Só queríamos um alívio. Uma
esperança que nos desse uma réstia de vida. Mais que apenas a vontade em
erguer-se do chão que o atrai. Quando não há força, as pernas tremem e o corpo
cai. Outra e outra vez. Pelas feridas donde brota o sangue, parece que vês a
alma a sublimar-se, a esvair-se no ar e a perder-se no vento. Sai pela boca do
peixe fora de água, pelos olhos da coruja afogada no abismo. Sentes que o fogo
chegou ao cerne. Percebes que aquela madeira outrora valorosa já não é inexorável.
Foram anos e anos de porfia, mas agora é uma questão de tempo, o caruncho vencerá
pela persistência metódica com que arranca as entranhas. A brasa abafa os
gritos do condenado que tenta resistir, depois a cinza atestará a inutilidade
do ser. Tenaz e cruel, a ferrugem corrói as camadas arejadas até infligir a
derrota total no âmago do metal. Era um ferro bom, mas sofre como papel. Sem
piedade alguma, vagaroso e ponderado, o assassino contempla a angústia da
vítima que se vê a definhar, a encarquilhar, a perder-se num poço sem fundo
onde o ar é rarefeito. O martírio da impotência e os suores do desespero são os
únicos companheiros. Diz-te para desistir. Não se ouve bem. Também sem
palavras, que a língua já não obedece. O pescoço perdeu o óleo. As mãos não
fecham, recusam-se a cooperar. A direita
nunca é certa e a esquerda não se mexe. O pensar e o dizer tornaram-se
irreconciliáveis. É a anarquia dos sentidos a implodir as fundações básicas de
uma pessoa.
Às vezes queremos que venha uma
síncope fatal sem aviso. Uma ribanceira pronunciada no final da queda. Um
espeto cravado no crânio ou um relâmpago que torne estes longos dias num mau
instante. Foi um mau dia. Muito longo, muito enervante, muito longe de tudo e
onde tudo se vai afastando. Amanhã desconfiamos que possa ser igual, nem a
torpeza da ilusão nos conforta nestes tempos de agonia. Sentes as memórias a agrupar-se
dentro de ti, num exército que não te vem salvar, apenas vem presenciar os
sentimentos de culpa que esbanjas no campo de batalha. Estás a
lutar contra elementos muito fortes, que no fundo é a ordem natural das coisas.
As coisas estragam-se, deterioram-se e podem ficar sempre pior. Se o cimento
duro não quebra os ossos, quebra a confiança. E por vezes os dois ao mesmo
tempo. Todos os ontens vêm bater-te à porta a assinalar-te onde estiveste mal.
E foram muitas visitas indesejadas que tocaram essa campainha ensurdecedora, que
te marcaram covas no rosto à laia de avião abatido, foste mais um a sofrer o
choque com a realidade.
Vai haver abraços e beijos.
Lágrimas e condolências. Exortações à paciência e à consolada resignação. Sinos
e louvores, filosofias e brisas poéticas. O corpo está a deixar de o ser, pena
que a alma já tenha sido hipotecada há tanto. Vimo-la a ir e a voltar tantas vezes
que pensámos que haveria sempre mais um regresso. Uma última dança. Uma última
visita que não saberíamos se seria. Uma pequena surpresa antes da tragédia. Mas
o drama não vem de rompante, insinua-se subtil todos os dias sob a forma de uma
pequena frustração. Um ribeiro de mágoa que desagua num mar de tristeza pungente. Comprámos
bilhete de camarote para o espectáculo do declínio dos miseráveis. Lá vem o chão
outra vez. Aleija o artista, mas este depois acaba por se tornar insensível e fica a
audiência para levar com o fardo do destino. Aceita, dizem eles. Não há como
não aceitar. Como se houvesse outra opção.