09 junho 2016

Actriz Francesa

Tenho de reparar em quem está a bafejar atrás de mim. Estou preso num transporte lotado e há alguém que me exala um bafo aquecido pela retaguarda. Até me levanta os cabelos da nuca. Faz-me impressão. Os calores não requisitados dos outros acicatam os meus próprios calores. Costuma ser gente suja e de entranhas apodrecidas, com doenças respiratórias contraídas através de vidas miseráveis e com o auxílio de genes de qualidade inferior. É sempre assim. A gente gira não resfolega, é subtil na filtragem do ar. E, ainda por cima, toca-me várias vezes, meio de raspão, à laia de quem está no Jamaica só a curtir o som. Nesse contexto ainda passa, mas desta vez, como estou sóbrio, é simplesmente repugnante. Os outros utentes estão sempre imundos, sei lá por onde andaram. Pessimista como sempre, imagino um ogre repulsivo a roçar-se em mim, com ares de estuprador. Os velhos? Do mais nojento que há. As gajas? As novas e bonitas? As únicas que se escapam. A minha única esperança. Tenho de confirmar quem é esse ser arfante. Mas a lotaria nunca sai e não se confirmou esse caso, como suspeitava. Não era nenhuma gaja nova e bonita, era um ser masculino e feio, como os outros todos. Um ogrezito anónimo, vá lá. Tal como eu, porém numa versão ainda mais decadente. Contive o meu asco até o espaço finalmente clarear. Não era ela, numa rara oportunidade de estar perto dela e poder culpar as circunstâncias desse acaso. Uma lástima.

Acho que ela nunca recuperou dum grande desgosto. Calculo que amoroso. Tudo nela transpira dolência. Desde os cabelos que pendem melancólicos pelos ombros, passando pelo olhar misterioso que tanto explode radiante duma euforia momentânea como se distancia num silêncio inquebrantável, passando pelos movimentos delicados que quase pedem licença ao cérebro. Umas unhas de manicura, uma pele lisa com um aroma limpo que lhe perpassa os poros, sugando as atenções para ela à sua passagem. E depois toda aquela aura de tragédia consumada suspensa sobre ela, como um halo invisível de decepção a brilhar por sobre aquele corpo bonito, maneirinho, torneado apenas o quanto baste. Possui um charme natural que julgo que não desconfia possuir. Das poucas vezes que a vi sorrir, gostei. Era um sorriso lavado, sincero, com os dentes alinhados e cuidados. Fazia todo o rosto sorrir ao mesmo tempo. Dava gosto. É pena ela não sorrir mais. Talvez não dê para mais, talvez ninguém perceba o seu sentido de humor. Não sei de nada. Apenas suponho. Não me chego muito perto. Penso que poderia perturbar o seu sossego maldito. Não tenho tanto despudor. Problema meu.

Ela faz-me lembrar uma actriz francesa. Não a Amèlie Poulain, nem aquelas frou-frous com franjas irritantes que incandescem o feminismo. Isso é tudo treta. Só mesmo as gajas para lhes acharem modelos de virtude, naquele cinismo tão feminino: eu gosto dela apenas por ela ser mais frustrada que eu ou por me ser absolutamente distante. É assim que elas funcionam, não passam sem elogios desmedidos que fedem a falsidade e são genericamente motivadas por intenções mais ou menos subliminares. As gajas até podem admitir que admiram uma modelo invejada pelo mundo, mas lá no fundo invejam-nas ainda mais que o mundo. Ela faz-me lembrar é aquelas tipas que entram em filmes obscuros e que têm uma grande propensão para se despir e fazer sexo, mesmo, e especialmente, nas situações mais inesperadas. Como se a presumida dor que lhes consome a alma apenas pudesse ser combatida sem roupa. Como se a roupa, mesmo a mais larga, funcionasse como um colete-de-forças do espírito. Despem-se porque se querem libertar, porque querem provocar, porque sim, porque lhes sabe bem. A nudez é uma arte, uma casualidade trivial, nunca uma obscenidade para esta gente. Está-lhes no sangue. E se ela me parece francesa é porque associo as francesas a esse comportamento tão desprendido e simultaneamente impregnado de libido, sem nunca descurar a classe que separa o bom gosto da rameirice. As nórdicas também parecem ser muito lestas a despir-se, são louras e muito abertas em vários sentidos, mas há um “je ne sais quoi” nas francesas que se auto-explica, porque “je ne sais quoi” é uma expressão francesa. É certamente preconceito, mas ela parece que ouve “Je t’aime… Moi Non Plus” em loop e, claro, nua, na sua ampla cadeira de verga e com os cortinados alvos a esvoaçar na brisa estival que entra pelas suas largas janelas num quarto desarrumado, polvilhado por livros de alfarrabista e fotografias artísticas a preto-e-branco espalhadas no soalho poeirento, enquanto perscruta o ambiente onde circula um ténue fumo de cigarrilha carregando uma tristeza indecifrável. Um misto de Emmanuelle, Eva Green naquele filme em que vão para o ménage numa banheira e Jane Birkin, que não era francesa mas encaixava que nem uma luva nesse imaginário tão Maio de ’68. Sim, ela devia entrar numa dessas séries de época. E sim, só os franceses descreveriam uma orgia com a subtileza fonética de “ménage”.

