O protocolo pode ser definido
como “o conjunto de formalidades e preceitos que se devem observar em
cerimónias oficiais ou actos solenes”. O protocolo pressupõe maçada. Quando
imaginamos mentalmente a imagem dum protocolo, o que nos vem à mente não é um
grupo de louras mamalhudas em biquíni, champanhe ou música trance; é sim um
grupo de homens grisalhos ou carecas muito sisudos e em trajes muito engomados,
palavras tão grandiosas quanto de circunstância, discursadas num ambiente tão
pomposo quanto frio – e geralmente com más condições de som e de acústica em
geral, o que dificulta ainda mais a compreensão –, bem como uma completa submissão
a regras de etiqueta tão rígidas quanto tacitamente aceites pelos
intervenientes. O grande frisson advém das costumeiras fugas ao protocolo, o
gozo supremo dos jornalistas, cometidas por elementos cuja distracção
momentânea lhes custará severos olhares de reprovação, tão acutilantes quanto
embaraçados, pelos restantes membros protocolares. Sim, o protocolo é tão
entediante que a fuga ao próprio é tida como natural, mas nem por isso
perdoada. Um pouco ao contrário dum Estado qualquer deste mundo no qual o
prisioneiro que se evade da prisão e é recapturado não receberá nenhuma pena
adicional, porque esse Estado reconhece que fugir das grandes chatices é
simplesmente humano e racional (é verdade e penso que seja o México, mas googlem
para terem certezas); não, o desrespeito ao protocolo, especialmente aquele que
é cabalmente perceptível até para a mais ingénua dona-de-casa, será glosado e
exposto vezes sem conta, partilhado até à exaustão, como uma piada fácil ao som
da marcha do Benny Hill, que todos gostamos de figuras parvas cometidas pelos
outros.
Mesmo na minha terra e enquanto
miúdo, havia protocolos muito concretos que devíamos respeitar. Todavia, não
eram assim tão aborrecidos - pelo menos, para alguns. Com toda a conotação de algazarra que lhes estava
associada, estes actos assemelhavam-se mais a “praxes” do que a “protocolos”. Assim
de cabeça, quando alguém se apresentava de ténis novos, havia que “estreá-los”
condignamente: a tradução prática deste protocolo consistia no pisar dos ténis
em causa ou em sujá-los com um pouco de terra. Se houvesse cinco indivíduos que
notassem no novel calçado, cinco indivíduos deveriam molestar inequivocamente
esse calçado e o portador do mesmo só tinha mais que comer e calar, aguardando
pacientemente pela sua oportunidade de retribuição. Também houve uma fase em
que qualquer ida ao barbeiro significava uma protocolar reacção de “cabelinho à
foda-se…”, dirigida com sentido desprezo a quem se apresentava com um novo
penteado. Conta-se que a expressão nasceu por quem, em tempos imemoriais, só
conseguiu exprimir “fooooooooda-se…” (assim mesmo, demorando no “o” para
conferir mais despeito) perante um corte de cabelo que se lhe afigurou como anormal
ou mesmo ultrajante. O certo é que a tradição pegou e assim desabrochou um
protocolo. Também entre os rapazes se constituiu o duro protocolo de fazer “amostras”
aos outros rapazes acabados de chegar ou a outros sacos de pancada, que consistia
em revelar de forma bruta e discutivelmente humilhante as partes baixas desse
rapaz em público, ou até a contundir-lhe os testículos com o recurso a objectos
pesados ou aos próprios punhos cerrados. Há quem se refira a isto como “bullying”,
mas isso é um conceito muito urbano deste século; antigamente, estávamos
perfeitamente concentrados no protocolo e era a ele que nos entregávamos, sem
nos alhearmos com mariquices sociológicas. E quando se começava a fumar, havia
o estranho hábito de virar um dos cigarros ao contrário quando se abria o maço.
Havia quem se agastasse caso o ritual não fosse cumprido. Era um protocolo
inexplicável, quiçá com raízes supersticiosas. Ou então era simplesmente
estúpido.
De qualquer forma, estes exemplos
reflectem uma face menos aborrecida do protocolo. Isto é, o protocolo não tem
de ser um fastio, em ocasiões concretas até pode ser um salutar reforço de um
determinado espírito de comunidade, de consolidação de uma tradição
genericamente aceite. Mas a maior parte das vezes é mesmo uma chatice pegada. E
em determinadas circunstâncias ultrapassa a fronteira do inofensivo bocejo para
entrar nos territórios da dor. Uma dor pungente e depreciativa, como se uma
crise dum pequeno nervo dentário se alastrasse e se magnificasse no sistema
nervoso central. Ele há protocolos plenamente insuportáveis para certos
intervenientes.
