Tenho de reparar em quem está a
bafejar atrás de mim. Estou preso num transporte lotado e há alguém que me exala
um bafo aquecido pela retaguarda. Até me levanta os cabelos da nuca. Faz-me
impressão. Os calores não requisitados dos outros acicatam os meus próprios
calores. Costuma ser gente suja e de entranhas apodrecidas, com doenças
respiratórias contraídas através de vidas miseráveis e com o auxílio de genes
de qualidade inferior. É sempre assim. A gente gira não resfolega, é subtil na
filtragem do ar. E, ainda por cima, toca-me várias vezes, meio de raspão, à
laia de quem está no Jamaica só a curtir o som. Nesse contexto ainda passa, mas
desta vez, como estou sóbrio, é simplesmente repugnante. Os outros utentes estão
sempre imundos, sei lá por onde andaram. Pessimista como sempre, imagino um
ogre repulsivo a roçar-se em mim, com ares de estuprador. Os velhos? Do mais
nojento que há. As gajas? As novas e bonitas? As únicas que se escapam. A minha
única esperança. Tenho de confirmar quem é esse ser arfante. Mas a lotaria
nunca sai e não se confirmou esse caso, como suspeitava. Não era nenhuma gaja
nova e bonita, era um ser masculino e feio, como os outros todos. Um ogrezito
anónimo, vá lá. Tal como eu, porém numa versão ainda mais decadente. Contive o
meu asco até o espaço finalmente clarear. Não era ela, numa rara oportunidade
de estar perto dela e poder culpar as circunstâncias desse acaso. Uma
lástima.
Acho que ela nunca recuperou dum grande desgosto. Calculo que amoroso. Tudo nela transpira dolência. Desde os
cabelos que pendem melancólicos pelos ombros, passando pelo olhar misterioso que
tanto explode radiante duma euforia momentânea como se distancia num silêncio inquebrantável,
passando pelos movimentos delicados que quase pedem licença ao cérebro. Umas unhas
de manicura, uma pele lisa com um aroma limpo que lhe perpassa os poros,
sugando as atenções para ela à sua passagem. E depois toda aquela aura de
tragédia consumada suspensa sobre ela, como um halo invisível de decepção a
brilhar por sobre aquele corpo bonito, maneirinho, torneado apenas o quanto
baste. Possui um charme natural que julgo que não desconfia possuir. Das poucas
vezes que a vi sorrir, gostei. Era um sorriso lavado, sincero, com os dentes
alinhados e cuidados. Fazia todo o rosto sorrir ao mesmo tempo. Dava gosto. É
pena ela não sorrir mais. Talvez não dê para mais, talvez ninguém perceba o seu
sentido de humor. Não sei de nada. Apenas suponho. Não me chego muito perto.
Penso que poderia perturbar o seu sossego maldito. Não tenho tanto despudor.
Problema meu.
Ela faz-me lembrar uma actriz
francesa. Não a Amèlie Poulain, nem aquelas frou-frous com franjas irritantes que
incandescem o feminismo. Isso é tudo treta. Só mesmo as gajas para lhes acharem
modelos de virtude, naquele cinismo tão feminino: eu gosto dela apenas por ela ser
mais frustrada que eu ou por me ser absolutamente distante. É assim que elas
funcionam, não passam sem elogios desmedidos que fedem a falsidade e são genericamente
motivadas por intenções mais ou menos subliminares. As gajas até podem admitir
que admiram uma modelo invejada pelo mundo, mas lá no fundo invejam-nas ainda
mais que o mundo. Ela faz-me lembrar é aquelas tipas que entram em filmes
obscuros e que têm uma grande propensão para se despir e fazer sexo, mesmo, e
especialmente, nas situações mais inesperadas. Como se a presumida dor que lhes
consome a alma apenas pudesse ser combatida sem roupa. Como se a roupa, mesmo a
mais larga, funcionasse como um colete-de-forças do espírito. Despem-se porque se
querem libertar, porque querem provocar, porque sim, porque lhes sabe bem. A
nudez é uma arte, uma casualidade trivial, nunca uma obscenidade para esta
gente. Está-lhes no sangue. E se ela me parece francesa é porque associo as
francesas a esse comportamento tão desprendido e simultaneamente impregnado de
libido, sem nunca descurar a classe que separa o bom gosto da rameirice. As
nórdicas também parecem ser muito lestas a despir-se, são louras e muito
abertas em vários sentidos, mas há um “je ne sais quoi” nas francesas que se
auto-explica, porque “je ne sais quoi” é uma expressão francesa. É certamente
preconceito, mas ela parece que ouve “Je t’aime… Moi Non Plus” em loop e,
claro, nua, na sua ampla cadeira de verga e com os cortinados alvos a esvoaçar
na brisa estival que entra pelas suas largas janelas num quarto desarrumado, polvilhado
por livros de alfarrabista e fotografias artísticas a preto-e-branco espalhadas
no soalho poeirento, enquanto perscruta o ambiente onde circula um ténue fumo
de cigarrilha carregando uma tristeza indecifrável. Um misto de Emmanuelle, Eva Green
naquele filme em que vão para o ménage numa banheira e Jane Birkin, que não era
francesa mas encaixava que nem uma luva nesse imaginário tão Maio de ’68. Sim,
ela devia entrar numa dessas séries de época. E sim, só os franceses
descreveriam uma orgia com a subtileza fonética de “ménage”.
