09 agosto 2025

Novos Velhos

A música é velha, a televisão é velha. Os velhos hábitos só se desincrustam pelos seus próprios meios. Não incomodar. Houve muito tempo investido em determinar esta zona de conforto. A novidade estremece o teatro das minhas pacatas operações. Cultivo a atracção pela contemplação, pelo sossego de horas mortas. Com novos amigos improváveis. A conformação estendeu-se numa chaise-longue e espreguiça-se, dolente, sobre o cotão das ilusões. Diz-me que está tudo bem, para não me preocupar. O sofá, também velho, cogita nas suas deformações crónicas. Perdemos o tempo juntos. Tão sozinhos, tão eremitas. Nós e estas paredes contemos as palavras e os gestos mais belos que o tempo jamais reconheceu. Só partilhamos estas coisas com as nuvens e nunca no tempo certo. O tempo move-se e isto ficou grudado lá atrás. Eu com elas. O velho perdeu e perdeu-se. As referências de outrora nada dizem às gerações presentes. Vejam os cabelos deles. A confusão da sua roupa. Os tiques e os trejeitos. O lixo de ontem é o luxo de hoje. Se te fizer sentido, está tudo bem. Mas será normal a dúvida. Estamos a mudar de pele, afinal. Não é uma pele bonita, não se conserta com sabonetes líquidos. É uma pele imperfeita, demasiado seca ou sebosa. Não é o que se pensa que tenha sido. Já não é o tempo de sonhar com o tempo que vem, mas de suspirar pelo tempo que foi. Mesmo que não se tenha perdido muito, há sempre aquela sensação de se ter perdido qualquer coisa e de lá adiante não estar ninguém. Nada que interesse, que o interesse tem vindo a esconder-se debaixo da agenda, não se vê. Por onde andas tu? Há tanto tempo, tempo que nunca mais faltava... Discussões em silêncio com a mobília sobre as possíveis saídas para este tempo. Às vezes julgo que ganho, às vezes tenho a certeza que perco. Acho que está tudo feito com o tempo contra mim. Suspeito que tenho poucas hipóteses de sair airosamente. Não que seja velho, mas porque estou velho. Sob uma perspectiva de quem vem de trás e interioriza que já correu metade do caminho ainda sem perceber qual a saída. Vemos os muros concretos do tempo, dantes era tudo abstracto. Não é nada que se repare quando o tempo te vicia com esperança. Agora notas que o relógio nunca sorri, o calendário deixa cair as folhas na lama. O susto do médico e a insónia permanente. O enredo é velho, o imprestável do velho já não anda para a frente. Em frente, decorei a parede com retrovisores. A reflectir uma história atrás que ninguém quer saber. O tempo de hoje é para leds, não para esta lâmpada incandescente alumiar. Todos sabem, o paradigma mudou. Vai mudar outra vez. Vai haver novos velhos, cheios de genica para aguentar um declínio tenaz. Um reciclar de frustrações, uma velha prosa. Levada com as nuvens, albatroz planando no nevoeiro, um dia aterrará à minha porta. Na minha sala será mais uma companheira silenciosa, parceira das inquietudes. Para o tempo em que eu não quiser enfrentar o tempo.


