18 agosto 2024

Cair

Só queríamos um alívio. Uma esperança que nos desse uma réstia de vida. Mais que apenas a vontade em erguer-se do chão que o atrai. Quando não há força, as pernas tremem e o corpo cai. Outra e outra vez. Pelas feridas donde brota o sangue, parece que vês a alma a sublimar-se, a esvair-se no ar e a perder-se no vento. Sai pela boca do peixe fora de água, pelos olhos da coruja afogada no abismo. Sentes que o fogo chegou ao cerne. Percebes que aquela madeira outrora valorosa já não é inexorável. Foram anos e anos de porfia, mas agora é uma questão de tempo, o caruncho vencerá pela persistência metódica com que arranca as entranhas. A brasa abafa os gritos do condenado que tenta resistir, depois a cinza atestará a inutilidade do ser. Tenaz e cruel, a ferrugem corrói as camadas arejadas até infligir a derrota total no âmago do metal. Era um ferro bom, mas sofre como papel. Sem piedade alguma, vagaroso e ponderado, o assassino contempla a angústia da vítima que se vê a definhar, a encarquilhar, a perder-se num poço sem fundo onde o ar é rarefeito. O martírio da impotência e os suores do desespero são os únicos companheiros. Diz-te para desistir. Não se ouve bem. Também sem palavras, que a língua já não obedece. O pescoço perdeu o óleo. As mãos não fecham, recusam-se a cooperar.  A direita nunca é certa e a esquerda não se mexe. O pensar e o dizer tornaram-se irreconciliáveis. É a anarquia dos sentidos a implodir as fundações básicas de uma pessoa.

Às vezes queremos que venha uma síncope fatal sem aviso. Uma ribanceira pronunciada no final da queda. Um espeto cravado no crânio ou um relâmpago que torne estes longos dias num mau instante. Foi um mau dia. Muito longo, muito enervante, muito longe de tudo e onde tudo se vai afastando. Amanhã desconfiamos que possa ser igual, nem a torpeza da ilusão nos conforta nestes tempos de agonia. Sentes as memórias a agrupar-se dentro de ti, num exército que não te vem salvar, apenas vem presenciar os sentimentos de culpa que esbanjas no campo de batalha. Estás a lutar contra elementos muito fortes, que no fundo é a ordem natural das coisas. As coisas estragam-se, deterioram-se e podem ficar sempre pior. Se o cimento duro não quebra os ossos, quebra a confiança. E por vezes os dois ao mesmo tempo. Todos os ontens vêm bater-te à porta a assinalar-te onde estiveste mal. E foram muitas visitas indesejadas que tocaram essa campainha ensurdecedora, que te marcaram covas no rosto à laia de avião abatido, foste mais um a sofrer o choque com a realidade.

Vai haver abraços e beijos. Lágrimas e condolências. Exortações à paciência e à consolada resignação. Sinos e louvores, filosofias e brisas poéticas. O corpo está a deixar de o ser, pena que a alma já tenha sido hipotecada há tanto. Vimo-la a ir e a voltar tantas vezes que pensámos que haveria sempre mais um regresso. Uma última dança. Uma última visita que não saberíamos se seria. Uma pequena surpresa antes da tragédia. Mas o drama não vem de rompante, insinua-se subtil todos os dias sob a forma de uma pequena frustração. Um ribeiro de mágoa que desagua num mar de tristeza pungente. Comprámos bilhete de camarote para o espectáculo do declínio dos miseráveis. Lá vem o chão outra vez. Aleija o artista, mas este depois acaba por se tornar insensível e fica a audiência para levar com o fardo do destino. Aceita, dizem eles. Não há como não aceitar. Como se houvesse outra opção.


21 junho 2024

Loucura

 

A simples loucura não é estimada. Para ser benquista, a loucura tem de ser a puta.

Um paradoxo louco.

Ninguém quer experimentar a loucura se ela não for a puta. A puta da loucura. Se for, podemos esperar o melhor. Ou o pior. Espera-se qualquer coisa marcante, todavia.

Normalmente, o estado da loucura enquanto puta é temporário. Uma festa, um evento, um certame, nada que perdure assim tanto no tempo. Devia lá se ter estado para saber o que foi, o que sentiram os envolvidos. Aquelas coisas das quais guardamos imagens mentais coloridas e que esperamos contar mais tarde numa roda de amigos, para impressionar. A puta da loucura é cintilante, impossível ficar indiferente à sua rameirice insidiosa. Com os seus saltos altos que injectam ilusão nas nossas veias sedentas de paixão e um corpete tão apertado quanto provocador nos seus contornos voluptuosos, o perfume do delírio nos seus cabelos soltos, é assim a loucura quando puta passa por nós. Um terramoto de emoções. Uma bebedeira memorável, um sexo fulgurante, um ambiente transgressor. Ela entrega-nos a liberdade absoluta numa bandeja dourada de tentação. A sorte da nossa vida ali à nossa frente, por um momento, durante um momento. Um excesso único que no dia seguinte se vai embora, mas deixa a secura da ressaca na boca e um grão de desejo no nosso coração. A loucura, se puta, é assim.

Porém, se a loucura é filha recatada e fria, se se tarda dentro de nós, então o caso muda de figura. Uma loucura só é uma loucura amarga.

Com o seu xaile preto de abandono e perdida num labirinto hospitalar, a pernas dobradas num arco lúgubre quando cambaleia pelos recantos, a loucura que não é puta é demasiado séria para ser querida.