Ninguém sabe ao certo quando foi
o primeiro dia do resto da sua vida. O momento da viragem. Especulamos que
dantes ela seria uma fonte de alegria, por causa das feições jovens e da força
do seu raro sorriso, que hoje foi transformada num poço de angústia. Deve ter
sido forte, muito forte. É o que nos diz o mutismo arrastado do seu olhar. E as
pessoas à volta, que tanto se confundem com amigos, gracejam, brincam, actuam
com a normalidade possível para lhe arrancar das trevas onde se afundou. E ela
esforça-se um pouco, sorri com uma notável condescendência, mas é temporário. A
amargura não tarda em reclamá-la de volta e ela, prestimosa, entrega-se com uma
beleza cruel aos seus braços. A tristeza é muito bonita para quem está sentado
numa poltrona a contemplá-la. A dor dos outros, quando bem esgalhada, pode ser
das melhores coisas a que temos o prazer sórdido de assistir. Quase que
queremos ser assim, tão estilisticamente abatidos. No caso dela, é mesmo um
espectáculo digno de ovação prolongada. E ela sempre a olhar para um ponto não
identificado no horizonte, suspirando resignação, olhos como os daqueles
cãezinhos fofos que parecem ter nascido tristes, chega a ser comovente. Ela
nunca mais se refez. Hoje ela apenas tolera. Nunca demonstra um entusiasmo
sustentado, todos sabemos que ela apenas vem à tona por breves instantes antes
da maré da taciturnidade a levar de volta. Hoje ela já não acredita nem se
apaixona; já não derrama lágrimas nem sente raiva. Ela talvez já não sinta de
todo. Apagaram-lhe a chama do coração com um feroz extintor de desilusão. Onde
dantes poderiam brotar pujantes emoções, hoje é um baldio corrido a herbicida.
Alguém lhe matou o calor e a ilusão. Hoje ela é praticamente um autómato. Um
lindo robot de pele e osso, tendões e sangue, mas um ser que já não irá sentir
uma emoção maior do que a frustração que um dia lhe vassourou de cima a baixo.
