23 novembro 2011

Morrissey

Lá para os meus lados vivia um tipo que era o clone do Morrissey. Talvez não tivesse a poupa, nem o ramo de flores na parte de trás das calças, nem um aparelho auditivo, mas tinha o queixo mais morrisseyiano que alguma vez assisti. E isso basta-me para ser o clone do Morrissey.
Uma coisa não tinha de certeza: a sagacidade lírica do Morrissey e a capacidade de escrever títulos de canções tão longos quanto hilariantes (ou não, depende do ponto de vista). Este seu clone era burro como uma porta e duvido que apreciasse outra música que não a martelada dos carros do tuning ou o que dá na Best Rock FM. Até já vi portas mais inteligentes que ele, daquelas com um olho óptico muito bem afinado que deslizam suavemente assim que te aproximas. Aliás, há quem diga que ele era analfabeto. Nem sequer era iliterato, que isso da iliteracia é coisa fina e pós-moderna. Não, ele seria mesmo analfabeto, incapaz de ler as gordas dos jornais; se completou a 4ª classe aos 15 anos foi por pura misericórdia dos professores – misericórdia para com este Morrissey e para com a própria paciência dos professores. Apesar disso, tirou a carta de condução, pois tal desiderato nem necessita de nada mais que uns bons euros que deve ter pedido aos pais, e dedicou-se aos carros afincadamente, como se o seu carro o mantivesse vivo. Se calhar, até manteve e, se calhar, a paixão pelo tuning salvou a vida deste Morrissey. Mas isso já é um grande “supônhamos”.
Se o Morrissey original atacava com as palavras, este Morrissey atacava com os punhos. Tinha as suas qualidades, este Morrissey: era um brutamontes que geralmente se rodeava de gente mais nova, parecendo ainda maior do que era. Ganhava, por pontos mas mais geralmente por KO, sucessivas discussões aos seus oponentes. Com ele nem sequer havia discussão – nem podia haver, a não ser que fosse qualquer coisa como “eu gosto mais do amarelo” ou “gosto do cheiro que vem daquele tubo de escape”. Não havia discussão porque tal não seria possível, dada a sua capacidade intelectual, e porque isso era marmelada demais para ele e ele queria era acção à laia do Chuck Norris, Steven Seagal, Stallone e o Schwarz-qualquer-coisa que ele adorava. Este Morrissey era uma espécie de Larry Kubiac (o gigante parvo do Parker Lewis (Parker Lewis foi aquela série do liceu americano que deu a seguir ao Já Tocou! (isto era TVI em 1993/94 (e este é o último parêntesis, prometo)))), mas sem a parte de parvo que aceitava sardinhas como recompensa e apaziguamento. Este Morrissey não estava cá com falinhas mansas; era a violência em puro, disparada para com putos 5 ou 6 anos mais novos – que ele, na sua petrificada consciência, devia julgar que eram seus pares.
Cada vez que vejo o Morrissey dos tempos de “Bona Drag”, como o vídeo de “The Last Of The Famous International Playboys” na VH1 Classic, lembro-me deste Morrissey – um ser tão unidimensional que até o próprio Morrissey poderia defender, caso o equiparasse a um animal, o que até nem era despropositado de todo – poderia ser um híbrido entre urso e camelo. E lembro-me do Morrissey por causa daquele queixo. Também pelos olhos pequeninos que lhe magnificavam a testa, mas sobretudo pelo queixo. Sem aquele queixo, este Morrissey seria mais uma banalidade que eu teria tido a indiferença de conhecer, ainda que, e felizmente, de forma superficial. Aquele queixo poderia ter feito sucesso entre as indie rockers do final dos anos 80, mas, por azar, quando este Morrissey começou a querer saltar para cima delas, já o tempo do verdadeiro Morrissey tinha passado. Quando este Morrissey atingiu a plenitude da sua puberdade, o verdadeiro Morrissey tinha-se afundado no mar da rebeldia rock dos anos 90 e a sua voz nasalada passado completamente de moda. Senão, este falso Morrissey podia ter tido tempos felizes com as nerds smithianas. Não muito tempo, que elas apercebiam-se que dali não sairia nada do género de “Girlfriend In a Coma” nem nada que se parecesse, mas o suficiente para passar um bocado interessante. Só sei que este Morrissey, numa atitude pouco morrisseyiana, era visto amiúde em casas de alterne, o que prova que o mundo, na sua estranha forma de arranjar equilíbrios, ainda evolui com alguma lógica: este Morrissey só conseguia sexo pagando, a não ser que arranjasse alguma gaja com ligeira trissomia 21. Como é que ele conseguia o dinheiro, dada a sua gritante incapacidade adaptativa a qualquer coisa, é que já me ultrapassa um pouco, mas arrisco três hipóteses: crime; pensão ou subsídio por qualquer coisa; crash test dummy.
… ou então como sósia do Morrissey em documentários sobre a Manchester dos anos 80 depois dos Joy Division. A cantar deve estar ela por ela com o verdadeiro Morrissey, menos na parte dos falsetes. Mas ninguém deve tê-lo descoberto entretanto e ele nem saberia aproveitar a oportunidade se ela aparecesse escrita num letreiro gigante à sua frente. Literalmente.

Sem comentários: