Havia um velhote lá na terra que era o Mão Morta. Assim mesmo, no singular. Não era remotamente parecido com o Adolfo Luxúria Canibal. Não tinha uma voz espectacularmente grossa. Não tinha sonhos sórdidos, ou pelo menos não aparentava ter. Tinha somente uma mão deficiente, acho que a direita, completamente inútil, totalmente virada para baixo de dedos cerrados, fazendo uma espécie de um ângulo de 90º com o seu antebraço.
Por isso era “o” Mão Morta. Quando passávamos por ele, dizíamos: “então, tudo a rock n’ rollar”? Que nível de chalaça. Cruel, mas com muito nível, a denotar uma sensibilidade excepcional para com o pop/rock português alternativo do dealbar dos anos 90. O velhote, com o seu costumeiro casacão à agricultor alentejano, bengala e boina, boca sem dentes e nariz abatatado e avermelhado pelo álcool, com um certo cuidado estético apesar de tudo, resmungava. Tinha acessos de fúria, o Mão Morta. Por vezes, demorava-se numa amena cavaqueira com o seu amigo imaginário junto à paragem do autocarro, dando-lhe palmadas e sorrindo-lhe cúmplice, mas, três-meia-volta, chateava-se com ele e mandava-o dar uma curva com gestos bruscos – com a mão ainda boa, claro. Não é claro que todo aquele braço onde desembocava a mão deficiente se mexesse de todo. Ninguém sabia ao certo. O certo é que “Braço Morto” não resultava tão bem como “Mão Morta” em termos de alcunha e o Mão Morta nunca foi visto de manga curta, como os velhotes costumam andar, mesmo no pino do Verão – bem abotoadinhos até ao fim e, de preferência, sempre com a mesma camisa.
Charro aqui, charro ali não seria bem a onda dele, mas vodka atestada fazia mais o seu género. Não tanto pela vodka, mas pelo vinho. Vinho a martelo. O Mão Morta tinha o perfil de um consumidor ávido de pacotes de vinho comprados em mercearias impregnadas de ranço e bolor. Ou então bebia fiado na tasca do costume. Aquilo devia ser sempre a bombar, sempre a abrir a noite toda. E tardes e manhãs também; o Mão Morta devia ser dos primeiros clientes matinais daquela tasca na esquina. A tasca era velha, portas de madeiras escarafunchadas abertas de par em par e com a tinta toda lascada, o edifício praticamente em ruínas, a emanar um cheiro a fritos e a adega que nauseava quem por lá passava às oito da manhã. E já com alguns clientes habituais sentados em velhos banquinhos de madeira com o buraquinho no meio – os chamados “mochos” –, com o radiozinho a pilhas em cima do balcão a debitar qualquer coisa em AM e os calendários de gajas louras e mamalhudas com alguns meses ou anos de atraso a sobressair na parede atrás. Depois de picar o ponto na tasca, o Mão Morta deambulava pela terra em monólogos balbuciados e carregados de interjeições imperceptíveis. De humores rápidos, o Mão Morta tanto podia ser um simples velho deficiente e abandonado, penando em silêncio e muito respeitador das liberdades individuais dos outros, como um tipo que se ria sozinho no meio do passeio ou até, como referi acima, extravasando alguns laivos de intempestividade. Neste aspecto, o Vaidoso era muito mais extremista – o Vaidoso era outro bêbado da terra.
O Vaidoso e o Mão Morta competiam em surdina para saber quem era o mais “wasted geezer” da terra. Não me lembro de os ver juntos. Mas enquanto o Mão Morta ainda podia despertar alguma compaixão e tinha os seus momentos de clarividência aparente, o Vaidoso era simplesmente um bêbado profissional e sem nenhuma deficiência física com a qual pudéssemos sentir comiseração. O Vaidoso era todo ele soberba alcoólica, sem pudor nem cura. Era um bêbado comme il faut, com a barba por fazer e andrajoso como os bêbados clássicos são. Andava sempre aos caídos, nunca pronunciou mais que monossílabos, nunca conseguiu abrir totalmente os olhos e passava largas temporadas sem tomar banho. O Vaidoso era um sidekick perfeito e não se ressentia com isso, até porque não devia perceber bem o que se estava a passar à sua volta ou, se percebia, não se importava; mas o Mão Morta tinha sentimentos e revoltava-se. Uma vez convidámo-lo para jogar basquetebol connosco, já que a sua mão indiciava uma técnica ímpar no drible que seria uma mais-valia para a nossa equipa, caso jogássemos basket, claro, e vimos o lado mais irascível do Mão Morta, com recurso à agitação da sua bengala e tudo, tão irascível que passámos umas boas semanas sem passarmos no mesmo lado do passeio, não fosse o diabo tecê-las.
Quando o Vaidoso morreu, toda a gente soube. Era uma parte do folclore da terra que tinha morrido também. Se não se soube logo, depreendeu-se passado pouco tempo, porque deixáramos de o ver nas imediações. As pessoas comentaram, “o Vaidoso já não mora aqui”. O Vaidoso era assim, famoso pela sua desgraça, impossível de passar despercebido. Já quando o Mão Morta esticou o pernil, a reacção não foi tão imediata. Ele abandonou-nos gradualmente. Apenas desconfiámos que alguma coisa teria ocorrido, já que deixámos de o ver nos sítios do costume durante algum tempo, até que alguém nos confirmou que “o Mão Morta já morreu há bué”. Mas nós ainda conservámos alguma esperança. Debalde. Nunca mais o vimos. Nunca soubemos ao certo o que provocara aquela maleita na sua mão, se um acidente de guerra, ou outro acidente qualquer, ou simplesmente malformação; nunca percebemos se houve um outro Mão Morta, limpo e são, antes deste Mão Morta; nunca conheceremos o que fez em concreto na sua passagem por este mundo antes de ser aquele velho errante levemente esquizofrénico. Agora, os restos do Mão Morta devem estar lá para uma campa rasa sem placa de mármore e sem flores no cemitério da terra. A própria tasca já fechou sob o peso da ASAE e com ela a promessa de uma nova fornada de bêbados clássicos na nossa terra. Ficaram apenas as memórias, que é melhor que conseguimos arranjar de graça nesta altura e que não fazem mal ao fígado.
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