Talvez ela nem se dê ao trabalho
de perceber que, apesar de tudo, ela move gente à sua volta. Gente incauta que,
na sua flagrante ingenuidade, convence-se que será a gente certa para lhe
retornar o viço que lhe deixaram roubar prematuramente. Eles bem tentam, os
tolos, com os seus truques, prendas, piadas, partilhas nas redes sociais e
selfies patetas, mas está tudo plasmado naqueles olhos ausentes e na sua
expressão moribunda, por muito belo que seja o cenário: quem lhe destruiu deixou cicatrizes
tão profundas que existem poucas hipóteses de restituição. Não há volta a dar
nas fatalidades. É mesmo como aquelas francesas dos filmes que fazem as
maravilhas dos críticos que estão num estado de permanente inquietação e
desespero. “Femmes fatales” que vêm em pacotes giríssimos que ninguém sabe ao
certo como abrir. Gajas impenetráveis na sua essência, autênticas felinas nas
suas oscilações humorísticas, por muito que se dêem ao sexo. O sexo é apenas um
exercício automático. Um orgasmo é sempre um orgasmo, mas isso não quer dizer
nada para além do momento do clímax. Ela até pode gemer, mas será apenas uma
reacção física, sem correspondência espiritual. Porque até no mais firme acto
sexual ela terá a cabeça nas nuvens, naquela cadeira de verga soprada pelo
vento na sala vazia, talvez suspirando por aquele velho livro de folhas
amareladas que acumula poeira na penumbra do soalho, revisitando mentalmente um
passado que jamais regressará e coleccionando presentes insossos, esquecíveis,
para consumo imediato. O futuro nem se pensa. Nunca está com quem quer, como
quer e, se algum dia estiver, estará tão vacinada pela tristeza que não irá
perceber essa fortuna. Ela tornou-se triste, distante, por querer ter paz. Foi
a sua defesa. Percorre um longo caminho com sonhos idílicos tornados pesadelos,
que lhe formam um corredor estreito donde não consegue escapar e que lhe tentam
pregar rasteiras e dar-lhe com as trombas na dura realidade. Agora só quer
mesmo paz, fugir sem saber como da viela por onde a sua vida se enfiou. Isso já
não é coisa pouca.
Não era ela no transporte, mas
havia lá uma mulher que é a versão envelhecida da Karen Lancaume (existem
outras versões do seu nome). Isto é, significativamente mais preenchida a nível
corporal, com uns lábios notoriamente mais finos, olhares perceptivelmente
menos lascivos e defendidos por uns óculos de hastes coloridas, no global bem
menos sensual, mas há lá uns traços evidentes de semelhança e, quem sabe?, com
menos uns 20 anos até seria “bem boa” – há sempre este “wishful thinking” para com
as mulheres mais velhas. A Karen Lancaume é a tipa da foto e é uma ex-actriz
pornográfica. Francesa, obviamente, e com uma existência trágica. Google it. O
certo é que ela também é uma actriz francesa, embora menos dada a crónicas
majestosas dos críticos de cinema nas publicações sofisticadas, que não costumam
poupar encómios à cinematografia francesa mas não a esta indústria em
particular… pelo menos em público. Porém, Karen não deixou de ser uma actriz
com muitos méritos. Vi algumas cenas e ela ajeitava-se bem dentro do género.
Dos movimentos mais emblemáticos, registe-se a forma como dava o cu, como as
francesas costumam dar, em cavalgadas multipessoais que deram boas cenas à história
do cinema pornográfico, com lingerie cuidada, cenários luxuosos e os característicos
“nham-nham-nhams” balbuciados em gaulês, que soam bem mais provocantes que o
rude “fuck me in the ass, baby” proferido em tom de ameaça redneck americana
numa roulotte. A Karen possuía, lá está, um “je-ne-sais-quoi” que as outras não
tinham. Não sei se pela tez da pele, pelos olhares insidiosos, pelo nariz
afiado ou pelos lábios polposos, o certo é que a Karen costumava roubar as
cenas de sexo onde participava. Não tinha implantes ou tatuagens, o que era
comum nos anos 90, e transparecia uma naturalidade excitante que não abundava. Parecia
mesmo que gostava do que fazia; chama-se a isto profissionalismo, que é tanto
melhor quanto menos dermos por ele. Tinha o seu exotismo, sim, e a sua
elegância, também, o que não era fácil de conseguir, mesmo para uma francesa. Os
franceses estão convencidos que são mais sensuais que o resto do mundo, quase
por decreto histórico. Recordemo-nos que os franceses, até quando fazem
revoluções, escolhem a imagem duma mulher de mamas ao léu para liderar a turba.
E a Karen deu o seu contributo como pôde. Eu estou-lhe reconhecido. Já esta sua
sósia madura é apenas mais uma utente que faz o que pode para passar o seu
tempo durante a viagem e uma pessoa que não fará a mínima ideia de quem me faz
lembrar. Melhor assim, suponho, que também deveria ser embaraçoso explicar-lhe.
Mesmo naqueles minutos que se assemelham a horas de tédio enlatado e em que
qualquer distracção, até a mais absurda, é bem-vinda.
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