18 agosto 2024

Cair

Só queríamos um alívio. Uma esperança que nos desse uma réstia de vida. Mais que apenas a vontade em erguer-se do chão que o atrai. Quando não há força, as pernas tremem e o corpo cai. Outra e outra vez. Pelas feridas donde brota o sangue, parece que vês a alma a sublimar-se, a esvair-se no ar e a perder-se no vento. Sai pela boca do peixe fora de água, pelos olhos da coruja afogada no abismo. Sentes que o fogo chegou ao cerne. Percebes que aquela madeira outrora valorosa já não é inexorável. Foram anos e anos de porfia, mas agora é uma questão de tempo, o caruncho vencerá pela persistência metódica com que arranca as entranhas. A brasa abafa os gritos do condenado que tenta resistir, depois a cinza atestará a inutilidade do ser. Tenaz e cruel, a ferrugem corrói as camadas arejadas até infligir a derrota total no âmago do metal. Era um ferro bom, mas sofre como papel. Sem piedade alguma, vagaroso e ponderado, o assassino contempla a angústia da vítima que se vê a definhar, a encarquilhar, a perder-se num poço sem fundo onde o ar é rarefeito. O martírio da impotência e os suores do desespero são os únicos companheiros. Diz-te para desistir. Não se ouve bem. Também sem palavras, que a língua já não obedece. O pescoço perdeu o óleo. As mãos não fecham, recusam-se a cooperar.  A direita nunca é certa e a esquerda não se mexe. O pensar e o dizer tornaram-se irreconciliáveis. É a anarquia dos sentidos a implodir as fundações básicas de uma pessoa.

Às vezes queremos que venha uma síncope fatal sem aviso. Uma ribanceira pronunciada no final da queda. Um espeto cravado no crânio ou um relâmpago que torne estes longos dias num mau instante. Foi um mau dia. Muito longo, muito enervante, muito longe de tudo e onde tudo se vai afastando. Amanhã desconfiamos que possa ser igual, nem a torpeza da ilusão nos conforta nestes tempos de agonia. Sentes as memórias a agrupar-se dentro de ti, num exército que não te vem salvar, apenas vem presenciar os sentimentos de culpa que esbanjas no campo de batalha. Estás a lutar contra elementos muito fortes, que no fundo é a ordem natural das coisas. As coisas estragam-se, deterioram-se e podem ficar sempre pior. Se o cimento duro não quebra os ossos, quebra a confiança. E por vezes os dois ao mesmo tempo. Todos os ontens vêm bater-te à porta a assinalar-te onde estiveste mal. E foram muitas visitas indesejadas que tocaram essa campainha ensurdecedora, que te marcaram covas no rosto à laia de avião abatido, foste mais um a sofrer o choque com a realidade.

Vai haver abraços e beijos. Lágrimas e condolências. Exortações à paciência e à consolada resignação. Sinos e louvores, filosofias e brisas poéticas. O corpo está a deixar de o ser, pena que a alma já tenha sido hipotecada há tanto. Vimo-la a ir e a voltar tantas vezes que pensámos que haveria sempre mais um regresso. Uma última dança. Uma última visita que não saberíamos se seria. Uma pequena surpresa antes da tragédia. Mas o drama não vem de rompante, insinua-se subtil todos os dias sob a forma de uma pequena frustração. Um ribeiro de mágoa que desagua num mar de tristeza pungente. Comprámos bilhete de camarote para o espectáculo do declínio dos miseráveis. Lá vem o chão outra vez. Aleija o artista, mas este depois acaba por se tornar insensível e fica a audiência para levar com o fardo do destino. Aceita, dizem eles. Não há como não aceitar. Como se houvesse outra opção.


21 junho 2024

Loucura

 

A simples loucura não é estimada. Para ser benquista, a loucura tem de ser a puta.

Um paradoxo louco.

Ninguém quer experimentar a loucura se ela não for a puta. A puta da loucura. Se for, podemos esperar o melhor. Ou o pior. Espera-se qualquer coisa marcante, todavia.

Normalmente, o estado da loucura enquanto puta é temporário. Uma festa, um evento, um certame, nada que perdure assim tanto no tempo. Devia lá se ter estado para saber o que foi, o que sentiram os envolvidos. Aquelas coisas das quais guardamos imagens mentais coloridas e que esperamos contar mais tarde numa roda de amigos, para impressionar. A puta da loucura é cintilante, impossível ficar indiferente à sua rameirice insidiosa. Com os seus saltos altos que injectam ilusão nas nossas veias sedentas de paixão e um corpete tão apertado quanto provocador nos seus contornos voluptuosos, o perfume do delírio nos seus cabelos soltos, é assim a loucura quando puta passa por nós. Um terramoto de emoções. Uma bebedeira memorável, um sexo fulgurante, um ambiente transgressor. Ela entrega-nos a liberdade absoluta numa bandeja dourada de tentação. A sorte da nossa vida ali à nossa frente, por um momento, durante um momento. Um excesso único que no dia seguinte se vai embora, mas deixa a secura da ressaca na boca e um grão de desejo no nosso coração. A loucura, se puta, é assim.

