Havia
quem dissesse “já fazia falta uma chuvinha assim” e havia quem, imbuído dum
espírito literário, assinalasse o poético da situação. A pergunta que mais se
repetia era “como ele morreu?”. Bem, eu morri a viver. Já tinha vivido muitos
tempos mortos, mas isto não foi bem a mesma coisa. Desta vez eu morri mesmo.
Posso morrer de várias formas. Como lançar o dado e calhar na casa do Inferno:
“ena pá, morri!”, exclamei. E a gente à minha volta, “pois foi!”, olhando meio
perplexa para mim. Afinal, morrera e ainda há instantes estava ali a disputar a
Glória com eles. Eles, lá no fundo, ficaram muito aliviados por não terem sido eles
a quem o azar bateu à porta. Nem sequer houve muita consternação. Isto não
passa de um jogo, não é? Entre uma palmadinha nas minhas costas a pender para o
rigor mortis, desvalorizaram a situação, “ah, a gente volta a jogar outra vez,
deixa estar isso…”. “Não”, expliquei-lhes, “desta vez eu morri mesmo. Tive um
azar do caraças. Isto acabou de vez”. E eles lá se aperceberam da gravidade.
Houve expressões faciais algo consternadas por momentos, envoltas num silêncio
encavacado. Mas depois alguém chegou finalmente à Glória e logo as atenções que
estavam concentradas no meu infortúnio de súbito divergiram para nunca mais
convergirem. Se a vida foi efémera, a minha recordação será ainda mais. Daqui a
pouco tempo, sobrepor-se-á pó fresco sobre o meu pó e todos formaremos um monte
de pó indistinguível que albergará insectos e vermes, será urinado por crianças
e idosos e dissipado pelo vento, tratado como entulho e apagado duma memória
com muito poucos bytes disponíveis para albergar minudências como eu.
Os
bytes são preciosos, são a água que permite e alimenta a nossa existência
nestes tempos em que passamos os dias com a cabeça na cloud. O que é muito
diferente de andar com a cabeça nas nuvens mas por vezes parece igual. Neste
sentido, também posso ter morrido duma forma modernaça. Jogando um daqueles
jogos de consolas. Online, com putos e nerds não tão jovens de todo o mundo,
numa rede de soldados desconhecidos sem direito a estátua. A morte veio pelo
ecrã. Anunciada com um garrafal “GAME OVER” em tons vermelhos e desta vez sem
direito a continuação. As vidas infinitas eram um mito. Devia ter sabido disto,
não era um subscritor e fiz um download ilegal. Portanto, foi um castigo
merecido pela minha veia de pirata e pela minha imperícia em manusear a arma
num teatro de guerra urbana em 3D. Dizem que foi o “user39240675” a matar-me à
traição, o “polarbear_345” jura que foi a “urbanWWWitch” que me surpreendeu, o
“Yevgeni8SSok” escreveu no chat que “he blown his grenade”, mas a maioria nem
notou. Pensavam que eu estaria lá na noite seguinte, mas eu faleci sobre o
tapete da sala e não voltei a ligar-me à rede. Passaram à frente. O
“no_nick_6969696969” foi alinhado para a equipa e revelou-se melhor que eu. O
meu perfil, porém, eternizou-se na rede. De quando em vez, umas mensagens
pingam na minha área, oferecendo serviços, apresentando novidades ou convidando-me
de volta para a minha vida guerreira. Revelei-lhes, “I’m dead, folks”, mas as
reacções foram díspares. Houve quem soltasse um “lol”, certamente um fã de
humor negro; houve quem digitasse “wtf?” e depois muitos despejaram bonequinhos
amarelos com faces diversificadas, alguns mexiam-se mas outros não, eram
estáticos como eu ficara. O meu cunho ficou para sempre marcado na rede. Mesmo
morto, valho bytes. Valho algum cêntimo de bitcoin para alguém ou alguma coisa.
Mesmo que ninguém queira saber da minha cara, dos meus desejos ou dos meus
medos, sabem que ainda ocupo o mesmo espaço dos vivos. Um espaçozinho virtual,
vá, proporcionalmente mais exíguo que a campa onde fisicamente o meu corpo agora
apodrece.