Por exemplo, e correndo o risco
de datar este texto, o empossamento de António Costa como Primeiro-Ministro por
Cavaco Silva será seguramente um protocolo muito difícil de suportar pelo
último. Que lhe dessem todos os sapos, dragões, elefantes deste mundo para engolir;
que lhe enchessem o sistema digestivo dos mais aguçados espinhos, cardos, rosas
e prosas que pudessem arranjar; que lhe arrepanhassem a pele a sangue frio com
um bisturi e o deixassem em carne viva num tanque de álcool etílico puro e
depois jogassem com azeite a ferver naquilo que sobrasse; que lhe rebentassem o
esfíncter com um pau de um furioso cavalo negro africano durante horas
ininterruptas, depois de uma sobredose do mostrengo em Pau de Cabinda e de
Libidium Fast, e com o Futre a falar-lhe parvoíces ao ouvido enquanto durasse
esse martírio; que lhe hackeassem a página no Facebook e que revelassem
fotografias da sua juventude, onde aparecesse mascarado com um tule cor-de-rosa
cheio de folhinhos e com a inscrição “pões-me louco, Dias Loureiro”; que lhe
cometessem as atrocidades que os árabes não têm coragem de pensar em fazer aos
judeus, mas que lhe dispensassem desse tormento que é ter de indigitar
formalmente o Costa.
É que para Cavaco, esse acto
solene é muitíssimo pesado, muito mais do que o ambiente já de si grave da Ajuda. There is much more than meets the eye. Cavaco tem pesadelos com esta
tomada de posse, em pleno salão nobre do palácio. Neles Cavaco surge
titubeante, como num 10 de Junho qualquer, pálido, suores frios, semi-frios e
quentes a alagarem-lhe as roupas, que parecem estar mais apertadas que o
habitual. Costa e todo o seu séquito de ministros e secretários de Estado estão
ufanos, sorridentes, eufóricos até, contrastando com a inexpressão de uma série
de sumidades indistinguíveis e o mau-estar mudo do governo cessante. Há flashes
e barulho de fotografias a serem tiradas e este é todo o ruído que perpassa
aquele salão cerimonial. Estão todos alinhados e aprumados. Depois, Cavaco, a
custo, aproxima-se do microfone e profere, enfrentando o clarão dos potentes
holofotes que o cegam, “na qualidade de Presidente da República Portuguesa (…),
procederei então ao empossamento do Dr. António Costa como Primeiro-Ministro do
XXI Governo Constitucional”. Costa dá uns passos em frente e aproxima-se da
mesa, daquele imponente mesão no centro do salão que parece já ter sobrevivido séculos
sem nunca nenhum caruncho lhe ter chegado. Sorridente, como sempre. Cavaco
tremelica. Em cima da mesa está uma terrina de prata brilhante sobre uma
bandeja igualmente prateada e um pequeno atoalhado branco, impecavelmente
dobrado, à ilharga. Dentro da terrina, água. Morna. Cavaco detém-se por um
momento frente-a-frente com Costa e faz-lhe um pequeno sinal com a cabeça.
Costa percebe que é a sua vez de cumprir com o protocolo. E então revela finalmente
aos presentes as suas calças compradas especialmente numa sex shop para esta
ocasião, com um grande orifício na área genital donde brotam os seus testículos.