Porém, se a loucura é filha recatada e fria, se se tarda dentro de nós, então o caso muda de figura. Uma loucura só é uma loucura amarga.

Com o seu xaile preto de abandono e perdida num labirinto hospitalar, as pernas dobradas num arco lúgubre quando cambaleia pelos recantos, a loucura que não é puta é demasiado séria para ser querida.

São pobres desgraçados, os loucos sérios, não acometidos pela putaria duma loucura depravada. Esta loucura é a gémea má do Baco. Atormenta sem piedade, ofusca a clarividência, apaga as almas. E se calhar alguns só queriam a puta. A puta da loucura. Mas alguma coisa correu mal pelo caminho. A puta foi puta demais. Ou nunca chegou a sê-lo. Não foi aquilo que queriam. E agora estão presos dentro de um corpo que apodrece, com o pensamento a baralhar-se de dia para dia. Sítios em que já não se está, noções periclitantes de realidade. Espelhos que já não reflectem. Gente que já foi. Que já não é nem está realmente. É somente uma projecção dum passado comprometido. Um pseudo-holograma em acelerada decadência. Comprimidos e tratamentos de choque, o espartilho branco sobre um monte de ossos que já não tem controlo sobre si e uma esperança fugidia numa partida sem dor. Ela não se vai embora e não é divertida. É uma bruxa pérfida invencível no seu caldeirão. Não, salvem-se desta loucura malvada, a que é certinha como um relógio suíço.

Nunca procurem outra loucura que não a puta. É inofensiva. A outra é um vício incomportável. Depois dá para fazer coisas esquisitas. Como sentir uma inadaptação terrível em lidar com o mundo exterior, as pessoas e as situações no geral. De perder o sentido e nem sentir que se o perdeu. E até de começar a escrever. Não queiram isso.

10 março 2024

Em Branco

 

