O Dentão dizia a toda a gente “a
tua mãe não se queixou”. Também a raparigas e a tipos sem mãe, ele não se
acanhava. Estás a ver o género, não estás? Quando o proclamava, falava com tom
de afronta, como resposta a alguma provocação. O mais normal era alguém pôr em
causa a sua masculinidade; aquelas coisas corriqueiras do “és um paneleiro!”, e
ele, tumba!, “pois sou, mas… a tua mãe não se queixou!”. Com um sorriso e,
calhando, até um piscar de olho maroto. A expressão era, no início, uma espécie
de bomba atómica do insulto. Se puseste em causa a minha sexualidade, eu devasto
a idoneidade da tua mãe. Era comer e calar com esse vil ataque à reputação da
progenitora. Não se conseguia combater aquilo. Ou se retorquia com um estéril e
infantil “a tua também não”, o que, convenhamos, deixava muito a desejar em
termos de espirituosidade, ou se saía com outra tirada ainda mais graciosa, o
que não era fácil na altura, pois não éramos muito vividos – ou “streetwise”,
como está na moda. Aquela boca era do mais “streetwisest” que podíamos ter. Vivíamos
num mundo em que a informação passava lentamente, onde as repetições do boi
Bocas ainda faziam crescer água na boca… e o “Água na Boca” era o máximo de
mamas que podíamos ver livremente. Tu não sabes o que era estar ansioso por ver
mamas ao léu em canal aberto, agora que elas te surgem em forma de spam quando
tentas ver um jogo por streaming. E ainda por cima, são gajas que estão sempre
solitárias, carentes e a rebolar-se numa cama cheias de comichão lá para os
lados da Amadora. Ou Moscavide. Esses sítios onde existem esse tipo de gajas que
só atrapalham, onde os lençóis estão todos sobrelotados de pulgas e para onde
os IP’s convergem. Não tínhamos simplesmente as alternativas que hoje se
conhecem, não havia memes com mensagens extremamente engraçadas e actuais para
partilhar, todos uniformizados pelo mesmo tipo de letra e imagem. Acho que já
está na hora de diversificar, diz-me tu se ainda prestas alguma atenção ao “keep
calm and…” ou ao Grumpy Cat. Ainda? Bolas… Não tens explorado muito a internet,
pois não?
“A tua mãe não se queixou” pode
ter advindo duma coisa qualquer que se ouviu na festa da terrinha
Atrás-do-Sol-Posto e que alguém transplantou para o nosso meio. E se calhar
essa expressão já estaria em franco desuso até em Atrás-do-Sol-Posto, algo
extraordinário, porque se há coisa que as festinhas de Atrás-do-Sol-Posto não
são conhecidas é por deixar cair coisas na obsolescência – e daí estarmos
sempre a ouvir a mesma valsa programada, “O Pai da Criança” e ruídos de eternas
Zundapps junto ao bar onde se encontra sempre o coração do festejo. Pode ser
difícil tu imaginares, mas a verdade é que sobrevivemos todos. Mesmo depois de
termos ouvido amiúde “a tua mãe não se queixou”. Obviamente, a expressão foi banalizada.
É como a tal guerra nuclear, depois de Nagasaki já ninguém se impressiona com
cogumelos de fumo lá longe e oferecem-se bombas por tudo e por nada. Todos nós
já estávamos tão acostumados e tínhamos trivializado tanto que aquilo já não afectava
ninguém. Era como aquelas pessoas que usam e abusam do “portanto” ou “ou seja”
nas suas expressões, nem se dava conta, proferíamos “a tua mãe não se queixou”
de forma muito coloquial, à laia daquele piri-piri que dá outro gostinho à
comida.
É claro que a banalização não era
consensual. Havia sempre uns tipos que desconheciam a leviandade com que
insultávamos e levavam as coisas muito a sério. Um desses gajos era o Rabicó.
