Não quis acreditar quando vi a
Mariah Carey perto de mim. Lá estava ela, inundada de maquilhagem sobre aquela
pele tostada, quase que uma obra perfeita de Photoshop, a roupa da moda
comprada numa Primark a disfarçar que era Prada, saltos altos a revelarem a
unha tingida com uma matiz que não era rosa, nem vermelho, nem azul, antes uma
cor intrincada que ninguém sabe ao certo como catalogar, os adereços
chocalhantes e pouco práticos mas que devem despertar uma cobiça irritante nas
outras tipas e, como pedra de toque do pandã estilístico, uma expressão facial
plástica, fria de tão imaculada, cujo único brilho provinha do batom
esparramado naqueles lábios desenhados com compasso, esquadro e pincel
milimétrico, já que as pestanas, frondosas, pareciam obras de engenharia mecânica,
e as sobrancelhas, mais finas que a mais fina massa de pizza e desbastadas
meticulosamente após horas de pinçadas mais ou menos dolorosas, estavam
concebidas para serem uma espécie de adereço facial ao cabelo, alisado pelo
vapor dum ferro fervente e tintado numa tonalidade nem bem loura, nem bem
castanha, mas muito na moda. Parecia uma bonequinha de porcelana que ganhara
vida e saíra sub-repticiamente duma loja de faianças.
O meu espanto foi em vê-la
sozinha, sem estar acompanhada por um gajo qualquer também ele muito na moda,
daqueles que desenham a barba como o Paulo Fonseca e vão muito ao ginásio para
ficarem com braços muito fortes nos quais possam esparramar tatuagens das quais
não saberão o significado e peitorais salientes e depilados com minúcia, na
esperança de virem a ser convidados para entrar no Magic Mike XXL. Se calhar
estavam a “malhar” no ginásio. Quando falam em “malhar” penso sempre no jogo
dos velhos e imagino-os a tentar mandar os pinos para o chão ou, melhor ainda,
a serem eles os pinos e a levarem com os ferros em cima da cornadura. De
preferência, deveria estar acompanhada por um preto. Porque os pretos estão na
moda. Os pretos e tudo o que é relacionado com eles, desde o sotaque e as
expressões que me fazem desejar que eles fossem todos familiares do tipo d’ “Os
Deuses Devem Estar Loucos”, passando pela gastronomia e acabando no
idiossincrático gosto por roupas e preferências artísticas a atirar para o
boçal. Os pretos estão tanto na moda que tudo o que digam ou façam é aceite
como uma coisa porreira. Desde que li num panfleto “venha praticar kizomba
porque praticar kizomba é viajar no tempo”, ilustrado por uma fotografia dum
preto a colocar a mão apenas uns estratégicos centímetros acima do rabo duma
“dama” (acho que é assim que eles chamam às mulheres; eles devem ser os “ases”
ou os “reis” e só um teve a audácia de se intitular “valete”), que acredito piamente
que hoje em dia os maiores vendedores de Torres Eiffel deste mundo são os
pretos. O tamanho da verga deles ajudará, por certo, por muito que digam que “o
tamanho não interessa”. Balelas que já ninguém compra, nem mesmo com
super-saldos sobre as promoções.
Apesar de sozinha
presencialmente, estava acompanhada por um telemóvel touchscreen, que
acariciava com cuidado, não fosse ratar demasiado a sua unha. Penso que era um
i-Phone da “Éiple”, que é tudo o que esta gente conhece e é uma das peças mais
imprescindíveis para obter reconhecimento social. Devia estar a debitar
emoticons num comentário a uma amiga qualquer que exibia com opulência as suas
novas unhas de gel com uma careta patética no Facebook ou no Instagram. O nível
de literacia dela e das suas amigas mede-se, segundo consta, pelas complexas
frases que expressam por intermédio de bonequinhos. Sim, porque ela não deverá
ser capaz de conjugar correctamente as formas verbais no pretérito perfeito da
segunda pessoa do singular, mas é francamente hábil em juntar bonequinhos de
maneira a que todas as suas pares percebam. Uma putativa campeã de Emojination.
E depois lançava expressões de superlativo enjoo, gritos mudos de impaciência,
com aqueles olhinhos que se esforçam por ficar esbugalhados sob o peso
mastodôntico daquelas pestanas de meio-metro, especialmente às pessoas que
respiravam de muito perto o seu ar. Uma chatice, as pessoas normais, sem
bronzeados Piz Buin nem bugigangas sugeridas pelos blogues das gajas
“trend-setters” – e que encarnam basicamente o que os santos representam para
religiões mais formalizadas como a católica na sociedade tão esvaziada quanto
exibicionista deste maravilhoso mundo moderno, onde tudo são sorrisos,
exclamações de êxtase automático e paixões incontroláveis e instantâneas. Pois,
se uns professam a paixão de Cristo e todo o bem d’Ele emanante, outras
espalham a palavra d’A Pipoca como a sebenta indispensável para sufragar quem é
“hot” e quem é “not”: as “hots” são as que vão ao ginásio às horas adequadas
para apanharem os gays mais musculados do pedaço, pedem o gin “com açúcar no
rebordo do copo e zimbro q.b.” e estão com a gente certa na festa certa a sacar
selfies, as “nots” são basicamente o resto, gente estupidamente frugal,
inconcebivelmente feia e aborrecida, que até sabem o que é a crise de facto.
