Qual Academia de valores donde despontam
talentos intervencionistas, a minha terra oferece periodicamente graffitis de
uma complexidade interpretativa ímpar que engajam toda a comunidade.
O último, e mais amplo, exemplo
espraia-se sobre um betão maciço e orgulhosamente cinzentão, pintado a negro de
forma levemente tosca, talvez espalmado por intermédio de rudes golpes de
trincha com tinta não-acetinada, bem num enfiamento duma rotunda. Não possui a
verve gatafúnhica da nova street art, é antes um resquício das velhas pinturas
rupestres do PREC e pós-PREC. É um graffiti vintage, um vandalismo urbano
démodé que muitos julgávamos perdido no fervor de tantas tags e pinturas com
spray colorido. Saúde-se este retorno que muito contribui para a diversidade da
expressão popular nas várias paredes, muros e até persianas de rés-de-chão,
portas e carrinhas de aspecto abandonado.
Refere este graffiti: “VAMOS
CORRER COM O EURO”. Só isto. Em maiúsculas.
Todos reconhecemos que na escrita
moderna o estar em maiúsculas significa gritar, exortar, reclamar duma forma
veemente. Muitos encaram o que está escrito em maiúsculas como um insulto, uma
má-educação atroz, um barulho mental soez, em flagrante desrespeito pelas
normas tácitas de elevação comunicacional. Alguns aboliram mesmo as maiúsculas
e escrevem somente com minúsculas, nomes próprios e tudo, para assim não
correrem o risco de acicatar, nem que ao de leve, as susceptibilidades mais sensíveis
de alguns leitores. Este graffiti parece escrito com maiúsculas exactamente com
esse propósito de despertar consciências, seja de que forma, mesmo que a
abordagem possa afigurar-se algo abrutalhada. É que, afinal, não há nem boa nem
má publicidade, só mesmo publicidade.
Passando para além do plano
estético, é interessante tentar perceber a mensagem que este dizer,
supostamente anónimo, quer passar ao transeunte mais atento que nele repara.
Designadamente, o que se pretende transmitir com “CORRER COM O EURO”.
À primeira vista, pode parecer
uma incitação à actividade física. Portanto, provinda dum instrutor dum ginásio
qualquer, daqueles que agora pululam por aí como cogumelos, ou dalgum
cardiologista desesperado. Precisamos todos de correr, de mexer o corpinho, de
saltar do conforto da poltrona malandra, de abandonar as garrafas de cerveja em
frente da televisão, de mudar o paradigma sedentário que nos entope as veias, que
nos descai as peles, que nos alarga a barriga e nos torna extremamente vulneráveis
a um enfarte repentino – como se um enfarte pudesse ser um acto contínuo no
tempo. Ninguém quer ser uma pessoa obesa, feia, facilmente ofegante e de músculos
frouxos. Por isso há que correr. É o mais básico. Depois pode passar-se para o
ciclismo aos magotes aos fins-de-semana nas estradas nacionais. E depois de
ultrapassado o medo de ser passado a ferro por um camião, então poderá
avançar-se mais um nível e frequentar um dos tais ginásios, já mais imunes ao
medo da repreensão dos olhares dos frequentadores habituais, extremamente
tonificados e pouco complacentes com massas adiposas. Tudo isto requer a compra
de material adequado. Não serve um par de ténis vulgares ou uma t-shirt da EDP
oferecida pelo neto da vizinha que participou numa mini-maratona. Ora essa,
claro que não; antes mesmo de começar a ser um atleta amador, é necessário
desenvolver o estilo dum atleta a sério: adquirindo uma camisola
anti-transpirante em material XPTO, preferencialmente numa cor fluorescente,
uns calções justinhos cuja cor condiga, umas pequenitas meias cujo logotipo da
marca sobressaia e um par de ténis de aspecto marciano e simultaneamente
robusto, também muito coloridos e com uma parafernália de orifícios e ornamentos
que fazem as pessoas acreditar que correm mais. A Cláudia Vieira e o Ângelo
Rodrigues também começaram assim, cheios de estilo, e só depois foram correr
para ficarem com aqueles corpos em excelente estado de conservação. Eles bem
que podem dizer que não conceberiam a sua existência se não dedicassem duas
horas diárias ao esforço físico, mas a verdade é que tudo isso seria impossível
se não se munissem com equipamento Adidas ou Nike da última geração. O hábito
não faz apenas o monge; o hábito faz e suplanta o próprio monge e sem o hábito
o monge seria apenas uma pobre amostra de gente, um sub-eclesiástico. Para mais
supostamente anafado e careca, como os monges costumam ser.
