19 novembro 2015

Eddie Vedder

O Eddie Vedder enjoa. Já enjoa há algum tempo. Apanhei uma sobredose de politicamente correcto, deve ser esta a causa deste desgosto. Houve um tempo em que até achava piada aos cabelos compridos, camisas de flanela ou militaristas, calças gastas e botas ou outro calçado ratado. E também às exortações para a libertação do Tibete, às ondas do mar e praias prístinas, às crianças que nunca conheceram o seu pai, às referências a uma espécie de mescla entre Sérgio Godinho com José Afonso nascida no Canadá que era o Neil Young e aos gajos que andavam sempre com uma viola atrás, não fossem eles encontrar uma fogueira onde pudessem demonstrar toda a sua imperícia a tocar “Black” ou “Daughter”. Eu considerava que estas eram das melhores canções de sempre, mas naquele tempo ainda sabia menos da vida do que agora. Havia todo um conceito estético e espiritual associado ao Vedder, que granjeou grande sucesso na juventude chamada “fixe” nos anos 90 e cujos efeitos ainda se podem encontrar, com a natural adaptação aos tempos modernos. O Vedder era o super-fixe, o modelo a seguir, porque fazia música porreira e defendia causas ambientais e sociais de justiça inquestionável. Ele era o filho que qualquer hippie desejaria ter, a representação da rebeldia consciente, fundada e confinada. Não era um fogo contestatário niilista e vazio, de consequências imprevisíveis, como o que deflagra na juventude quotidiana; era uma fogueira que era olhada com certa parcimónia pelos poderes, que nessa altura estavam bem definidos e eram sobretudo pais e professores. A fogueira está sempre presente quando se fala de Vedder e das suas sósias, os pearljamistas, nem que como metáfora. Todos nós conhecemos algum pearljamista, algures na vida.

A fogueira consumava o apogeu do pearljamismo. Era aí que a malta fixe e preocupada com a sustentabilidade de recursos gostava de afirmar as suas vaidades, fomentando a queima da biomassa para calor e iluminação. A luz crepitante e as fagulhas inspiravam os pearljamistas a dedilhar a sua viola e a soltar um vozeirão artificial de quem está a engolir um microfone no fundo dum poço. Isso cativava as gajas, especialmente as adeptas de missangas, florzinhas no cabelo e malas volumosas a tiracolo, que respeitam muito os animais e fazem reciclagem. Se a gaja fosse vegetariana e dissesse que de religiões só o Budismo (“é mais uma forma de ser e de estar do que uma religião”), então era certinho que ficava caidinha. E todos sorriam muito e batiam palminhas no final de cada actuação esforçada. Era uma comunhão íntima entre os Homens e a Natureza, reforçada pelo costumeiro cigarrinho. De enrolar, claro, que o papel é mais natural e sempre baixa um pouco a receita das grandes corporações tabaqueiras internacionais, essas exploradoras sem pudor. Tenho para mim que grande parte dos pearljamistas se chamavam Nuno, eram baixinhos e magrinhos e estavam sempre a desviar o cabelo dos olhos enquanto diziam “iá, ‘tás a ver?”. Hoje em dia são programadores informáticos ou são comentadores televisivos e não revelam especial orgulho por poderem ter sido considerados sósias do Vedder. Porque isto do pearljamismo pressupõe que os indivíduos, seguindo todos a mesma cartilha, são muito seguros de si, avessos a rótulos e a outras caracterizações da “maldita sociedade capitalista”. Será o pearljamismo iconoclasta? Sim, para os casos que o profeta Vedder determinar.

Podemos dividir este tema de antipatia para com o Vedder em duas categorias. O primeiro tem a ver com o declínio evidente da banda dele. Duvido que eles tenham angariado muitos fãs nos últimos tempos com pecúlio tão desinteressante. As suas posições políticas e as suas letras fazem as delícias de toda uma turba moralmente inatacável, mas há uma sensação de que o disco – que não o suporte musical físico propriamente dito – está irremediavelmente riscado. Os primeiros cinco álbuns são bons, uns mais que outros, foram os que definiram o estatuto da banda e ainda se ouvem hoje em dia, nem que como colírio para a música ainda pior que se vai produzindo – alguma dela tenho mesmo dificuldade em categorizá-la como “música”; desde que veio o século XXI que os Pearl Jam são uma caricatura deles mesmos. Hoje, valem muito pouco e certamente valem muito menos do que a nossa nostalgia nos quer fazer crer. Já deviam ter parado de vez, assumido a sua desinspiração e continuavam a fazer umas digressões para os pearljamistas, sempre que se sentissem aborrecidos e/ou com falta de peso na carteira. Não os culparia por isso; afinal, é difícil estar sempre no top, ainda por mais na indústria deles. Modas vêm e vão, eles tiveram o seu tempo e agora é a vez de outros brilharem. Há apenas uns quantos fenómenos de sucesso que extravasam mais que uma década e os Pearl Jam não são decididamente um desses casos. O Kurt Cobain é que sabia das coisas e matou-se antes de decair. Resultado: não teve de andar a arrastar-se e a prolongar artificialmente a vida útil da banda, banalizando o que de bom foi feito. A banda envelheceu bastante, e mal, em termos musicais. Já está bem imiscuída no tal circuito dos “velhos”, das bandas que enchem estádios só pelo nome e mesmo que só esteja previsto soltar gases no cartaz, à laia duns U2. Os últimos álbuns dos Pearl Jam foram um ataque deliberado à memória deles, ainda que não tenham existido críticas assim tão contundentes a essas pobrezas musicais. O que se explicará pela simpatia socialmente aceite do Vedder.