Ela tem um marido. Um
acompanhante. Um amigo especial. Uma marioneta, enfim; mais um dos seus
incontáveis acessórios, mas com a particularidade de este não caber em nenhuma
das suas malas e maletas. A Mariah Carey normal tinha um “sugar daddy” rico e
possivelmente produtor dos seus próprios discos, esta terá um advogado ou
consultor que passa muito tempo fora de casa, que a ajuda a manter as
aparências e que a guia num Audi/BMW/Mercedes/Jaguar/Porsche (outras marcas não
serão aceites, a menos que o carro custe mais de trezentos mil euros) para as
festas da gente que interessa, que, embora ela saiba o quão são aborrecidas, é
onde o seu sorriso é condignamente louvado. O sorriso deve ser apenas utilizado
para a pose e com moderação, porque sorrir faz rugas e os cremes custam os
olhos da cara. E do cu também. O cu que ela só dá aos amantes que vai
conhecendo nas festas e que são, de preferência, estrangeiros com cara de
estrangeiros de países conhecidos. Porque ninguém quererá saber dum gajo com
aparência de ter saído da Amadora ou dum gajo do Laos, mas ficará sensibilizado
se ela aparecer numa dessas selfies com um dinamarquês com olhos azuis
pungentes e barba por fazer à Viggo Mortensen. Ou um angolano tipo Anselmo
Ralph que fale numa língua que ela até percebe e que tem uma língua que a
humidifica nos sítios que interessam.
O que ela faz? Não interessa bem
ao certo. Vagamente, pode considerar-se “empresária”, embora também possa
trabalhar por conta de outrém numa actividade que “não canse muito a cabeça”,
porque o cansaço tira o glamour à gente. Coisas giras, como marketing,
publicidade, relações públicas ou relações púbicas para a alta sociedade – um outro
nome para “esteticista”, que é um termo demasiado anos 80. Anda por lá passando
o tempo a cultivar invejas e a colher elogios, no essencial, porque isto de
ficar em casa é uma coisa ultrapassada e aí ninguém a vê senão no Skype, cuja
definição não favorece as suas formas nem deixa perceber o seu novo corte de
cabelo ou o novo creme daquele laboratório francês. “Trabalho” é um substantivo
que lhe faz comichão, é demasiado classe-baixa, soa-lhe a coisa da Margem Sul;
o ideal é ter uma “ocupação”, porque não fazer nada pode sugerir um certo
parasitismo diletante que não é o que se pede às divas. A Mariah Carey também
só precisou de cantar a sério no primeiro álbum, depois foi tirando a roupa,
fazendo aquela cara de cadelinha abandonada e confiando no playback, nas
inovações tecnológicas e nas tipas feias que não tinham arcaboiço para ir para
a frente do palco para continuar uma carreira. Valha a verdade, “música” é um
conceito que já abandonou a ligação a “Mariah Carey” há uns bons anos, assim
como “carreira” é algo que combina tão bem com esta Mariah como um stiletto
numa arena de carrinhos de choque. Uma fartura no Urban. Uma mini numa Sunset
Party. Um artista virtuoso num festival de Verão. Um bitoque no restaurante de
sushi. Um pedaço de rapé inalado por intermédio duma nota enrolada numa
casa-de-banho de uma grande empresa. Ela sabe do que estou a falar com estas
comparações.
Vi a Mariah Carey no metro. Que é
um transporte muito vulgar para ela, mas desta vez teve mesmo de ser, notava-se
claramente pelo enfado que brotava da carinha de louça lavada com abrilhantador,
dos labiozinhos meio torcidos, do ligeiro suspiro que exalava daquelas
narinazinhas perfeitinhas. O meu sonho? Vê-la a espalhar-se ao comprido
enquanto procurasse equilibrar-se nas escadas mais íngremes do Metro, em plena
hora de ponta, rebolando sem remissão por aquelas escadas com o seu corpinho tonificado,
tão estimado mas sem alma, até se espatifar com estrondo que nem uma bola da
árvore de Natal na parede. Vocês já arremessaram uma bola de árvore de
Natal com violência contra um muro? A bola desfaz-se em milhões de partículas
cintilantes e desaparece de forma espectacular. Não te chateies, Mariah, seria
um desaparecimento fantástico, se calhar iriam falar muito de ti, quem sabe
emprestar o teu nome a uma festa de beneficência patrocinada por uma revista de
moda em colaboração com uma bebida alcoólica com sabor muito doce e iriam
povoar os teus perfis públicos com imagens dos teus tempos áureos, receberias
muitos “likes” e muitos bonequinhos com a lagrimazinha ao canto do olho entre
abreviaturas de suposto português misturadas com “OMG” e “RIP” e outras
expressões americanizadas, links para websites de moda e obituários na Moda
Lisboa. Tudo o que uma pessoa decente pode ambicionar, ao fim ao cabo.