Pode suceder, contudo, que nem a
imagem de modelos sorridentes e bastante amantes do desporto seja suficiente
para convencer o mais comum dos mortais semi-vegetativos. Por isso, o autor do
graffiti congeminou uma motivação superlativa: corramos com o Euro. Note-se que
não é correr atrás do Euro, que isso já toda a gente faz, a maioria sem
benefícios aparentes para a sua saúde; é correr com o Euro, tentar escoltá-lo
quando ele parece inacessível com a sua passada fugidia. O Euro é daqueles
sujeitos difíceis de seguir e, ao mesmo tempo, poucos desistem de se esforçar
por agarrá-lo. É um sujeito fascinante que não deixa ninguém indiferente. E
para este fito até apareceria de boa-fé, sem ânsias de fuga e com vontade em
ajudar, não a perder a dignidade, como costuma marotamente fazer, mas sim a
perder as banhas. Não seria um antagonista, mas um acompanhante. De luxo. Já
não há desculpas para não levantar o rabinho do sofá. Quem não quer estar perto
do Euro, de sentir a sua monetária transpiração e de acompanhar as suas pulsões
aceleradas no mercado? Convenhamos que o seu ritmo poderá ser feroz, mas é uma
oportunidade imperdível: ninguém quer estar longe do Euro e, pior que isso,
vê-lo a fugir de forma impotente. Todos podemos torcer o nariz à corrida por não
termos companhia, ou porque a companhia cheira mal ou é chata, mas não há razão
para não corrermos se formos correr com o Euro. Ninguém vai recusar este repto.
Quem vai dizer que não a uma moedinha de 2 euros que passa por nós a descer a
avenida toda fresquinha? Quem pode ignorar o piscar de olho de uma notinha de
20 euros quando nos insinua “hey baby, you runnin’?”? Quem vai perder a ocasião
de se juntar a um pelotão de maços de notas vivaças e tesas que calcorreiam alegremente
os passeios à beira-mar pelo crepúsculo, fortificadas para aguentar com choques
cambiais e ataques especulativos de toda a ordem? Serve para todos, mesmo para
as mulheres que já estarão mais habituadas à frieza pouco maleável dos cartões
de crédito e aos milionários caídos abruptamente em desgraça.
Se tomarmos este graffiti pelo
seu valor facial, passe a ironia, é, sem dúvidas, um dos mais apelativos
slogans pró-forma física de sempre. Nem o Forrest Gump, imaginamos, conseguiria
arrebanhar tanta gente numa correria massiva por glúteos bem definidos e outras
graças decorrentes da saudável corrida. Mas e se estivermos a aplicar uma
famosa expressão bem portuguesa de “correr com” = “livrarmo-nos de” alguma
coisa? Neste caso, o tão badalado Euro?
Para já, a análise mais semântica
da expressão aponta num sentido de total desprezo lusitano pelo esforço físico,
o que, paradoxalmente, reforça o sentido da interpretação de dois parágrafos
acima. “Correr com” alguma coisa, para os portugueses, não é tanto para nos
exercitarmos em conjunto mas para nos vermos livres dessa coisa. Especialmente
se essa coisa custar a ir-se embora. Correr, essa actividade tão aborrecida e
esforçada, e esforço, esse substantivo que perturba tanto a quem só quer
sopinhas e descanso. Não nos despegamos de alguma coisa com palavras ocas ou
gestos subtis, precisamos de “correr com” essa coisa, de nos empenharmos a
fundo no seu desaparecimento. Essa coisa, alegadamente, também não gostará de
correr como nós e, logo, se “corrermos com” essa coisa é remédio santo para que
não nos volte a importunar. A criatura fica logo com os bofes de fora, diz “fogo,
que este gajo é maluco e cansa-me” e já não regressa mais. O curioso aqui é que
a coisa que é objecto deste graffiti específico, o Euro, é uma das coisas que
nós por aqui não gostamos de ver a fugir para não mais voltar e custa muito mais
vê-lo chegar do que vê-lo partir.