O segundo aspecto vem desta sua imagem de afabilidade e da personagem em si. Se o Vedder fosse português, isto é, imaginem o Miguel Guedes por um momento, ele seria do Bloco de Esquerda. Tal como o Miguel Guedes. E isso é extremamente enjoativo. O Bloco de Esquerda exala todo um fedor de perfume chique misturado com fumo de cannabis que é francamente irritante. Eu só concebo gente normal do Bloco de Esquerda, vá lá, até aos 25 anos de idade, altura onde deverão, como sói dizer-se, “crescer e ganhar juízo”. A partir daí, se ainda continuam a apoiar o Bloco, é porque são manipulados ou são manipuladores (a ganza também ajudará a confundir as almas mais susceptíveis). O Vedder de hoje dia, como ele próprio confessou, é um gajo de bem com a vida e cujo eco das suas posições ganhou peso com o passar dos anos, ao contrário da sua música. Tem o seu pé-de-meia, gosta do seu vinho, faz o que quer. Isso de andar pendurado em tabelas de basquete e amuado com as revistas e as promotoras é coisa do passado. Mas, sentado no seu confortável cadeirão, ainda mantém a lengalenga de que os “capitalistas selvagens destruíram o nosso belo planeta”, “há fome por todo o lado”, “transgénicos nem pensar”, “devíamos ser todos iguais”, “segue os teus sonhos”, entre outras tiradas impregnadas de idealismo que seriam gozadas se proferidas por uma louríssima candidata a Miss Universo. A maior parte dos pearljamistas modernos também é assim, mas com uma diferença fundamental face ao Vedder: este pessoal não gosta de admitir que a vida lhe corre bem. É feitio e defeito. Então recrudescem a sua revolta “aos grandes interesses financeiros”, “aos machistas e sexistas”, “aos racistas e terroristas”, “ao Governo que não me disse que se eu estudasse psicologia não teria emprego”, entre outros alvos fáceis e genéricos. Mas até agora, a maior privação que esta gente teve foi quando ficou sem bateria no telemóvel durante meia-hora, que comida, roupa, viagens, hospitais e escolas privadas, gadgets e até idas os concertos dos Pearl Jam nunca lhes faltou.


O Vedder pode não perceber, ou estar-se a borrifar, que a sua ética aparentemente incontestável, aliada à música tão irrelevante conquanto pretensiosa, o poderá guindar ao patamar de ridículo onde o Bono está hoje em dia. Será uma heresia dizer isto aos pearljamistas. “Não, ora essa, o Vedder é sempre uma referência, um símbolo cultural, o Lennon da nossa geração”. Para mim, o Vedder está tão gasto como a roupa da moda dele. Tão gasto, tão insignificante e tão irrepreensível que nem sequer tem um fanático que lhe dê um tiro como ao Lennon. 

O Nuno está melhor. Já não está tão escanzelado, embora também já não tenha tanto cabelo. Arranja-me uns filmes fixes e tem um bom gosto musical, em termos gerais. Instalou um sistema de som no escritório do seu T3 em Odivelas que é um mimo e que assusta o gato da vizinha do lado, o que já motivou queixas na reunião de condomínio. Mas o Nuno é “aquela base”, ri-se e continua a testar as capacidades das colunas. E as vidas do gato. Possui contactos porreiros para questões informáticas e ainda fuma umas ganzas de vez em quando, se a mulher não o chatear muito. Diz-se afastado do pearljamismo, já não é sequer praticante assíduo, o trabalho e o filho ocupam-lhe o tempo. “Iá, mas continuo a curtir a cena, ‘tás a ver?”. Sim, claro. Apenas era muito melhor quando dizias isso e desviavas o cabelo, lá junto à fogueira com a Catarina Martins embevecida a olhar para ti.

1 comentário:

Unknown disse...

Meu Deus, quanta besteira!!!!