Até queria ter a vontade de meter a cruz nestes. Mas não consigo. Mesmo que os outros possuam o odor persistente a compadrio, debaixo dos holofotes e da conversa redonda, que me enfastia de sobremaneira. O tom e timbre do discurso carrega inflexões e cadências delicodoces, o nós tão bom e o eles tão mau, aquele paternalismo meloso da incumbência, com os olhos a acompanharem cada recanto da sala, percorrendo-a num ritmo de encantador de serpentes que me deixa mais que indiferente, deixa-me a quilómetros de distância. Eu não quero ser visto por esses olhos falsos. Afasto-me. Eles não podem ser o menos mau e não podemos ir apenas pela contenção de perdas. Ainda assim, nestes não consigo. Talvez se incluísse outra gente, esta não. Esta gente traz a memória de tempos sombrios, que só não tomaram proporções maiores e mais graves porque ainda estamos todos meio anestesiados de anos de complacência. Noutro século, as coisas teriam descambado para eventos mais tumultuosos. É percorrer a história para perceber que nem sempre fomos tão aparentemente brandos. E para além desta incapacidade em revoltar-se, que se tenta explicar pelo passado, neste século de vigilância social toda a gente tem medo de dar um passo mais brusco que a comprometa. Esta gente tem um cunho sinistro que impede qualquer sustento de empatia. Ficou associada indelevelmente a momentos de instabilidade. Há ali individualidades que assustam com o seu sorriso e fazem tremer com a sua simples presença, não propriamente pelos melhores motivos. Não foi boa ideia recuperá-los, não foram bons tempos. Os anteriores já não tinham sido e, muito provavelmente, é aqui que se encontra a raiz deste desgosto. Também aqui houve culpados, como antes e outrora a aqueloutros, se formos mesmo até ao fim somos capazes de desembocar no Afonso Henriques. Enfim, se formos minimamente justos, haverá um limite para o qual a desculpa já não é admissível. Portanto, aqueles que começaram de forma mais evidente este caminho de desleixo institucional generalizado e estes que supostamente vieram corrigir com a destreza dum elefante num nenúfar são ambos co-responsáveis por uma página amarela numa história com algumas nódoas. Foi uma década inteira jogada ao lixo. Fomos depauperados nos bolsos e na alma. Acordei muitas vezes durante a noite com o teu sorriso falso cravado na minha cabeça. Demasiadas vezes numa inquietude que não resolvo. E eles estavam lá nesse tempo em que a distância cresceu e os ventos tornaram-se hostis. Estiveram mal na pior altura. Eles são aquelas fotografias que nos deixam um gosto acre na boca, uma fina azia no estômago, uma bofetada na nossa boa-disposição quando visitamos o álbum no baú e que nos relembram de quão cruel e trágica pode ser a nostalgia. A nostalgia nem sempre é assim tão doce como propagandeiam. É mais uma sereia que nos abocanha à laia duma fêmea louva-a-deus, aliás. O pó da nostalgia é viciante como o pó da cocaína e fere-nos o âmago como o pó do amianto. Distorce-nos completamente as percepções da realidade, faz-nos viver num sonho irreal, de desejar o irrepetível, de nos deter em contemplações espúrias. Entretanto o presente esfuma-se e o futuro, essa abstracção que é o sorvedouro das nossas esperanças, desfaz-se pela torrente natural do tempo. O que já foi não volta a ser, nunca da mesma forma. O que vale para o país vale para o indivíduo. Que se lixe o fado. Que porcaria de som, sempre a finalizar no mesmo acorde, sempre a bosta da saudade, a patetice de glorificar a perda, a resignação como uma virtude. Não vamos a lado nenhum. Venha quem vier. O que se quer é mais uma justificação para a nossa incompetência, incapacidade e infelicidade. É sempre tão mais fácil varrer os nossos verdadeiros problemas respondendo a perguntas com mais perguntas, fingindo um espírito crítico que nunca se aplica quando e onde se deve, ou seguir a manada sem referências que se uniformiza numa cultura mcdonaldizada. Não sei quem se seguirá. Parece tudo plausível. Até pode ser alguém gerado por inteligência artificial. É candidata à palavra do ano, artificial. Dou por mim a pensar que isto pode ser um filme e posso ter tomado a cápsula errada. Dobro o papel tal e qual ele me foi entregue e dissolvo a minha voz numa caixa escura que não me ouve. Estendo as metáforas no sentido de conferir alguma razão ao meu sentir. Sinto-me civicamente completo, mas individualmente incompleto como no dia anterior.  É uma pequeníssima vitória moral.

25 fevereiro 2023

Kelly

 