Nem de propósito, foi o Dentão que lhe colocou a alcunha. Isto depois de termos
passado junto ao território deles, incarnado no prédio onde morava o Otário, as
escadinhas contíguas e talvez os dois prédios mais abaixo, meio anónimos e que
até poderiam ser território não reclamado. O grupo do Rabicó estava lá e mandou
umas bocas quando nós passámos. Deviam estar a comentar os jeans Soviet estrategicamente
rasgados do Raposa ou os Stan Smith novinhos do Dentão. O Dentão era um gajo
sempre de olho num bom bate-boca e, já no topo das escadinhas, responde bem
sonoramente “…MAS A TUA MÃE NÃO SE QUEIXOU!” e todos nós sorrimos por termos
adivinhado precisamente o que se sucedera. Na boa, íamos a seguir caminho para
fumar um Marlboro no campo de ténis, onde o Macieira iria criar uma piscina de
cuspo, um lago de pequenas escarradelas que mandava mecanicamente após uma
baforada. Toda a gente sabia onde o Macieira tinha fumado o seu cigarro
secreto: era olhar para o chão e vê-lo alagado por uma substância viscosa, meio
esbranquiçada, talvez ainda com algumas borbulhinhas. Porque o fazia, não sei; talvez
fosse catarro industrial ou mero exercício de estilo. O que sei é que o Rabos
também deu largas à sua arte cuspideira durante a cigarrada por algum tempo
e que o Coratinni, um puto que nem sequer fumava, era ainda pior e mais sonoro
nesse métier. Mas o Rabicó sentiu-se ofendido. Perdeu subitamente a loquacidade,
galgou as escadas a correr num desvario e encarou o Dentão de peito feito,
“olha lá, o que é que DISSESTES sobre a minha mãe?” – mesmo assim, que o
pessoal na vida real fala mal (e se fosse para ter colocado aquilo por escrito,
aposto que teria escrito “disses-tes”). Houve algum burburinho, testas
encostadas, pessoal a tentar separar, troca de argumentos salpicados por mais
insultos, mas aquilo lá foi apaziguado sem marcas de maior. O Rabicó e o seu
grupo é que nunca mais caíram nas nossas graças. Nós éramos tipos não-alinhados
e heterogéneos. O gajo era todo do punk consciente, com as correntezinhas
dependuradas nas presilhas das calças e tudo, possuíam um hino anti-caçadores com
uma relativa notoriedade e organizavam uma fanzine da cena, mas isso agora já
deve ter passado e o gajo se calhar trabalha numa firma que vende talheres,
está careca e pálido de tanta soja que teve de comer e até já não sabe onde param
os álbuns originais dos Bad Religion. É o que costuma acontecer a estes gajos
com a idade, vão do straight-edge para o straight-into-conformity. São as
vicissitudes da vida, como deves perceber. A namorada dele na altura era um
gaja com fama de “foder bem” e cuja virgindade já tinha sido perdida antes dos
16, segundo reza a lenda. São famas que perduram e que a tornavam atipicamente
popular entre a mole masculina demasiado necessitada duma relação sexual
propriamente dita. Atipicamente, porque a gaja não era nada de especial. Nada
de especial mesmo, até para um adolescente carente… esquece, não há limites para
um adolescente carente; a gaja era muito míope e fustigada por uma acne ténue,
mas visível, e nem isso nos impedia de querer ficar junto dela nas visitas de
estudo. “Fodia bem”, dizia-se à boca cheia, elevando as férteis fantasias
pubescentes a patamares estratosféricos, e ela anuía, entre risinhos que apoucavam
ainda mais os olhinhos dela atrás dos óculos, não enjeitando essa popularidade.
A de “foder bem”, não a da miopia, bem entendido. No fundo, seria a vingança
dela perante as outras gajas mais bonitas mas não tão afoitas. O problema é que
ela começou a dizer que tinha estabilizado, sentindo uma maturidade precoce por
volta dos 17 anos, num aparente momento de clarividência que muitas groupies
não chegam a conhecer por uma vez na vida. Não queria forrobodó com mais
ninguém que não aquele lingrinhas movido a vegetais. Então que se fodesse. Sabes
como é, um gajo naquela altura não está para ficar à espera. Ademais, a acne só
tinha tendência para piorar e ninguém tinha orçamento para o Clearasil. E ela
foi sendo relegada à medida que novos valores despontaram na área. Acho que os
vinte-e-poucos anos lhe devem ter batido forte, quando se apercebeu, qual Limp
Bizkit, que a linha que separa o estrelato instantâneo do anonimato é quase
imperceptível. Se hoje não está casada com um nerd com um bom emprego e com
filhos míopes todos saídos a ela, então que me caia um piano em cima. Um
Steinway & Sons, que é para ser esmagado com classe. Ao contrário dela e do
estúpido do Rabicó.
