Dizem que um mal nunca vem só.
Que quando ainda estamos a tentar perceber a dimensão da adversidade, logo
surge a cabecinha do demónio por detrás da ponta do iceberg, pronto a
infernizar-nos mais a vida. “Infernizar” é coisa que os demónios fazem
reconhecidamente bem. E, acreditem, o iceberg é bem maior do que aquilo que
conseguimos depreender à primeira vista. Perguntem ao Di Caprio e aos outros
desgraçados do Titanic. Ao contrário das coisas boas, cuja utilidade percebida
parece decrescer com a repetição, as coisas más tendem a aumentar o seu nível
de desconforto à medida que se sucedem. O mal tem destas coisas maléficas. E a
cabecinha do demónio demonstra uma capacidade indiscutível para engendrar
maldades. Algum sentido empreendedor, também: reconhecendo o potencial
sinergético, estabeleceu um protocolo com o Murphy da Lei de Murphy; esta
parceria tem produzido sumptuosos frutos de pessimismo, traduzidos em sabores
tão diversificados como o azar, a desilusão, a dor e a tristeza, que só valorizam
ambos. Senão, atente-se: quantas vezes receámos que as coisas corressem mal e
elas correram mesmo? E quantas vezes, depois de comprovarmos o mal que se nos
abateu, tememos que pudesse ser pior… e acaba mesmo por ser?
Estás indignado porque os
impostos voltaram a subir? Então prepara-te porque vão criar uma sobretaxa
adicional qualquer, precisamente a pensar em ti. Estás chateado porque o carro
não pega e vais chegar atrasado? Então ainda hás-de ficar pior quando vires que
a conta do mecânico inclui outras coisas que nem suspeitavas que o carro tinha.
Estás piurso porque o chefe agendou uma reunião para o final da tarde, quando
tinhas previsto sair mais cedo? Então ficarás de rastos quando souberes que ele
está a prever deportar-te para Angola. Estás inconsolável porque a tua equipa
perdeu injustamente contra o rival, depois de uma arbitragem tendenciosa? Então
fica a saber que o teu melhor jogador contraiu uma lesão que o vai arredar
durante o resto da temporada. Estás deprimido porque a tua namorada te rejeita
sexo e parece andar a ignorar-te? Então até vais ficar petrificado quando
descobrires que ela anda a fornicar com o instrutor do ginásio na tua própria
cama. Bolas, não podíamos ficar apenas com um simples mal, que já é mau que
baste, porque é que as circunstâncias insistem em punir-nos com redobrada malvadez?
O mal vem, no mínimo, aos pares; não é como as cerejas, luvas, sapatos, mamas
ou colhões, que vêm aos pares e, salvo algum fenómeno, não se estendem para
além da dupla; não é como o bem, que às vezes só vem parcelado em pequeninas
coisas boas, meros fogachos de algo que se desejava inteiro e na sua plenitude;
não, o mal entra de rompante e tem uma força própria que te ataca rapidamente em
mais que um nervo.
Não sei se é por compreender esta
facilidade de desdobramento do mal que esta religião dos Santos dos Últimos
Dias (LDS, na sua sigla inglesa – e eu durante muito tempo julguei ler LSD e
nem estranhei) emprega rapazinhos aos pares e manda-os missionar por aí. Eu até
gosto mais do termo “missionalizar”, mas o corrector diz-me que essa palavra
não existe. Estes rapazinhos são os Elders. Como o meu primo, mas o meu primo
tem a sorte de ter um “H” adicional que o distingue. E nunca anda com uma
plaquinha negra com o seu apelido visível no peito. Certamente que já todos
viram Elders a deambular por aí. Aos pares, evidentemente. Creio que seja para
combater melhor o mal multicéfalo que se lhes depara. Nunca se vê um Elder
solitário. Nunca. Até ao WC os gajos devem ir juntos. E, verdade seja dita,
nunca os vi a missionalizar (perdoem-me, mas gosto mais de escrever
“missionalizar”). Sempre que os vi, estavam calados e algo circunspectos. O que
é ser missionário para estes gajos, afinal? Basta andar por aí com a camisinha
branca, a gravatinha e a placa explícita ao peito para fazerem o trabalho
deles, que é basicamente passear, durante um exílio de um par de anos? É isso?
Bem, é chato, mas exequível. Trabalhar num call center por um mês será bem
pior. Ainda por cima, os Elders é que decidem quem abordar, se abordarem,
enquanto os coitados dos call centers levam com toda a raiva acumulada dos
outros, sem escolha. Lá está, o mal dos empregados dos call centers não se
esgota numa só vertente.