Ninguém sabe ao certo quando foi o primeiro dia do resto da sua vida. O momento da viragem. Especulamos que dantes ela seria uma fonte de alegria, por causa das feições jovens e da força do seu raro sorriso, que hoje foi transformada num poço de angústia. Deve ter sido forte, muito forte. É o que nos diz o mutismo arrastado do seu olhar. E as pessoas à volta, que tanto se confundem com amigos, gracejam, brincam, actuam com a normalidade possível para lhe arrancar das trevas onde se afundou. E ela esforça-se um pouco, sorri com uma notável condescendência, mas é temporário. A amargura não tarda em reclamá-la de volta e ela, prestimosa, entrega-se com uma beleza cruel aos seus braços. A tristeza é muito bonita para quem está sentado numa poltrona a contemplá-la. A dor dos outros, quando bem esgalhada, pode ser das melhores coisas a que temos o prazer sórdido de assistir. Quase que queremos ser assim, tão estilisticamente abatidos. No caso dela, é mesmo um espectáculo digno de ovação prolongada. E ela sempre a olhar para um ponto não identificado no horizonte, suspirando resignação, olhos como os daqueles cãezinhos fofos que parecem ter nascido tristes, chega a ser comovente. Ela nunca mais se refez. Hoje ela apenas tolera. Nunca demonstra um entusiasmo sustentado, todos sabemos que ela apenas vem à tona por breves instantes antes da maré da taciturnidade a levar de volta. Hoje ela já não acredita nem se apaixona; já não derrama lágrimas nem sente raiva. Ela talvez já não sinta de todo. Apagaram-lhe a chama do coração com um feroz extintor de desilusão. Onde dantes poderiam brotar pujantes emoções, hoje é um baldio corrido a herbicida. Alguém lhe matou o calor e a ilusão. Hoje ela é praticamente um autómato. Um lindo robot de pele e osso, tendões e sangue, mas um ser que já não irá sentir uma emoção maior do que a frustração que um dia lhe vassourou de cima a baixo.