Ela vem para Albufeira em Agosto. Mergulhar naquele oceano de bifes que transpiram álcool pelos poros e cuja pele grita por “cancro!” em cada esquina onde contêm o vómito. Ela vai a esses sítios onde os bifes se congregam num êxtase pós-colonialista banhado a sol e bebida, esbanjando os euros adquiridos com a sua vetusta libra, estrelina como as unhas dela, decoradas, trabalhadas, pontiagudas, um abuso de queratina artificial e de verniz chinês barato, um azeite rançoso que emana um aroma acre e que certamente infectará a carne onde ela as cravar. E que loura que ela é, sardenta, rechonchuda, deslavada, contém os genes da Baby Spice Girl e poderia figurar num clip dos Blur. Como uma figurante de tranças a chupar um lollipop gigante ao lado do sisudo Graham sobre um tapete que as bandas usam nos seus ensaios e num exíguo quarto perto de St. Pancras. Não é pâncreas, como eu supunha, mas seria muito mais inusitado. Os quartos dos bifes são todos forrados com papel de parede escuro que combina muito bem com a melancolia da sua gastronomia, toda virada para as doenças do foro gástrico. Há quem aposte na variedade, eles mantêm a fórmula dos fritos. Fazem disso tradição. Em equipa que ganha não se mexe. Já quanto a destinos de férias, existem pequenas mudanças. O que ela quer é sair do melting pot de culturas que é Londres para um sumidouro de almas sem reservas morais e com quartos à beira-mar plantados. Pode ser Grécia ou Espanha também. Mas Albufeira é mesmo aquele “what the fuck”, o delírio de se poder atrever a tudo que tudo será permitido neste pedaço perdido de terra tão inapelavelmente submisso. E ainda por cima com sol do bom. Dar umas voltas de burro lá para os lados de Paderne e depois acabar a foder sob uma alfarrobeira ou a rebentar um bar na Oura, perante a resignação geral da população. É à escolha. Depende da vontade do grupo, onde há sempre alguém que perde um tamanco na calçada ou que parte a cabeça num lancil com a bebedeira. Tem aquele sotaque de gaja que ouve punk. Aquele britânico mais irritante, qual Morrissey se tivesse crescido no seio da claque do Newcastle. Ela não diz “well”, resmunga um “uéu”; não se consegue perceber muito bem a disposição dela quando atira um “au á iue?” para começar a conversa. Ela está de copo na mão, ela adormece de copo na mão. Parece que tem sempre qualquer coisa na bochecha mas nunca arrota. É um feito de que se deve orgulhar. Mais do que despachar três putos de Aveiro que estavam a passar férias em Montechoro. Ela não se orgulha, mas conta casualmente estes episódios da sua colorida vida entre muitas outras coisas que não se percebe. O álcool causa os seus efeitos, por muito disfarçados que sejam, acho que ela começa a andar à roda no discurso. E depois anda à roda na rua com cânticos hooligans e acaba a vomitar-se no Uber que ela e as amigas chamaram. Já iam na Via do Infante a caminho de Tavira. Porque havia um gajo chamado Jarred que estava lá, era de Liverpool e conheceram-se num pub perto de Kings Cross, às 17:15 em ponto depois de saírem dos escritórios. Reencontraram-se numa sardinhada que fizeram na praia, era um tipo giro, não tinha os dentes assim tão tortos e falava muito bem sobre o tempo. E agora estavam na berma da 125 junto ao cadáver dum gato trucidado e não sabem como. Já foi pior. Uma vez perdeu as cuecas numa falésia e teve de andar por hortas e veredas até ao resort às tantas da manhã com as pernocas todas ao léu. Não se recorda ao certo de ter sido molestada, mas acordou toda dorida nas costas e com uma pastilha colada nos seus lábios inferiores. Uma pastilha gorda, devia ser tipo Super Gorila ou várias Tridents juntas. Meteu-lhe muito nojo. Mas nem por isso deixa de regressar a Albufeira, onde as pessoas parecem todas mais parvas do que ela é. Ela é daquelas que utiliza o umbigo como “O” numa palavra a tatuar na barriga e mesmo assim sente-se inteligente. É reconfortante saber que existe um sítio assim, onde espairecer depois duma vida encafuada num metro a cinco quilómetros de profundidade e a trabalhar num escritório onde toda a gente passa o tempo a reunir e a afiar as unhas. Como ela conseguiu o trabalho, não sei, ela nem parece saber fazer um secure printing, mas ali há trabalho para todos. Se és branco, vais sentar o rabo num escritório. Se fores paquistanês, tens um táxi ou um kebab à tua espera. Land of opportunities, land of the free. Isso até é mais a América. Mas a génese está aqui, o espírito é o mesmo. Quando é para a desbunda, é para a desbunda. Sair daqueles bairros de casas alinhadinhas e escuras de tijolo para os holofotes tépidos do Instagram, com a selfie ao pôr-do-sol, uma caipirinha e escaldões nas costas. A cabeça toda grelhada e a pele escamada como um peixe. Depois um pub com música ao vivo, onde passam jogos de rugby, as mesas têm bases para copos com perguntas para jogar Trivial e ainda estão afixados posters da Maddie. Um dia virá passar a reforma nas Canárias e cumprir o sonho de viver num Verão eterno. Por questões fiscais, claro. Albufeira ficará para sempre no seu coração.

