14 novembro 2013

No Fuck, No Drive

“A terra a quem a trabalha!”

“O povo unido jamais será vencido!”

“Liberdade para Otelo!”

“Vota APU!”

“No fuck, no drive.”

Notam algum padrão? É verdade, são todos slogans de contestação. A maioria dos quais do período 1975-1985. Estiveram todos pintados nas paredes e muros da minha terra. É uma terra propensa a graffittis da mais variada ordem. Mas aquele último foi o que realmente despertou polémica.

Um grito existencialista? Niilismo à solta? O apelo revoltado de uma minoria? O distorcer de uma mensagem comercial com fins subversivos? Propaganda ambientalista? Desespero celibatário? Ninguém sabe ao certo. Provavelmente, nem o autor. Que teria, certamente, um pouco de génio e de louco e ficou anónimo para todo o sempre.

O mistério adensou-se em torno deste lema, ganhando aura de mito que sobreviveu à voragem do tempo. Até hoje continua a atormentar a “intelligentzia” local. Sábios, peritos de linguística, estudiosos da semântica e simples curiosos debruçaram-se sobre o significado concreto em acesos debates filosóficos, mas não foi atingida nenhuma conclusão concreta. Ninguém quis assumir a interpretação literal “sem foda, sem condução”. Era óbvio que havia algo mais escondido, apenas não havia consenso sobre qual a mensagem subliminar subjacente. Ou mensagens. E então optou-se por deixar a frase quieta, tentar ignorá-la, como se de um monstro adormecido se tratasse. Nenhum livro sobre a história da terra menciona esta frase, devido ao receio de exacerbar o demónio da dúvida que existe em cada local.

Em tempos idos, verdadeiras romarias de jovens, cavalheiros casados, senhoras distintas, velhos jarretas, crianças inocentes e escroques da sociedade se dirigiam àquela parede pejada de misticismo para apreciar a caligrafia escorreita daquele graffitti e a sua misteriosa força. Era uma espécie de azinheira de Fátima. Acenderam-se velinhas, examinaram-se pedaços de tinta à lupa, tiraram-se fotografias. Houve quem chegasse ao limiar da loucura, puxando os cabelos e anunciando o aproximar do Juízo Final. “VAMOS TODOS MORRER!!!!”, clamava o sr. Robalo, que claramente mordera o isco provocatório desejado pelo autor da frase. “Isto é só mau inglês e a tentativa de surrealizar com o célebre «No pain, no gain»”, tranquilizavam os mais cépticos. Mas nem eles próprios acreditavam naquilo que diziam, na vã tentativa de se convencerem a si mesmos de que não havia algo mais críptico e superior no cerne da questão.

Este jargão destronou sem esforço outros dizeres que até aí tinham gerado alguma celeuma, como “Vete [sic] ao espelho”, “Culha, o vosso pai” ou “Vitinha e…”, este último o graffitti de contornos mais agathachristianos alguma vez presenciado na terra, com a suas pequeninas reticências a ensombrarem o vigor com que a palavra “Vitinha” tinha sido pintada em todo o comprimento do muro. Quem era o Vitinha? “E” o quê, Vitinha? Porquê esta dúvida infernal? Mas a partir de “no fuck, no drive” nada mais seria igual. Os partidos políticos aburguesaram-se e deixaram de produzir murais com a qualidade de outrora, preferindo os mais assépticos cartazes com gente sorridente. Os produtores de graffittis simplesmente já não sabiam ler nem escrever e apenas colocavam rabiscos com nítida influência árabe, imperceptíveis e declaradamente anti-artísticos e apolíticos. O público geral tinha finalmente ganho consciência das intricadas perturbações surdas que assolavam as mentes da localidade. “No fuck, no drive” foi o princípio do fim, o último dos slogans dos bons velhos tempos, o derradeiro “statement” de uma estética meio punk, meio vanguardista, decididamente “anti-establishment”. Nunca se tinha visto e nunca mais se voltou a ver.

“No fuck.”

“No drive.”


Arte urbana, política de rua, cérebros activos a explorarem os limites da criatividade. Tudo de borla, à frente dos nossos olhos, naquele outrora singelo muro. Um ponto alto da História da minha terra.

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