vez fizemos uma viagem toda a ouvir Phil Collins. E aquilo marcou-me. Quilómetros e quilómetros de conversa de chacha e de Phil Collins. Felizmente, não vomitei. Quer dizer, até aprecio algumas coisas do Phil Collins, por me fazerem lembrar da infância quando tudo era belo e desconhecido, mas não exageremos. E depois fizemos a viagem de volta. Ainda começou por meter Police. Porreiro. Talvez começássemos a estabelecer uma conexão logo ali, talvez ainda lhe perguntasse, "ó Phil, tu foste ver os Police alguma vez ao vivo?". Mas ele logo se fartou, talvez pensando que as batidas do Stewart Copeland fossem demasiado agressivas para a audiência. Para mal dos nossos pecados, que são tantos que nem dá para enumerar (falo por mim). A colecção dele no carro era muito limitada. E, desta forma, o que acabámos por ouvir? Phil Collins, evidentemente. O mesmo CD em loop. O carro era dele, ninguém ousou dizer “MUDA ESSA MERDA!”, mas lá que deve ter passado essa ideia na cabeça de todos, lá isso devia, se é que ainda existia alguma réstia de bom gosto no mundo. Que é duvidoso, mas assumamos que sim.

E então, um gajo baixinho e careca que ouve Phil Collins, bom, é o gajo mais philcollinsiano que eu conheço. Mesmo baixinho, tão baixinho que uma vez uma colega meu disse “a culpa foi daquele baixinho de merda”, ou qualquer coisa assim, e ele estava mesmo a passar por detrás do biombo onde ninguém o viu. E depois o biombo acabou; ele olhou para o meu colega e o meu colega olhou para ele, engoliu em seco, gerando-se um silêncio gelado. É desta que vamos ver o lado vingativo do Phil Collins. Mas, "against all odds", o Phil Collins até era boa onda, não levou a mal e nós demos uma grande risada enquanto o meu colega ruboresceu. Pelo sim, pelo não, começámos a ser nós a tratar dos casos do Phil Collins, para ele não pensar que estava a receber más notícias só por causa de alguma questiúncula pessoal. Ficámos todos bem, pelo menos que eu me tenha apercebido.

Mas eu percebo pouco de coisas que tenham a ver com relações e químicas interpessoais. Assim no geral. Tal como ninguém me compreende. Também assim no geral.

Depois, no Natal, aquelas festas em que há troca de presentes-mistério. A mim calhou-me um tipo do Sporting. Até tive sorte. De sportinguista para sportinguista, dei-lhe um cachecol do Nosso. Deve ter-lhe feito bom proveito. A mim ofereceram-me um suporte para duas garrafas. Uma merda de um suporte para duas garrafas. Uma coisa que ninguém percebeu ao certo o que era à primeira vista. Nem eu mesmo. Foda-se, c’um caralho, uma merda de tal ordem que nem a minha mãe quis ficar com aquilo. Mas eu tenho cara de bêbado? Não há merdas que fossem mais jeitosas e que custassem até 10 euros? Oh, foda-se… No fim, toda a gente acabou por saber de alguma forma quem tinha sido o seu “presenteador”, mas eu preferi continuar no desconhecimento. Devo ter sido o único. Mas foi por uma questão de bom senso. Porque eu não iria suportar trabalhar com essa pessoa, olhar-lhe na cara todos os dias e pensar, “que gosto de merda que tu tens” ou “tu desprezas-me de uma forma tão silenciosa que até me mete impressão”. E depois podiam dizer-me, “ah, mas o que conta é o gesto”, e eu respondo, “p’ó caralho mais o gesto, aquilo foi tudo forçado, fomos obrigado a dar e não se notou nenhum esforço para saber do que poderia gostar”. Se aquilo foi um “fuck you!” da parte dessa pessoa, então eu fiz de Cristo e dei a outra face. Se foi alguma coisa realmente de boa vontade, foi um tiro na água. Vamos acreditar que essa pessoa não estava a passar por um bom momento. Mas o que realmente importa para este efeito é que a pessoa que devia dar uma prenda ao Phil Collins estava na dúvida do que lhe dar. Nem de propósito, tinha acabado de sair uma colectânea de êxitos do Phil. Deve ter sido para aí a 14ª. E eu sugeri-lhe, “eh pá, o Phil Collins gosta do Phil Collins. “A sério?”. Foda-se, a sério, tu estiveste lá comigo a passar aquele tormento na viagem e estás a dizer-me que já não te lembras? “Ah, mas então ele já tem o CD!”, e eu disse-lhe “mas este tem a «Sussudio» e «Dancing Into The Light» e o outro era mais o «…But Seriously» com o «In The Air Tonight» e o «Can’t Hurry Love», ou lá como se chama, e mais umas cenas dos Genesis metidas ao barulho; era um CD customizado; este é que é mesmo oficial”, e essa pessoa “achas mesmo?”, e eu, “claro, não te vais arrepender”. E ela lá lhe comprou o CD.

Fiquei particularmente expectante no momento em que o Phil Collins foi abrir o embrulho. Ele parecia mesmo uma criancinha. Não tanto pela indisfarçável agitação de rasgar papel colorido e acabar com a tensão da surpresa, mas porque era mesmo muito baixinho. Mal o abriu, ele disse “Phil Collins! Como é que vocês sabiam que eu gostava de Phil Collins?”. Meu, tu és o Phil Collins; se não gostasses de ti, quem mais poderia gostar?

E eu estive naquela viagem, Phil. Nós estivemos. Sofremos. Mas quero acreditar que tudo faz parte de um plano maior, que passamos secas e desilusões e tormentos porque assim sobrevivemos. Acho que percebo desta matéria. Afinal, a minha vida, no fundo, é isso mesmo – sobreviver, sem nunca verdadeiramente sobre-viver.