04 julho 2022

Bryan Adams



Se quisermos simplificar, o Bryan Adams tem duas fases distintas de carreira: quando ainda era só levemente bexigoso e quando a sua cara se tornou numa espécie de campo lunar. Não sei se é dos genes do Canadá, da sua costumeira falta de sol, mas aquela pele mete dó. Não é um Balsemão, não dá para a escamagem, mas com o tempo o Bryan ainda se torna a nova mascote da 5-a-Sec. Pode ter sido da vida do rock n’ roll, mas francamente, depois do Robin Hood o Bryan afundou-se na mediocridade das baladonas, dos convidados e dos unpluggeds que, enfim, garantem uma boa reforma, devemos reconhecer, mas dificilmente representaram perigo à sua integridade física.

O Bryan ainda teria algum rasgo de criatividade até meados dos anos 80, mas depois os rasgos ficaram-lhe todos na cara e foram literais. Uma guitarrada orelhuda aqui e acolá numa época de optimismo e de pouca exigência asseguraram-lhe um lugar permanente das playlists das discotecas em modo revivalista. O próprio Nuno Markl, perito destas coisas, não dispensa uma malha ou outra do Bryan e prega a sua palavra aos seus acólitos, mantendo o espírito do Bryan, do bom velho Bryan que parecia ser o nosso primo mais velho e que usava ténis fixes por altura do “Reckless”, vivo com a saúde possível.

O Bryan, imaginado como um primo dos anos 80, pode ser um conceito que envelhece mal, como a pele do próprio Bryan. Dantes julgávamos que seria um tipo fixe, até tinha passado parte da juventude em Portugal, tínhamos um elo de ligação, mas agora tenho para mim que o Bryan em pessoa não seria um gajo interessante. Não tem a ver apenas com a qualidade musical, mas também com uma certa atitude que por vezes não cai bem, que é envelhecer e perder o brilho. Com piadas otárias sobre o Ontário, conversas sobre hóquei no gelo, ainda usando blusões de ganga e transpirando muito. Mas com uma voz rouca que lhe dá credibilidade. As pessoas ainda só o aturam porque ele diz coisas parvas com muito estilo. E por isso ainda lhe editam best-ofs e marcam-lhe concertos em casinos só para baronesas enfastiadas assistirem.

Isto tudo porque me lembrei que tive uma colega minha que, para aí com 12 ou 13 anos, confidenciou, com total naturalidade, que foi convidada pelo Bryan Adams para o seu camarim e passaram uma tórrida noite de amor. Naquela altura admitia-se a pedofilia como uma daquelas coisas que podiam acontecer. Acho que isso fazia sentido na cabeça dela. Era a expressão dum sonho com algumas camadas de complexidade, em que ela pensou nos passeios idílicos que deram, nas bonecas que ele lhe presenteou, no algodão-doce que comeram e nos beijinhos que trocaram. Embora ela tenha dito que “fizeram tudo”. E tudo antes do concerto, que ele obviamente lhe dedicou quando subiu ao palco, apontando para ela num foco saído do palco, com tudo em histeria. Estávamos, portanto, na fase em que o Bryan ainda seria moderadamente bexigoso.

Naquela época era fofinho contar isto e hoje seria um escândalo. É essencialmente um pedaço de fantasia adolescente que soa embaraçoso agora, como outros da mesma igualha. O Bryan para mim não é pedófilo. É bexigoso, não faz nada de jeito há anos, mas não desposa criancinhas. Só faz mal aos ouvidos e bem a DJs preguiçosos. É aquele primo que já não é fixe, porque nós também já conseguimos ter coisas, mas também já não nos irrita assim tanto com baladas, porque já não há muito espaço para ele.  Já fez tanta coisa confrangedora que no saldo final da sua carreira não sabemos bem se devemos valorizar a sua energia inicial ou carregar no lado aborrecido que se seguiu. Enquanto ponderamos, o Bryan vai escavando mais uns sulcos na sua cara como só ele sabe.


