01 novembro 2015

Comic Book Guy




Já chove. Chover é bom. Medra as coisas verdes. No plano material, as coisas verdes fazem o mundo avançar. Sabe isso desde os livros de ciências da preparatória. Existem incontáveis documentários sobre o tema. Há todo um ciclo engendrado pela Natureza que nunca falha. A Natureza é a maior e melhor argumentista de sempre. Um blockbuster que não pára de surpreender. São temporadas e temporadas de êxito permanente. Vê lá tu que toda a gente morre, todos os bichos que alegremente saltavam ao nosso lado se fenecem em pó e no entanto o vento continua a soprar, o sol a nascer, as estações a suceder-se com maior ou menor variação, as coisas verdes a criar raízes que rebentam o betuminoso e ocupam as casas devolutas, duma forma que deixaria os militantes do Bloco de Esquerda corados de vergonha. A Natureza não tem complacências. É muito mais assentimental do que julgamos. É assim desde que há registos, nem se sabe bem como começou. Dizem que foi uma grande explosão. À falta de melhor explicação, aceita esta. Uma grande explosão a qual podemos imaginar com os nóveis efeitos 3D, manipulados através de programas informáticos bastante evoluídos. Que irão evoluir ainda mais. Qualquer dia há-de conseguir-se chegar perto. Há tentativas a ser levadas a cabo num laboratório lá para França. Havemos de conseguir. Talvez não no nosso tempo.

O tempo agora é de chuva. Não é nada mau. Dá uma bela desculpa para ficar em casa. Nunca quis mais do que ficar em casa. O mundo lá fora não é assim tão bonito. E não é pela Natureza, a Mãe, que essa sabemos ao que vem; é mesmo pelas pessoas. Que são imprevisíveis, cruéis e chatas. Aberrantemente imperfeitas. Muito aborrecidas. Limitadas, que nem um Pentium IV com memórias analógicas na segunda metade do século XXI. Como uma mulher no auge do seu ciclo menstrual, não vale a pena tentarmos descortinar o que as pode tornar mais agradáveis. As pessoas ausentam-se, adoecem, irritam-se, falham, enfim, não são de fiar. Não se pode programá-las a ligarem e desligarem como queremos. Não dão sinais evidentes de aviso que a sua bateria está fraca. Têm sentimentos, magoam e são magoadas por coisas imperceptíveis. Nunca surgem avisos de que há um malware que precisa de ser desinfectado. Os anti-vírus convencionais não costumam chegar. E é sempre assim. Por isso mais vale ficar no seu espaço do que ocupar o seu precioso espaço. Sem chatear e sem ser chateado. Há muito software giro para ser descarregado. Séries, jogos, aplicações diversas para tudo e mais e alguma coisa. Utilíssimas, giríssimas, com interfaces intuitivos em cada upgrade. Novos equipamentos gráficos e de som a instalar na máquina.

A máquina. Há que tratá-la com respeito. Actualizá-la frequentemente. Substituir peças obsoletas, protegê-la do frio e do calor. A máquina também tem sentimentos. Não gosta que lhe cortem a electricidade de forma repentina, também se atrasa e demora a responder se a atafulharmos de lixo evitável, reage se quisermos fazer batota com ela. Mas a máquina é muito mais leal. Quando falha, sabe subtilmente dizer que a culpa foi nossa. E nós reconhecêmo-la, com uma humildade intrinsecamente humana. A máquina não é humilde, mas também não nos enche com bazófias espúrias. A máquina é tão boa que, se a máquina tivesse orifícios envoltos de carne, fornicá-la-ia. É a sua única limitação visível. Mas, quem sabe?, um dia será possível. Como no filme “Demolition Man”, mas melhor. Das máquinas só podemos esperar o melhor. Isto se não houver ninguém estúpido por perto. O mal das máquinas é haver gente estúpida a mexer nelas.

É que, por vezes, também gostaria de sentir um abraço, um toque morno, uma palavra inesperadamente gentil, um gemer de prazer. Mas isso acaba por passar. É só procurar alguma coisa na máquina que debele essa fraqueza de espírito tão humana. E depois dar largas aos nossos recorrentes e fúteis anseios. A máquina nunca recrimina. Com ela o segredo está guardado, se assim o quisermos. Com ela vamos a qualquer lado. Espreitar qualquer perversão, inventar qualquer diálogo, estabelecer conexões ou aprender coisas sem o peso físico das velhas enciclopédias. Saibamos nós as suas linguagens. E ele sabe. Passou dias, meses, anos a treinar códigos e a perceber de cabos e de ligações sem fios. Outros gastaram esse tempo a brincar sem objectivo. Já percebe muitas manhas, truques e dicas que a maior parte das pessoas não domina e às quais demonstra uma certa relutância a educar. Porque as pessoas são estúpidas. Acho que já tinha escrito isto, ou pelo menos a ideia já deveria ter ficado clara – isto, obviamente, se as pessoas que lêem os outros não fossem assim tão medíocres. Estou a entrar num loop. A máquina também fica agastada com os loops, mas geralmente basta carregar no Esc ou estabelecer qualquer maningância com as teclas Ctrl+Alt. Nas pessoas, os loops costumam ser insolúveis e não é gerado um blue screen. Lamentavelmente. É um erro básico de codificação. Um defeito de origem que persiste para mal dos seus pecados.