São pobres desgraçados, os loucos sérios, não acometidos pela putaria duma loucura depravada. Esta loucura é a gémea má do Baco. Atormenta sem piedade, ofusca a clarividência, apaga as almas. E se calhar alguns só queriam a puta. A puta da loucura. Mas alguma coisa correu mal pelo caminho. A puta foi puta demais. Ou nunca chegou a sê-lo. Não foi aquilo que queriam. E agora estão presos dentro de um corpo que apodrece, com o pensamento a baralhar-se de dia para dia. Sítios em que já não se está, noções periclitantes de realidade. Espelhos que já não reflectem. Gente que já foi. Que já não é nem está realmente. É somente uma projecção dum passado comprometido. Um pseudo-holograma em acelerada decadência. Comprimidos e tratamentos de choque, o espartilho branco sobre um monte de ossos que já não tem controlo sobre si e uma esperança fugidia numa partida sem dor. Ela não se vai embora e não é divertida. É uma bruxa pérfida invencível no seu caldeirão. Não, salvem-se desta loucura malvada, a que é certinha como um relógio suíço.

Nunca procurem outra loucura que não a puta. É inofensiva. A outra é um vício incomportável. Depois dá para fazer coisas esquisitas. Como sentir uma inadaptação terrível em lidar com o mundo exterior, as pessoas e as situações no geral. De perder o sentido e nem sentir que se o perdeu. E até de começar a escrever. Não queiram isso.

10 março 2024

Em Branco

 

Até queria ter a vontade de meter a cruz nestes. Mas não consigo. Mesmo que os outros possuam o odor persistente a compadrio, debaixo dos holofotes e da conversa redonda, que me enfastia de sobremaneira. O tom e timbre do discurso carrega inflexões e cadências delicodoces, o nós tão bom e o eles tão mau, aquele paternalismo meloso da incumbência, com os olhos a acompanharem cada recanto da sala, percorrendo-a num ritmo de encantador de serpentes que me deixa mais que indiferente, deixa-me a quilómetros de distância. Eu não quero ser visto por esses olhos falsos. Afasto-me. Eles não podem ser o menos mau e não podemos ir apenas pela contenção de perdas. Ainda assim, nestes não consigo. Talvez se incluísse outra gente, esta não. Esta gente traz a memória de tempos sombrios, que só não tomaram proporções maiores e mais graves porque ainda estamos todos meio anestesiados de anos de complacência. Noutro século, as coisas teriam descambado para eventos mais tumultuosos. É percorrer a história para perceber que nem sempre fomos tão aparentemente brandos. E para além desta incapacidade em revoltar-se, que se tenta explicar pelo passado, neste século de vigilância social toda a gente tem medo de dar um passo mais brusco que a comprometa. Esta gente tem um cunho sinistro que impede qualquer sustento de empatia. Ficou associada indelevelmente a momentos de instabilidade. Há ali individualidades que assustam com o seu sorriso e fazem tremer com a sua simples presença, não propriamente pelos melhores motivos. Não foi boa ideia recuperá-los, não foram bons tempos. Os anteriores já não tinham sido e, muito provavelmente, é aqui que se encontra a raiz deste desgosto. Também aqui houve culpados, como antes e outrora a aqueloutros, se formos mesmo até ao fim somos capazes de desembocar no Afonso Henriques. Enfim, se formos minimamente justos, haverá um limite para o qual a desculpa já não é admissível. Portanto, aqueles que começaram de forma mais evidente este caminho de desleixo institucional generalizado e estes que supostamente vieram corrigir com a destreza dum elefante num nenúfar são ambos co-responsáveis por uma página amarela numa história com algumas nódoas. Foi uma década inteira jogada ao lixo. Fomos depauperados nos bolsos e na alma. Acordei muitas vezes durante a noite com o teu sorriso falso cravado na minha cabeça. Demasiadas vezes numa inquietude que não resolvo. E eles estavam lá nesse tempo em que a distância cresceu e os ventos tornaram-se hostis. Estiveram mal na pior altura. Eles são aquelas fotografias que nos deixam um gosto acre na boca, uma fina azia no estômago, uma bofetada na nossa boa-disposição quando visitamos o álbum no baú e que nos relembram de quão cruel e trágica pode ser a nostalgia. A nostalgia nem sempre é assim tão doce como propagandeiam. É mais uma sereia que nos abocanha à laia duma fêmea louva-a-deus, aliás. O pó da nostalgia é viciante como o pó da cocaína e fere-nos o âmago como o pó dos asbestos. Distorce-nos completamente as percepções da realidade, faz-nos viver num sonho irreal, de desejar o irrepetível, de nos deter em contemplações espúrias. Entretanto o presente esfuma-se e o futuro, essa abstracção que é o sorvedouro das nossas esperanças, desfaz-se pela torrente natural do tempo. O que já foi não volta a ser, nunca da mesma forma. O que vale para o país vale para o indivíduo. Que se lixe o fado. Que porcaria de som, sempre a finalizar no mesmo acorde, sempre a bosta da saudade, a patetice de glorificar a perda, a resignação como uma virtude. Não vamos a lado nenhum. Venha quem vier. O que se quer é mais uma justificação para a nossa incompetência, incapacidade e infelicidade. É sempre tão mais fácil varrer os nossos verdadeiros problemas respondendo a perguntas com mais perguntas, fingindo um espírito crítico que nunca se aplica quando e onde se deve, ou seguir a manada sem referências que se uniformiza numa cultura mcdonaldizada. Não sei quem se seguirá. Parece tudo plausível. Até pode ser alguém gerado por inteligência artificial. É candidata à palavra do ano, artificial. Dou por mim a pensar que isto pode ser um filme e posso ter tomado a cápsula errada. Dobro o papel tal e qual ele me foi entregue e dissolvo a minha voz numa caixa escura que não me ouve. Estendo as metáforas no sentido de conferir alguma razão ao meu sentir. Sinto-me civicamente completo, mas individualmente incompleto como no dia anterior.  É uma pequeníssima vitória moral.