14 outubro 2021

Marquês de Sade


Sobre a personagem do título não me alongarei. Como marquês que era, devia usar daquelas perucas aos caracóis de que os juízes gostam muito, meias por cima de corsários e sapatos com fivelas, com muitos folhos dispersos pela indumentária. E certamente que era um tarado que se deleitava em serões de intensa e dolorosa carnalidade, ou não fosse essa a actividade que lhe granjeou a posteridade. Dada a sua inquestionável reputação, sobejamente debatida noutras publicações, interessa-me apontar, sucintamente, as suas contrafacções.

Marquês da Sade. É um fidalgo que foi casado com a Sade Adu. Aquela que ia de costa a costa, de El Ei até Chicago, se bem que Chicago fique na costa dum lago. Foi um erro de simpatia por questões de métrica e de sonoridade. Valeu a pena, a canção foi um sucesso e a geografia ficou igual. Mas é ali, nas bordas de Chicago, que está o maior reservatório de água doce do mundo, na região dos Grandes Lagos. Nós temos o Alqueva, também o maior sob algum critério. O Alentejo renasce, polvilhado de oliveirazinhas que nunca crescem para além do estipulado. Todas alinhadas em formação a drenar o solo com uma voracidade militar. Alguma gente também nunca cresce, apenas envelhece. Duma forma oposta à do Vinho do Porto. Sacana do vinho, ficamos todos vinagre, até a aparentemente inexorável Sade, e só a raça do vinho fica melhor.

Marquês do Chade. É um nobre com pretensões ao trono do Chade, um país perdido ali por baixo da Líbia com fronteiras difusas na areia. É fodido estar por baixo da Líbia. Isto é das maiores humilhações geo-estratégicas que pode haver. O Nuno Rogeiro até fica com pele de galinha. E não é fácil o Nuno Rogeiro meter a sua pele de solário constante como a duma galinha. Não sei francamente se a Líbia ainda existe. A Síria, o Iraque, o Iémen, só mesmo o Nuno Rogeiro pode dizer. Então imaginem estar por baixo de alguma coisa que não existe e ser essa a principal referência. Ou estar ao lado do Sudão. Há dois Sudões e nenhum se aproveita. Não espanta que as pessoas fujam desse vácuo. A vida não está fácil para o Chade. Os anglo-saxónicos chamam-lhe Chad. Chad é nome de dropout de high-school. O primeiro baterista a sério dos Nirvana chamava-se Chad. Foi o máximo a que um Chad almejou.

Marquises de Sade. É um restaurante com uma vista panorâmica sobre o rio Sado. Foi um erro de tipografia ou apenas transcrição da fonética local. Há vários lugares assim, com nomes convidativos sobre uma paisagem qualquer: as Varandas do Ceira, os Miradouros do Gerês, os Passadiços do Paiva e também as Marquises de Sade. As marquises em si possuem um design à Ronaldo, arejadinhas. O restaurante enche aos Domingos e fecha 2ªs e 3ªs. É assim-assim. Tinha um arroz-doce muito bom, mas desde que a mulher do dono morreu que aquilo perdeu um bocado. Era o consenso dos clientes, eu cá nunca gostei de arroz-doce. Dava-me a volta à barriga, dizem que era por comer quando ainda estava quente, mas eu guardei um ressentimento para a vida. O restaurante não tem uma pontuação fantástica no Tripadvisor e tem poucos comentários no Google. O estacionamento é de terra batida e está lá sempre um Mercedes 180 branco com teias de aranha a ocupar dois lugares. Ainda assim, não lhe roubaram a estrela neste tempo todo. O atendimento é lento, mas isso até dizem que confere autenticidade à experiência. Só para quem entende. A sofisticação não está ao alcance de todos.

Prefiram sempre o produto original.