E os pecados da gente são muitos. Dantes, perdia a alegria quando lhe recriminavam por ser muito gordo, muito compenetrado em si mesmo, sem requisitos sociais apurados. Mas depois aceitou esses esgares dos outros como parte do pacote onde estava inserido. Ao contrário do serviço de internet, o desdém dos outros não é negociável. Assume-se. É uma variável exógena. Resta controlar a sua parte. Se é chato? É. Também já escrevi que não há nada tão chato como as pessoas. Então investiu no seu próprio prazer: a certeza de se sentir superior num capítulo muito exclusivo, a total consciência de que "isto não é para todos". Não é um prazer que decorra do deleite visual, nada disso. Não há cá partilhas de paisagens fantásticas no Instagram nem de poses sensualmente tratadas para a inveja do Facebook – e ele saberia exactamente como torná-las fantásticas se quisesse, e até em plataformas bem mais estimulantes que essas a que a maralha acede em massa. Parecem búfalos numa manada. “Búfalo” quiçá o chamem em surdina, mas ele não quer saber dos ditames físicos. Reconhecendo a desvantagem, e a pouca propensão para entrar nesses jogos frívolos, ele investiu no recolhimento e no saber. É, bem vistas as coisas, um monge da idade informática.

Ainda assim, tem amigos. A maior parte nunca os viu. Estão longe, numa máquina semelhante à sua, a trocar preciosas informações num ambiente selecto e protegido. Estão todos bem e confortáveis assim. São eles quem verdadeiramente sabem interpretar todos os seus tiques de expressão no teclado e valorizar o conhecimento que detém sobre matérias aparentemente inúteis para a gente. Essa gente banal, a atirar para o ridículo com as suas mundanas preocupações sobre o estilo e pose, vãs com os seus sentimentalismos incipientes. E depois tem conhecidos. Tipos geralmente de óculos, gajas vestidas de preto, gente de poucas palavras. Preferivelmente, de poucas palavras, anotou ele no anúncio mental sobre as pessoas que quer deixar aproximar do seu círculo. As palavras costumam ser demais, vezes demais. Geram erros. Causam trapalhadas. E depois há que percorrer todas as linhas de código assinaladas a amarelo e perceber como meter a coisa a funcionar – se as pessoas funcionassem como as máquinas; na realidade, na dura e triste realidade, ficamos muitas vezes sem perceber nada. É frustrante. Com a máquina sentimo-nos desafiados, motivados a percebê-la e recebemos gratificações quase instantâneas. Fugimos do choque. Geramos rotinas que impliquem a redução do risco. Há muito risco no contacto humano, e não apenas para a transmissão de doenças. Isso é o menos. O pior é mesmo a confrontação com a estupidez humana que espreita em cada esquina. Um horror. Sem perfil previamente verificado, há sempre que desconfiar do próximo.

Felizmente, hoje chove e ninguém, nem mesmo os mais distraidamente néscios, o irá importunar. Porque quem anda a chuva molha-se e isso geralmente retrai as pessoas. Foi um bom dia. A velocidade de download foi superior ao normal e conseguiu-se sacar mais uma série completa para ver ao jantar, composto por fritos e regado por bebidas carbonatadas. Dizem que morreu muita gente ultimamente. Atentado ou acidente, se for mesmo espectacular farão um grande filme disso e ele irá obtê-lo em primeira mão. Para então poder lançar a sua crítica especializada. “Worst. Movie. Ever”. Costuma ser assim. Intérpretes parvos só pode dar nisso, em fracassos previsíveis. Só a máquina salvará o negócio, com a sua técnica requintada por intermédio de uma vasta gama de tipos conscientes como ele. Não um, não dez, não cem; são milhares de tipos como ele, num silencioso trabalho organizado, é que dotam os servidores e recrudescem o poder da máquina, fazendo o mundo avançar a nível intelecto-espiritual. A nível físico, a Natureza dá cabo de nós todos. Nada a fazer.

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