21 junho 2024

Loucura

 

A simples loucura não é estimada. Para ser benquista, a loucura tem de ser a puta.

Um paradoxo louco.

Ninguém quer experimentar a loucura se ela não for a puta. A puta da loucura. Se for, podemos esperar o melhor. Ou o pior. Espera-se qualquer coisa marcante, todavia.

Normalmente, o estado da loucura enquanto puta é temporário. Uma festa, um evento, um certame, nada que perdure assim tanto no tempo. Devia lá se ter estado para saber o que foi, o que sentiram os envolvidos. Aquelas coisas das quais guardamos imagens mentais coloridas e que esperamos contar mais tarde numa roda de amigos, para impressionar. A puta da loucura é cintilante, impossível ficar indiferente à sua rameirice insidiosa. Com os seus saltos altos que injectam ilusão nas nossas veias sedentas de paixão e um corpete tão apertado quanto provocador nos seus contornos voluptuosos, o perfume do delírio nos seus cabelos soltos, é assim a loucura quando puta passa por nós. Um terramoto de emoções. Uma bebedeira memorável, um sexo fulgurante, um ambiente transgressor. Ela entrega-nos a liberdade absoluta numa bandeja dourada de tentação. A sorte da nossa vida ali à nossa frente, por um momento, durante um momento. Um excesso único que no dia seguinte se vai embora, mas deixa a secura da ressaca na boca e um grão de desejo no nosso coração. A loucura, se puta, é assim.

Porém, se a loucura é filha recatada e fria, se se tarda dentro de nós, então o caso muda de figura. Uma loucura só é uma loucura amarga.

Com o seu xaile preto de abandono e perdida num labirinto hospitalar, a pernas dobradas num arco lúgubre quando cambaleia pelos recantos, a loucura que não é puta é demasiado séria para ser querida.

São pobres desgraçados, os loucos sérios, não acometidos pela putaria duma loucura depravada. Esta loucura é a gémea má do Baco. Atormenta sem piedade, ofusca a clarividência, apaga as almas. E se calhar alguns só queriam a puta. A puta da loucura. Mas alguma coisa correu mal pelo caminho. A puta foi puta demais. Ou nunca chegou a sê-lo. Não foi aquilo que queriam. E agora estão presos dentro de um corpo que apodrece, com o pensamento a baralhar-se de dia para dia. Sítios em que já não se está, noções periclitantes de realidade. Espelhos que já não reflectem. Gente que já foi. Que já não é nem está realmente. É somente uma projecção dum passado comprometido. Um pseudo-holograma em acelerada decadência. Comprimidos e tratamentos de choque, o espartilho branco sobre um monte de ossos que já não tem controlo sobre si e uma esperança fugidia numa partida sem dor. Ela não se vai embora e não é divertida. É uma bruxa pérfida invencível no seu caldeirão. Não, salvem-se desta loucura malvada, a que é certinha como um relógio suíço.

Nunca procurem outra loucura que não a puta. É inofensiva. A outra é um vício incomportável. Depois dá para fazer coisas esquisitas. Como sentir uma inadaptação terrível em lidar com o mundo exterior, as pessoas e as situações no geral. De perder o sentido e nem sentir que se o perdeu. E até de começar a escrever. Não queiram isso.

1 comentário:

Anónimo disse...

❤❤❤