Ou
simplesmente morri porque assim teve de ser. Por causa de alguma anomalia
física, um acidente infeliz ou porque assim quis. Na verdade, morremos todos os
dias um bocadinho. Eu simplesmente adiantei etapas ou apenas deixei o prazo
expirar até algum órgão vital falhar. Agora parecem-me exagerados os muitos
momentos em que desejei que este dia viesse, consumido pelas angústias e
desilusões dos muitos dias em que chafurdei no meu próprio desespero. Se calhar
não valia a pena a preocupação. Provavelmente, não
aproveitei o que devia. Havia sempre tempo a mais e agora já não há tempo para
mais. Não foi por falta de aviso, mas havia sempre aquela esperança parva no
amanhã. Um amanhã radioso que tardava a aparecer. Agora não há mais dados para
girar ou créditos suplementares. Nem sequer há a hipótese de me arrepender do
desperdício, de me libertar dos pequenos ódios que me depauperaram as energias,
de cumprir com velhas promessas ou de realizar os inevitáveis sonhos adiados.
Já não se pode adiar mais. É fisicamente impossível e não me passa nada pela
cabeça, nem sequer um leve zumbido indicando que a transmissão acabou. Entre
mim e uma pedra tosca não há grandes diferenças. Daqui a pouco, a decomposição
trará um forte odor. Eu tenho de ser despachado e enclausurado num lugar longe
da vista para sempre. E longe da vista é longe do coração. Vou desvanecer das
memórias de toda a gente.
Perguntam-me,
“e como é a morte?”. É como entrar num sono eterno. Nem damos conta. Sabem
aquelas coisas dos anjos ? É treta. Quando fechas os olhos vês uma luz forte
que te encandeia de tal forma que tudo fica escuro. Só isso. É tudo vazio. É a
definição do vazio. E eu que tanto queria revisitar os meus adorados animais de
estimação no além, de novo joviais a pularem com alegria de nuvem em nuvem
perante a bonomia de Gabriel e Deus, de sentir a frescura terna do seu olhar, que
queria abraçar os meus pais de novo, roído de saudades e com eles reviver a
nostalgia dos bons velhos tempos, de me levarem ao colo e de me protegerem
enquanto crescia, acolher os meus amigos que ficaram mais uns tempos na vida
terrena e depois rir-me à gargalhada num espírito de união e camaradagem que só
com eles atingi, mas aqui não há vida. Não há nada. Não há ninguém. Venderam-me
uma ideia errada. Não sei para onde eles foram. Quando eles foram, foram para
outro lado qualquer. O além é um buraco negro, um vácuo perfeito. Não há céu
nem inferno, tampouco purgatório ou paraíso, nada. Nem prémios para os bons ou
castigos para os maus. É tudo assim-assim, de forma severa. Livre de quaisquer
amarras e ao mesmo tempo preso num lugar inóspito, de tão desolado. Sem doenças
mas também sem paixões. Não sentes nada, não vês nada, cessas de ser. Tão só
isto. Não há nada de formidável nem miraculoso.
Eu
sei, é uma desilusão. As pessoas esperavam mais. Os árabes esperavam virgens,
coitados. Os cristãos esperavam a redenção, pobrezitos. Os hindus esperariam o
quê?, uma ovelha mágica de 8 patas e quatro braços? E os budistas, um mar de
incenso e silêncio? Bem, estes se calhar não irão estranhar muito as coisas. Enquanto
o meu caixão descia para uma cova enlameada, uma ligeira brisa apagou as
trémulas velas e dobrou as flores murchas e as de plástico, mas os ciprestes
permaneceram estáticos na sua frondosidade elegante. Fotos envelhecidas observavam
das campas contíguas e bolorentas o seu novo companheiro. O coveiro foi tão
profissional quanto podia ser, indiferente a tudo. Umas últimas lágrimas caíram
das faces dos poucos presentes e um raminho de crisântemos foi
atirado para cima de mim, com uma dedicatória para “descansar em paz”. Como se pudesse ser
doutra forma. “Ainda tão novo...”. De facto, sou um cadáver enxuto. Os organismos
sob a terra irão deliciar-se comigo, até com o fato que me vestiram. Era uma
pena cremarem um defunto assim tão belo. E também era mais caro. Admito que
tenham usado um fato velho para entrar decentemente nesta etapa, senão seria um
gasto totalmente inútil. Seria literalmente dinheiro atirado para um poço sem
fundo. A gente não diz que a morte chega tarde. Passamos a vida atrasados para tudo
e depois a morte chega sempre mais cedo. E este horário não pode ser ignorado.
Qual
o sentido disto tudo, afinal? Viver serve para quê, afinal? Não sei, ninguém sabe, ninguém pode saber e de
qualquer forma isto já não é para mim. Estas perguntas são aborrecidas e as
respostas nunca convencem. A minha viagem termina aqui. Obrigado por tudo e
desculpem qualquer coisinha. Se vos fiz alguma coisa mal foi por pensar que de
alguma forma isso seria bom para a minha vida. Acontece a todos. Mas já não dou mais
para o peditório das chatices. Fica para vocês que estão aí à chuva e que esperam
que o sol venha em breve. A dúvida é agora um exclusivo vosso.