Costa está vestido com um fato de corte italiano e gravata monocromática e calçou
uns belos sapatos reluzentes, mas tem os tomates ao léu. Dois genuínos colhões
de homem maduro, ligeiramente descaídos – se calhar, esteve a bater demasiadas punhetas
recentemente. Olha de soslaio para as objectivas, como que a perguntar “estão a
conseguir apanhar bem este par de colhões?”. Os flashes multiplicam-se, como
que a responder “sim”. Cavaco olha sem paixão para os colhões retintos de
Costa, que fez a depilação de propósito para a cerimónia, mas ainda deixou um
ou outro pintelho espetado para não duvidarem da sua masculinidade. Cavaco,
engolindo em seco, lábios todos torcidos para dentro, molha as mãos durante poucos
segundos na terrina. As câmaras captam tudo. Depois, limpa o excesso de água no
atoalhado, mas com tamanha deferência que nem sequer estraga as dobras. E então
move vagarosamente as suas mãos no sentido dos túbaros de Costa, que nesta
altura já assumiu uma pose de toureiro, mãos na cintura e flectindo a zona
pélvica na direcção de Cavaco. Cavaco apalpa os colhões de Costa no meio da
sala, junto à mesa, com todos os mais altos dignatários da nação presentes e
todas as televisões a transmitirem em directo e a fazerem um zoom in nos
tomates do Costa; há tweets sobre os dois pintelhos espetados do Costa,
comentários sobre o volume das duas bolinhas do novo Primeiro-Ministro,
mulheres que reparam nas unhas tratadas do Cavaco e da suavidade com que ele mexe
nos colhões do Costa. Nota-se que Costa está a desenvolver uma ligeira erecção
e há alguma agitação atrás dele, onde os vários ministros quase que se empurram
para conseguirem ver o acto de empossamento mais de perto e há muito óculos a
serem ajeitados, assim como algumas línguas mordiscadas e gente que sussurra “aperta-me
esses colhões, porco!...” ou “foda-se, monhé nojento de merda!”, consoante as
posições partidárias. Costa perde o sorriso; agora está concentrado na fruição
do prazer, físico e mental, que lhe invade o corpo e o faz esticar os lábios escuros
e carnudos para fora, com gotículas de suor a descerem-lhe da testa: está a
ficar excitado. E Cavaco, sem olhar Costa nos olhos, vai revolvendo nos seus
colhões, com os seus olhos mortiços e a saliva a empapar-lhe a boca. Cavaco pára
por segundos para olhar para as objectivas e permitir aos fotojornalistas obter
uma boa carteira de imagens em que Cavaco possa surgir fotogénico, na medida do
possível. Há um frémito de flashes e fotografias. Costa solta, com o seu
perfeito sotaque de filmes pornográficos espanhóis, enquanto balanceia
suavemente o torso e deixa perder o controlo momentâneo dos sentidos, “Sí, señor Presidente… Sííííííí… Oh, sííííííii… Me pones loco… Oh sí… Sí… Síííííií… Uooooh…
Empossa-mos, Cavaco!”. Cavaco cumprira assim o protocolo e Costa está
formalmente empossado depois de finalizado este acto. O salão irrompe numa
salva de palmas e os jornalistas andam doidos de um lado para o outro para
conseguirem as melhores posições de reportagem. Costa está, decididamente, de
pau feito, mas nem isso o demove de abraçar toda a sua equipa, um a um,
verdadeiramente feliz. Um ou outro ministro olha de relance para os genitais do
Costa e pensa em apalpá-los, mas inibe-se e acaba só por se roçar neles
enquanto abraça Costa. Mas acaba por também ele ficar com pau feito e pensará
em incluir este momento marcante no seu livro de memórias. No meio de tantas
erecções e das atenções todas centradas nos testículos do indiano Costa, Cavaco
retracta-se para as sombras. É um homem sozinho e vencido. Toda a sua expressão
corporal exclama “derrota vergonhosa” em alto e bom som. Os seus seguidores não
lhe dão sequer a veleidade dum simples aperto de mão. Não daquelas mãos que
tocaram nos colhões do Costa. Nem pensar. E então Cavaco acorda, estremunhado.
Anda com sonhos destes há semanas. A realidade, para ele, será quase igual à ficção
que ele inconscientemente criou.
Há, portanto, diferentes
categorias para os protocolos. Apesar de tudo, nem o mais efusivo dos
protocolos abandona a ideia de parecer forçado e de constituir um evento nos
antípodas de uma festa repleta de alegres convivas. Num óptimo de Pareto, as
partes sentir-se-ão igualmente desmotivadas; quanto muito, haverá apenas uma
parte mais agradada e outra que bem que preferiria estar noutro lado a fazer
outra coisa. Mas a situação de desconforto protocolar perpetua-se, porque os protocolos
raramente se discutem, por mais entediantes que possam ser. O protocolo é
demasiado importante no seu simbolismo para ser discutido. É assim e assim
deverá ser. O público geral até leva a mal não se cumprirem os mesmos preceitos
de sempre. Por causa disto, Cavaco não será poupado à gigantesca humilhação
pessoal naquele que será o seu último grande evento protocolar, o empossamento
de Costa – admito que para ele este derradeiro protocolo estará algures entre o
seu pesadelo e o murro no abono de família que antigamente sofriam os rookies
da minha terra, pese embora toda a formalidade asséptica com que nos será apresentado.
Senão algo ainda pior.