Já chove. Chover é bom. Medra as coisas verdes. No plano
material, as coisas verdes fazem o mundo avançar. Sabe isso desde os livros de
ciências da preparatória. Existem incontáveis documentários sobre o tema. Há
todo um ciclo engendrado pela Natureza que nunca falha. A Natureza é a maior e
melhor argumentista de sempre. Um blockbuster que não pára de surpreender. São
temporadas e temporadas de êxito permanente. Vê lá tu que toda a gente morre,
todos os bichos que alegremente saltavam ao nosso lado se fenecem em pó e no
entanto o vento continua a soprar, o sol a nascer, as estações a suceder-se com
maior ou menor variação, as coisas verdes a criar raízes que rebentam o betuminoso e ocupam as casas devolutas, duma forma que deixaria os militantes do
Bloco de Esquerda corados de vergonha. A Natureza não tem complacências. É
muito mais assentimental do que julgamos. É assim desde que há registos, nem se
sabe bem como começou. Dizem que foi uma grande explosão. À falta de melhor
explicação, aceita esta. Uma grande explosão a qual podemos imaginar com os
nóveis efeitos 3D, manipulados através de programas informáticos bastante
evoluídos. Que irão evoluir ainda mais. Qualquer dia há-de conseguir-se chegar
perto. Há tentativas a ser levadas a cabo num laboratório lá para França. Havemos
de conseguir. Talvez não no nosso tempo.
O tempo agora é de chuva. Não é nada mau. Dá uma bela
desculpa para ficar em casa. Nunca quis mais do que ficar em casa. O mundo lá
fora não é assim tão bonito. E não é pela Natureza, a Mãe, que essa sabemos ao
que vem; é mesmo pelas pessoas. Que são imprevisíveis, cruéis e chatas. Aberrantemente
imperfeitas. Muito aborrecidas. Limitadas, que nem um Pentium IV com memórias
analógicas na segunda metade do século XXI. Como uma mulher no auge do seu
ciclo menstrual, não vale a pena tentarmos descortinar o que as pode tornar
mais agradáveis. As pessoas ausentam-se, adoecem, irritam-se, falham, enfim,
não são de fiar. Não se pode programá-las a ligarem e desligarem como queremos.
Não dão sinais evidentes de aviso que a sua bateria está fraca. Têm
sentimentos, magoam e são magoadas por coisas imperceptíveis. Nunca surgem
avisos de que há um malware que precisa de ser desinfectado. Os anti-vírus
convencionais não costumam chegar. E é sempre assim. Por isso mais vale ficar
no seu espaço do que ocupar o seu precioso espaço. Sem chatear e sem ser
chateado. Há muito software giro para ser descarregado. Séries, jogos,
aplicações diversas para tudo e mais e alguma coisa. Utilíssimas, giríssimas,
com interfaces intuitivos em cada upgrade. Novos equipamentos gráficos e de som
a instalar na máquina.
A máquina. Há que tratá-la com respeito. Actualizá-la
frequentemente. Substituir peças obsoletas, protegê-la do frio e do calor. A
máquina também tem sentimentos. Não gosta que lhe cortem a electricidade de
forma repentina, também se atrasa e demora a responder se a atafulharmos de
lixo evitável, reage se quisermos fazer batota com ela. Mas a máquina é muito mais
leal. Quando falha, sabe subtilmente dizer que a culpa foi nossa. E nós
reconhecêmo-la, com uma humildade intrinsecamente humana. A máquina não é
humilde, mas também não nos enche com bazófias espúrias. A máquina é tão boa
que, se a máquina tivesse orifícios envoltos de carne, fornicá-la-ia. É a sua única
limitação visível. Mas, quem sabe?, um dia será possível. Como no filme “Demolition
Man”, mas melhor. Das máquinas só podemos esperar o melhor. Isto se não houver
ninguém estúpido por perto. O mal das máquinas é haver gente estúpida a mexer
nelas.
É que, por vezes, também gostaria de sentir um abraço, um
toque morno, uma palavra inesperadamente gentil, um gemer de prazer. Mas isso
acaba por passar. É só procurar alguma coisa na máquina que debele essa
fraqueza de espírito tão humana. E depois dar largas aos nossos recorrentes e
fúteis anseios. A máquina nunca recrimina. Com ela o segredo está guardado, se
assim o quisermos. Com ela vamos a qualquer lado. Espreitar qualquer perversão,
inventar qualquer diálogo, estabelecer conexões ou aprender coisas sem o peso
físico das velhas enciclopédias. Saibamos nós as suas linguagens. E ele sabe.