Talvez ela nem se dê ao trabalho de perceber que, apesar de tudo, ela move gente à sua volta. Gente incauta que, na sua flagrante ingenuidade, convence-se que será a gente certa para lhe retornar o viço que lhe deixaram roubar prematuramente. Eles bem tentam, os tolos, com os seus truques, prendas, piadas, partilhas nas redes sociais e selfies patetas, mas está tudo plasmado naqueles olhos ausentes e na sua expressão moribunda, por muito belo que seja o cenário: quem lhe destruiu deixou cicatrizes tão profundas que existem poucas hipóteses de restituição. Não há volta a dar nas fatalidades. É mesmo como aquelas francesas dos filmes que fazem as maravilhas dos críticos que estão num estado de permanente inquietação e desespero. “Femmes fatales” que vêm em pacotes giríssimos que ninguém sabe ao certo como abrir. Gajas impenetráveis na sua essência, autênticas felinas nas suas oscilações humorísticas, por muito que se dêem ao sexo. O sexo é apenas um exercício automático. Um orgasmo é sempre um orgasmo, mas isso não quer dizer nada para além do momento do clímax. Ela até pode gemer, mas será apenas uma reacção física, sem correspondência espiritual. Porque até no mais firme acto sexual ela terá a cabeça nas nuvens, naquela cadeira de verga soprada pelo vento na sala vazia, talvez suspirando por aquele velho livro de folhas amareladas que acumula poeira na penumbra do soalho, revisitando mentalmente um passado que jamais regressará e coleccionando presentes insossos, esquecíveis, para consumo imediato. O futuro nem se pensa. Nunca está com quem quer, como quer e, se algum dia estiver, estará tão vacinada pela tristeza que não irá perceber essa fortuna. Ela tornou-se triste, distante, por querer ter paz. Foi a sua defesa. Percorre um longo caminho com sonhos idílicos tornados pesadelos, que lhe formam um corredor estreito donde não consegue escapar e que lhe tentam pregar rasteiras e dar-lhe com as trombas na dura realidade. Agora só quer mesmo paz, fugir sem saber como da viela por onde a sua vida se enfiou. Isso já não é coisa pouca.


Não era ela no transporte, mas havia lá uma mulher que é a versão envelhecida da Karen Lancaume (existem outras versões do seu nome). Isto é, significativamente mais preenchida a nível corporal, com uns lábios notoriamente mais finos, olhares perceptivelmente menos lascivos e defendidos por uns óculos de hastes coloridas, no global bem menos sensual, mas há lá uns traços evidentes de semelhança e, quem sabe?, com menos uns 20 anos até seria “bem boa” – há sempre este “wishful thinking” para com as mulheres mais velhas. A Karen Lancaume é a tipa da foto e é uma ex-actriz pornográfica. Francesa, obviamente, e com uma existência trágica. Google it. O certo é que ela também é uma actriz francesa, embora menos dada a crónicas majestosas dos críticos de cinema nas publicações sofisticadas, que não costumam poupar encómios à cinematografia francesa mas não a esta indústria em particular… pelo menos em público. Porém, Karen não deixou de ser uma actriz com muitos méritos. Vi algumas cenas e ela ajeitava-se bem dentro do género. Dos movimentos mais emblemáticos, registe-se a forma como dava o cu, como as francesas costumam dar, em cavalgadas multipessoais que deram boas cenas à história do cinema pornográfico, com lingerie cuidada, cenários luxuosos e os característicos “nham-nham-nhams” balbuciados em gaulês, que soam bem mais provocantes que o rude “fuck me in the ass, baby” proferido em tom de ameaça redneck americana numa roulotte. A Karen possuía, lá está, um “je-ne-sais-quoi” que as outras não tinham. Não sei se pela tez da pele, pelos olhares insidiosos, pelo nariz afiado ou pelos lábios polposos, o certo é que a Karen costumava roubar as cenas de sexo onde participava. Não tinha implantes ou tatuagens, o que era comum nos anos 90, e transparecia uma naturalidade excitante que não abundava. Parecia mesmo que gostava do que fazia; chama-se a isto profissionalismo, que é tanto melhor quanto menos dermos por ele. Tinha o seu exotismo, sim, e a sua elegância, também, o que não era fácil de conseguir, mesmo para uma francesa. Os franceses estão convencidos que são mais sensuais que o resto do mundo, quase por decreto histórico. Recordemo-nos que os franceses, até quando fazem revoluções, escolhem a imagem duma mulher de mamas ao léu para liderar a turba. E a Karen deu o seu contributo como pôde. Eu estou-lhe reconhecido. Já esta sua sósia madura é apenas mais uma utente que faz o que pode para passar o seu tempo durante a viagem e uma pessoa que não fará a mínima ideia de quem me faz lembrar. Melhor assim, suponho, que também deveria ser embaraçoso explicar-lhe. Mesmo naqueles minutos que se assemelham a horas de tédio enlatado e em que qualquer distracção, até a mais absurda, é bem-vinda.

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