Deve haver certamente mais
qualquer coisa nos Elders do que andar a passear com o seu compadre durante
meses e meses no estrangeiro. Até parece um enredo algo homoerótico, ter dois
rapazinhos americanos, com tromba chapada de americano, com aquela pele fininha
de quem vem do midwest das pickups e da posse de arma generalizada, o queixo
quadrado e um sotaque presumivelmente gorduroso que nem um hambúrguer, ainda
imberbes, numa espécie de uniforme, a partilharem todas as experiências do
quotidiano num local remoto, envoltos numa mudez crónica e em jogos de troca de
olhares, sem grande espaço para a privacidade. Uma espécie de Brokeback
Mountain de cariz supostamente religioso. Para além dalguma
missionamentalização (adoro este neologismo que acabei de inventar) invisível,
suspeito que seja tudo uma preparação para poderem ser mórmons a sério. Ouvi
dizer que os mórmons são polígamos e talvez tenham de passar este tempo de
privação para poderem desfrutar a sua poligamia a valer. Eu de religião percebo
muito pouco, nem quero saber que ideia é essa dos “Santos dos Últimos Dias” e
acredito que não tenha a ver com os últimos dias dos saldos ou Black Fridays, mas
simpatizo com a ideia da poligamia. Pelo menos, é teoricamente interessante; na
prática, deve terminar com um grupo de gajas aos gritos a disputar a primazia
sobre o cartão de crédito para irem ao cabeleireiro e às compras e isso não é
assim tão divertido. Desconfio é que, para os Elders, a única posição que
conhecem é a de missionário e por isso a poligamia não será devidamente
apreciada. Eu sei, é uma piada fácil e que já estava prevista desde o início. Mesmo
que eu considere que, efectivamente, a posição de missionário é a melhor de
todas, pese o seu classicismo pouco kama-sutriano. É uma opinião legítima e
discordo em termos genéricos da afirmação “face down, ass up, that’s the way we
like to fuck”, da autoria d’ Os Lunáticos e constante do seu único hit “Estou
Na Lua”, que recolheu grandes simpatias nos idos de 1995. A partir daqui, já
não há mais nada de relevante para ler neste texto. Mas como já começaste a
ler, agora vais até ao fim e ficas ainda mais desiludida. Vais perder o teu
tempo e, pior, perdes o teu tempo com coisas desinteressantes. Eu bem que
alertei no início, o povo bem que avisou através dos seus epigramas, os Elders
bem que se defendem aos pares, que o mal nunca se fica pela unidade e aprecia a
companhia doutros males. Os sacanas.
Se o facto de os Elders andarem
aos pares os torna mais efectivos na luta contra o mal? Será que com eles o mal
pelo menos só vem isolado de cada vez, tira a senha e fica à espera na fila que
o seu numerozinho apareça a piscar no mostrador para então, ordeiramente,
espetar-nos golpes avulsos de má sorte? Não creio. Senão, éramos todos
simpatizantes da LDS, mas continuamos mais adeptos de LSD. Ou então tínhamos Elders
a entrar no Dragonball para acabar logo com aquilo, porque era para cima de 10-0
sobre o Mal. O mundo está na mesma, com muita porcaria, eles não mudam nada,
mas acham que sim com a sua abordagem diferenciada. É um erro natural das
religiões. A porcaria já vem de longe, assim como a mistificação da religião.
Já tem uns belos milhares de anos. Hoje apenas está mais exposta para todos e
qualquer um pode acreditar em muitas outras coisas. Há até uma igreja do bacon
na América e parece-me tão válida como qualquer outra, apenas não envia leitões
aos pares para serem comidos ao domicílio. Qualquer idiota já pode ter uma voz
mais ou menos pública e o que assistimos é à proliferação de idiotices pegadas.
Sejam explicitamente religiosas ou não. Mas este nem é o mal pior. O pior é que
somos nós mesmos que caucionamos as idiotices com “likes”, “shares” e “views”, que
valorizam o mínimo denominador comum e guindam estes parvalhões a um patamar de
poder e influência que dantes não passaria do perímetro dum quarto e que agora
pode preencher toda uma nação, toda uma geração, quiçá o próprio planeta. Como
se pudesse haver uma só maldade a atormentar-nos solitariamente neste mundo e
as respostas fossem simples. Não são, nunca foram e nunca serão. Como os Elders
nunca serão vistos a vaguear sozinhos na tua ou na minha terra.
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