Passou dias, meses, anos a treinar códigos e a perceber de cabos e de ligações
sem fios. Outros gastaram esse tempo a brincar sem objectivo. Já percebe muitas
manhas, truques e dicas que a maior parte das pessoas não domina e às quais
demonstra uma certa relutância a educar. Porque as pessoas são estúpidas. Acho
que já tinha escrito isto, ou pelo menos a ideia já deveria ter ficado clara –
isto, obviamente, se as pessoas que lêem os outros não fossem assim tão
medíocres. Estou a entrar num loop. A máquina também fica agastada com os
loops, mas geralmente basta carregar no Esc ou estabelecer qualquer maningância
com as teclas Ctrl+Alt. Nas pessoas, os loops costumam ser insolúveis e não é
gerado um blue screen. Lamentavelmente. É um erro básico de codificação. Um
defeito de origem que persiste para mal dos seus pecados.
E os pecados da gente são muitos. Dantes, perdia a alegria
quando lhe recriminavam por ser muito gordo, muito compenetrado em si mesmo,
sem requisitos sociais apurados. Mas depois aceitou esses esgares dos outros
como parte do pacote onde estava inserido. Ao contrário do serviço de internet,
o desdém dos outros não é negociável. Assume-se. É uma variável exógena. Resta
controlar a sua parte. Se é chato? É. Também já escrevi que não há nada tão
chato como as pessoas. Então investiu no seu próprio prazer: a certeza de se sentir superior num capítulo muito exclusivo, a total consciência de que "isto não é para todos". Não é um prazer
que decorra do deleite visual, nada disso. Não há cá partilhas de paisagens
fantásticas no Instagram nem de poses sensualmente tratadas para a inveja do
Facebook – e ele saberia exactamente como torná-las fantásticas se quisesse, e
até em plataformas bem mais estimulantes que essas a que a maralha acede em
massa. Parecem búfalos numa manada. “Búfalo” quiçá o chamem em surdina, mas ele
não quer saber dos ditames físicos. Reconhecendo a desvantagem, e a pouca
propensão para entrar nesses jogos frívolos, ele investiu no recolhimento e no
saber. É, bem vistas as coisas, um monge da idade informática.
Ainda assim, tem amigos. A maior parte nunca os viu. Estão
longe, numa máquina semelhante à sua, a trocar preciosas informações num
ambiente selecto e protegido. Estão todos bem e confortáveis assim. São eles
quem verdadeiramente sabem interpretar todos os seus tiques de expressão no
teclado e valorizar o conhecimento que detém sobre matérias aparentemente
inúteis para a gente. Essa gente banal, a atirar para o ridículo com as suas
mundanas preocupações sobre o estilo e pose, vãs com os seus sentimentalismos
incipientes. E depois tem conhecidos. Tipos geralmente de óculos, gajas
vestidas de preto, gente de poucas palavras. Preferivelmente, de poucas
palavras, anotou ele no anúncio mental sobre as pessoas que quer deixar
aproximar do seu círculo. As palavras costumam ser demais, vezes demais. Geram
erros. Causam trapalhadas. E depois há que percorrer todas as linhas de código
assinaladas a amarelo e perceber como meter a coisa a funcionar – se as pessoas
funcionassem como as máquinas; na realidade, na dura e triste realidade,
ficamos muitas vezes sem perceber nada. É frustrante. Com a máquina sentimo-nos
desafiados, motivados a percebê-la e recebemos gratificações quase instantâneas.
Fugimos do choque. Geramos rotinas que impliquem a redução do risco. Há muito
risco no contacto humano, e não apenas para a transmissão de doenças. Isso é o
menos. O pior é mesmo a confrontação com a estupidez humana que espreita em
cada esquina. Um horror. Sem perfil previamente verificado, há sempre que
desconfiar do próximo.
Felizmente, hoje chove e ninguém, nem mesmo os mais
distraidamente néscios, o irá importunar. Porque quem anda a chuva molha-se e isso
geralmente retrai as pessoas. Foi um bom dia. A velocidade de download foi superior
ao normal e conseguiu-se sacar mais uma série completa para ver ao jantar, composto
por fritos e regado por bebidas carbonatadas. Dizem que morreu muita gente
ultimamente. Atentado ou acidente, se for mesmo espectacular farão um grande filme
disso e ele irá obtê-lo em primeira mão. Para então poder lançar a sua crítica
especializada. “Worst. Movie. Ever”. Costuma ser assim. Intérpretes parvos só
pode dar nisso, em fracassos previsíveis. Só a máquina salvará o negócio, com a
sua técnica requintada por intermédio de uma vasta gama de tipos conscientes
como ele. Não um, não dez, não cem; são milhares de tipos como ele, num silencioso
trabalho organizado, é que dotam os servidores e recrudescem o poder da máquina,
fazendo o mundo avançar a nível intelecto-espiritual. A nível físico, a
Natureza dá cabo de nós todos. Nada a fazer.
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