Mais interessante seria inquirir
o autor deste graffiti que eventualmente o escreveu com este último sentido
sobre o que ele propõe em alternativa. Sim, porque isto de dizer “ah, não
queremos esta unidade monetária” pode dar pano para mangas. Não quer porquê?
Porque é feio? Porque tem um nome parvo? “Olhe, eu gosto mais de Piloto, é o
nome do meu cão e gostava de comprar quinquilharias que custassem 12 Pilotos e
50 Pilotinhos [novo nome do cêntimo]”. Ou porque esta unidade se
mostra tão arisca dos seus bolsos que é deixá-la ir à sua vida e talvez com uma
nova designação a sorte não seja tão madrasta? Quem sabe, ele há grafiteiros tão
invejosos quanto supersticiosos. Ou será porque prefere uma moeda mais
atractiva como o dólar, quiçá o revivalismo do velho escudo ou o espírito
prático das notas de Monopólio? Ou ainda porque não quer pura e simplesmente
proceder a trocas baseadas em papel-moeda e prefere métodos de troca directa,
dou-te duas galinhas por um i-Pad e tu dás-me um balde de cerejas e uma arroba
de batatas por umas calças Levi’s? Podemos especular de tudo um pouco.
E podemos especular porquê?
Porque não foram apresentadas soluções e alternativas concretas. Geralmente,
nunca são. Por isso podemos conjecturar que o autor daquele graffiti, se efectivamente
escreveu “correr com” com esse sentido de “acabar com”, expressou a sua
insatisfação por manter uma moeda incontrolável só porque tem o maior
galinheiro da zona e se voltássemos à troca directa teria possibilidade de
comprar tantos i-Pads quantos quisesse, ou porque gosta de acabar com coisas
que, vá lá, ainda nos permitem ir ao supermercado e sair de lá com alguma coisa,
só para chatear os outros ou porque é ele mesmo que se sente tremendamente
enfadado com a situação. Isto de “correr com” coisas é muito bonito, mas depois
o que viria correr até nós em substituição? Não se sabe. Não nos foi dito nem mostrado.
Mas talvez isso não interesse sequer, porque – lá está – alternativas custam a
elaborar e isso não dá jeito agora. Para este grafiteiro, talvez só interesse “correr
com” o Euro por si só; importa é derrubar, destituir, boicotar, impedir e tudo
o que implique a cessação de movimento – curiosamente, utilizando uma expressão
que remete para o movimento rápido de corrida. Tudo é ameaça, nada é passível
de ser usado em proveito, por isso é destruir tudo, como uma criança enervada
que vê os outros a jogar melhor o seu jogo e então entra em birra e acaba com o
jogo todo, o dela e o dos outros. Isto de querermos aproveitar tiques infantis
para resolver problemas sérios não costuma dar bom resultado na vida prática.
Digo eu, embora ainda haja gente que prefere apontar culpas ao papão e que
acredita que há um lugar perdido no Mundo onde hambúrgueres crescem nas árvores
e há sempre sol e animais sorridentes e fofinhos aos pulos. O “correr com” é
utilizado como força de bloqueio à própria corrida do Euro, que, em geral e
infelizmente, é coisa que costuma correr para longe de nós. Há mais camadas de
ironia neste graffiti do que folhas de massa numa lasanha.
Eu cá prefiro, candidamente, ignorar
patetices inconsequentes e continuar a encarar a expressão como um sincero
apelo à mobilidade. Mas, lamentavelmente, eu estou num patamar de preguiça
superior e este graffiti não me irá mobilizar. Talvez se dissessem “vamos
correr com o euro por x euros”, talvez aí equacionasse mexer-me. E vai daí não,
se calhar consigo o mesmo numa raspadinha – que raspo com… uma moeda de Euro –
e não preciso de me cansar. Nah, deixa-os correr.
Ah, e adoro o verbo “engajar”.
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