Mas sabes o que me inquieta
agora, miúdo? É não poder dizer, com propriedade, “a tua mãe não se queixou”. A
tua mãe. Mesmo. Isto porque ainda não tive a oportunidade de deixar-lhe
satisfeita. E eu acho que a tua mãe não se importava de se satisfazer comigo,
caso nos desinibíssemos a valer. Isto é, ela não se deveria queixar. Talvez não
percebas nem te interesses por isso, não faz mal, eu provavelmente estou a
precipitar as minhas conclusões, mas alguns dos teus amigos já devem ter
comentado a forma física dela: a teimosia que ela demonstra em envergar vestes
muito leves e arejadas no Verão, donde espreitará a cabecinha dum soutien
cai-cai; se calhar, nem traz soutien, que quando um tipo não vislumbra as alças
do soutien pelos ombros ou costas começa logo a magicar; a maneira como cruza
aquelas pernas carnudas e bronzeadas, onde não há sinal de varizes nem de
celulite, aquelas cuecas que se percebem estar a perder-se rabo adentro e os
sorrisos e toques que dá quando se despede com dois beijinhos bem dados. Não,
ela não encosta só a cara e faz barulho como aquela gente que parece ter um
certo asco ao intercâmbio de germes faciais, ela move os lábios para beijar e
consuma o acto. É toda uma insinuante simpatia que se materializa. Todo um
outro nível. Certamente que algum deles já bateu valentes punhetas a pensar
nela, que a fantasiou angelical numa cama de pétalas ou apertada em vinil negro
qual pantera de boca escarlate, a abrir delicadamente as pernas revestidas por
uma pele aveludada para revelar o que vinha na mala do Pulp Fiction, ou
demasiado arrojada nas palavras enquanto improvisa um lento strip-tease,
envolvida pelo fumo absoluto duma cigarrilha de aroma perverso que preenche o
quarto a meia-luz. A nossa mente estica-se até longínquos horizontes de intensa
carnalidade, movida por estímulos que abrangem todos os sentidos. A tua mãe é da
estirpe que fomenta a nossa imaginação, a que possui o mapa preciso para
alcançarmos esses tais horizontes de luxúria. Sentimo-la diferente das outras;
por ser experiente mas conservada; por irradiar sensualidade sem se render ao
vulgar; por ser um fruto proibido que transparece uma dose adequada de malícia.
Fisicamente, ela até parece uma versão revista e aumentada da Lisa Kudrow. Mas
não ousaria comparar a tua mãe com uma gaja que apareceu numa sitcom enjoativa.
Tudo o que mete a Jennifer Anniston é deveras entediante, independentemente do
que se passe à volta. E se pensares que esse é o ponto alto duma carreira,
actuar numa série que nunca mais acaba, onde os episódios parecem todos iguais
e com plot-twists cada vez mais absurdos, só para esticar mais uma temporada e dar
de comer aos que ressacam de entretenimento apropriado a um Domingo à tarde,
então estás a perceber o que quero dizer e que eu jamais diminuiria a tua mãe
dessa forma. E jamais escreverei dias da semana e meses com letra minúscula,
quer as séries se chamem “Friends” ou “How I Met – voilà! – YOUR MOTHER”. A tua
mãe – a palavra-chave aqui: a tua mãe é uma mulher em cheio e é uma pena que,
naturalmente, não consigas reconhecê-lo sem pareceres um tarado qualquer. Em
resumo, em vez do complexo de Édipo, tens o dilema do Stiffler.
Estou
consciente de que poderás estar perplexo. Afinal, é comum nós sentirmos as
nossas mães como entes castos e assexuados. O último reduto da decência. Somos
todos parentes de Cristo no sentido em que, nas nossas mentes, fomos plantados
lá no útero dela sem nenhuma obscenidade envolvida, tal como Cristo na sua
épica narrativa. Queremos acreditar que somos divinos à nossa maneira. Não
visualizamos a nossa mãe de quatro a pedir por mais e mais. Não. Nunca houve
ninguém que chocasse os seus testículos inestéticos e felpudos contra a sua
vulva, imbuído por um espírito de devassa, a chamar-lhe nomes e a puxar-lhe os
cabelos para gáudio da pobre mãezinha. Qual gáudio. Nem pensar. Só pode ter
sofrido muito e estar profundamente envergonhada, caso isso tivesse acontecido.
Ah, ela queixar-se-ia, e muito! Ultrapassa-nos a ideia de a nossa mãe possuir
desejos sexuais. A não ser que a nossa mãe se chamasse Carolina Patrocínio, mas
também aí não teríamos de nos preocupar muito porque já estaríamos com um
melanoma fatal. Espero que a Carolina imploda na próxima selfie e que se queixe
que foi devido à falta de ginásio. Ela tem toda a cara de quem leva com
saraivadas de esperma do seu marido-cavalo nas fuças, sémen esse que depois
descai por aqueles ossos abaixo até se anichar naquela cova que tem entre as
pseudo-mamas para aí ressequir em paz, num longo processo de maturação que a levará
a raspar a casca daí resultante com uma unha devidamente envernizada e utilizar
esse produto como topping dum dos seus batidos extremamente saudáveis. Mas ela
talvez não se queixe de nada, aquilo é tudo sorrisos e eventos maravilhosos,
desde as praias das Caraíbas com aquela gente muito pitoresca que vende
bugigangas nas praias, gente tão pobre e tão adorável, aos abdominais pavorosos
que faz questão de debitar no Instagram. É pouco crível que ela se queixe. Como
a tua mãe, por motivos diferentes. É engraçado constatar que “como” na
frase anterior tanto pode ser uma conjunção ou uma forma verbal.
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